A Caixa Vazia e a Zerézima Maria Japonesa

Tradução: Virtual Core


Volume 6

Após As Cortinas Fecharem

 

Kazuki Hoshino - 24/09 SAB 12h25min

Outro dia está para se passar sem que eu converse com ninguém na escola.

No momento, estamos no intervalo de almoço. Eu me alongo e olho pela janela. O clima está agradável hoje. Na sala, o sol brilha gentilmente, mas dizem que haverá uma tempestade amanhã.

De repente, sinto uma dor penetrante em minha mão direita. Minha ferida já fechou, mas ainda sinto pontadas, de tempos em tempos. Minha mão direita conserva uma cicatriz reta e profunda. Sempre que olho para ela, eu penso:

… Fiz algo que jamais desaparecerá.

Olho ao redor na sala meio vazia e suspiro.

 

Kokone ainda está no hospital. Embora sua condição não seja crítica, a ferida que infringi a ela não está nem de perto superficial. Ela ficará com uma cicatriz no estômago, fazendo companhia às várias “marcas” que ela já tem em suas costas.

Mogi-san também ainda está hospitalizada. Por fora, ela não mudou, mas sua atitude em relação a mim se tornou mais distante. Yuuri-san têm faltado frequentemente, provavelmente porque ainda não digeriu completamente os eventos do “Cinema”. Na verdade, ela está ausente hoje. Quando conversamos, ela sempre tenta parecer animada, mas é dolorosamente óbvio que sente qualquer coisa menos animação. Iroha-san está me evitando completamente. Yuuri-san disse que não devo me preocupar com isso, mas ela pode estar mentindo para me aliviar.

Haruaki não conversou comigo desde aquele dia.

 

Eu deixo a sala.

De repente, perco toda a motivação de assistir às aulas da tarde. Perder tempo nessa sala de aula meio vazia apenas me daria dor de cabeça. Em meu caminho para os armários, ouço o termo “Cães Humanos” vindo de duas garotas, ao passarem por mim.

“Cães Humanos”.

No fim, eles não tiveram nenhum impacto duradouro. Uma vez que todas as vítimas recuperaram suas memórias, o mistério deixou de atrair o interesse das pessoas, e a mídia logo parou de falar sobre o assunto. Os programas de variedade que continuamente focaram no assunto também pularam para um novo escândalo: algum relacionamento extraconjugal envolvendo a líder de um grupo de idols e seu produtor.

Levando em conta a escala do incidente, as pessoas não se esquecerão dos “Cães Humanos” tão cedo, mas isso já está começando a acontecer; não é mais a notícia da vez.

Dada a situação atual, é pouco provável que as pessoas tenham reconsiderado seriamente seus códigos morais por causa do incidente. Também não há muita discussão sobre o fenômeno na internet. Atualmente, os internautas estão discutindo sobre um roteirista de anime que insultou um fã. Notícias sobre o incidente se espalharam rapidamente e ele virou sensação.

Alguém até mesmo foi preso por fazer uma ameaça de morte. Não posso negar que estou um pouco incomodado com o fato de que o que o Daiya tentou alcançar esteja sendo igualado a um incidente trivial como esse.

Dito isso, não acho que os esforços do Daiya tenham sido completamente em vão: tenho certeza que ainda existem algumas pessoas que pensam nos problemas que ele trouxe à tona. Contudo, para manter a atenção das massas, ele precisaria ter continuado. Todas as notícias têm tempo de validade.

Chego ao armário de sapatos. Ninguém me repreende por sair mais cedo, enquanto coloco meus sapatos de couro.

Os alunos jogando beisebol e basquete nas quadras da escola chamam minha atenção. Esta escola também não sofreu nenhuma mudança, apesar da criação de tantos [servos]. Todos se esqueceram sobre a “caixa”, embora alguns possam ter sofrido sérios efeitos colaterais. Mas isso não é o bastante para ter um impacto real no dia-a-dia escolar.

Por quê? Eu me pergunto. Por algum motivo, eu me sinto um pouco desconfortável. Embora tenha impedido o Daiya, mesmo isso sendo o que eu sempre quis, de alguma forma me sinto triste por nada ter mudado, no fim das contas.

Quer dizer, refletindo sobre o resultado, o que somos capazes de alcançar? Se o Daiya não pôde mudar nada, mesmo estando disposto a aceitar sua própria destruição, quanto valor pode ser atribuído a nossa existência? Por que é que o cotidiano continua inalterado mesmo que uma aluna tenha sofrido um ferimento sério, um aluno saído da escola e outra aluna desaparecido sem deixar nenhum traço?

…Não, esse pensamento é centrado demais no Daiya. Na verdade, é por isso que acredito na santidade do cotidiano; acredito que, ao torná-la parte desse cotidiano capaz de se equilibrar, posso salvar a Maria.

O motivo pelo qual estou sendo tão sentimental agora é porque — embora ele provavelmente não concorde — o Daiya é meu amigo. Sinto que suas ações merecem ter pelo menos algum resultado, por menor que seja.

— Daiya…

O Daiya desapareceu de novo.

Depois daquele incidente, só encontrei com ele uma vez. Parou de tingir os cabelos, removeu seus piercings e veio para a escola para entregar um requerimento oficial de abandono. Juntei toda a minha coragem e tentei falar com ele, mas apenas deu um sorrisinho e me ignorou. Não faço ideia do que o Daiya pretende fazer agora.

Deixo a escola, subo no metrô e finalmente chego a um complexo residencial de cinco andares bastante familiar. Jamais apertei qualquer botão nesse elevador além de 1A e 4A, e isso não está para mudar. Aperto 4A, como sempre, e vou em direção ao quarto 403.

Pego a cópia que Maria me deu da chave e destranco a porta.

Diante de mim há um quarto vazio, sem nenhuma mobília.

Não há ninguém.

Removo alegremente meus sapatos e mais uma vez me sinto em casa neste apartamento vazio. Mas não há mais nenhum sinal da Maria.

Em lugar nenhum.

Posso suportar a falta de mobília; não havia muita coisa aqui, para começo de conversa. Contudo, a ausência do aroma de pimenta no ar é insuportável. O aroma que associei à Maria está ausente, me fazendo perceber que ela não voltará.

— Maria…

Ela desapareceu.

Assim que terminou de tratar as feridas da Kokone naquele dia, Maria desapareceu. Não tirei meus olhos dela, mas ela deve ter aguardado o momento certo e, de alguma forma, encontrado uma oportunidade de escapar. Vasculhei a área imediatamente, mas não consegui encontrá-la.

Ela ainda está matriculada na nossa escola, mas duvido que planeje voltar, especialmente se você considerar o fato de que se mudou.

Provavelmente, não planeja mais me encontrar.

É claro que vou recuperá-la mesmo assim. Vou conseguir.

—…aahAah!

Mal consigo respirar; sinto como se o oxigênio estivesse sendo sugado dos meus pulmões. Meu peito lateja de dor por eu querer vê-la, por querer tanto vê-la. Lágrimas começam a escorrer dos meus olhos. Não consigo nem sequer determinar se estou triste, irritado ou sentindo alguma outra emoção. Simplesmente dói tanto que não consigo conter minhas lágrimas. E então, eu penso:

Não vou te deixar!

Não vou te deixar escapar.

Vou encontrá-la custe o que custar. Custe. O. Que. Custar. Se for preciso, vou matar cada pessoa deste planeta, estou pronto para cometer um genocídio ao menor estímulo.

Pego o óleo de pimenta que comprei mais cedo e começo a andar pelo apartamento, derramando-o pelo chão. Contudo, o aroma nostálgico que se espalha pelo ambiente não me traz nenhum conforto. Não é o bastante. Algumas gotas de óleo jamais serão o bastante para mim.

Me dê ar para respirar!

— Ha… ah… hah!

Ah, Maria.

A verdadeira Maria, sem “caixa”. A Maria pura que ainda não encontrei.

… a zerésima Maria.

Onde você está?

Se isto te libertasse, eu alegremente arrancaria a pele de Aya Otonashi!

Click.

Subitamente, a maçaneta da porta se move para baixo.

Estou bastante nervoso. Não é preciso dizer, mas não tenho direito nenhum de estar aqui, mesmo assim, estou despreocupadamente derramando óleo aromático por aí, como se aqui fosse minha própria casa. Se alguém da imobiliária estiver entrando, estou ferrado. Entretanto, quando vejo quem realmente é, percebo que minha preocupação era tola.

É muito pior.

É a pior coisa que poderia acontecer.

— “O”.

Ela assumiu novamente a aparência que de certa forma lembra a Maria.

Já nos encontramos várias vezes antes. Nem todos os nossos encontros pioraram minha situação, mas dessa vez é diferente.

“O” está diante de mim como uma inimiga.

Ela veio para me enfrentar.

Com o sorriso repulsivo de sempre, ela pergunta:

— Está preparado?

…Para quê?

“O” responde:

— Para dizer adeus a este mundo!

 

Daiya Oomine - 24/09 SEX 10h45min

Mesmo depois de perder a “Shadow of Sin and Punishment”, consigo recordar a maior parte do meu conhecimento referente às “caixas”. Não sei o motivo, mas assumo que tem algo a ver com o conhecimento que eu tinha sobre elas mesmo antes de obter uma.

Caminho pelas ruas de Shinjuku. Estão abarrotadas de gente. Mas, diferente da última vez, não sinto nenhuma tontura. Não vejo nenhum pecado quando piso na sombra de alguém. Embora saiba que as pessoas escondem imundices dentro de seus corpos, a multidão não parece mais ser um enorme saco de lixo se debatendo.

São apenas pessoas.

Ergo minha mão para tocar meu piercing, mas me lembro que não vou mais encontrar nada metálico lá. Em vez disso, dou um sorriso torto.

 

Em meio à multidão, subitamente me ajoelho. Alongo minhas costas e me prostro graciosamente.

Não importa de que ângulo você encare, o que estou fazendo é completamente estranho.

…Muito bem.

Ergo minha cabeça. Várias pessoas estão me dando olhares tortos, mas a maior parte delas apenas me ignora e tenta não se envolver. Esse é o limite de influência que posso exercer ao fazer algo estranho. Essa é toda a influência que posso exercer, agora que não controlo ninguém.

Não possuo mais o poder de alcançar algo.

— Há…

Mas está tudo bem.

As pessoas passam por mim, indiferentes.

É, isso mesmo. Para mim, o mundo se tornou um grupo de pessoas com as quais jamais terei algo a ver novamente.

E isso é incrivelmente relaxante.

 

No entanto.

Enquanto me levanto, alguém repentinamente toca minhas costas para chamar a minha atenção.

Eu me viro.

— Ah, é você? — digo, contorcendo meu rosto. Honestamente, eu preferia não ter que ver esse rosto de novo. — Ainda quer algo de mim?

Em resposta à minha atitude, ela arregala os olhos e começa a falar desesperadamente. Não entendo uma palavra do que diz em seu estado agitado, mas, após ouvi-la pacientemente por algum tempo, finalmente entendo o que quer de mim. Aparentemente, ela ainda quer que eu aja como um deus e salve o mundo.

— Você quer que eu te guie? Impossível; não tenho mais aquele poder… O quê? Você não se importa se eu tenho aquele poder ou não? Isso não faz sentido. De qualquer forma, vou deixar bem claro para você: Eu não quero, nem tenho a intenção de fazer algo como aquilo novamente.

Ela não está feliz com a minha resposta. Fica agitada novamente e tenta me persuadir. Que garota teimosa. Ela nem sequer lembra mais da “caixa” que usei nela.

— Responsabilidade? Sim, pretendo me render às autoridades assim que a Kokone melhorar. Afinal de contas, assassinar Koudai Kamiuchi foi um grande pecado… Hã? Não é sobre isso que você está falando? Então, o que quer dizer com responsabilidade?…A responsabilidade de te guiar? Mas eu te libertei, não foi? O que mais você poderia querer? …Hein? Você está errada. Sua vida não pertence a mim. Nunca pertenceu. Ela pertence a você e a mais ninguém.

Ela ainda se recusa a desistir.

— Poderia parar com isso, por favor? Não espere mais nada de mim. Sou só um aluno do ensino médio… não, não sou nem isso mais. Sou só uma falha que não poderia nem sequer comparecer às aulas… sou apenas um humano!

Ela tenta desesperadamente fazer com que eu mude de ideia.

Guie-me, ela diz. Salve-me, ela implora.

Como você quer que eu faça isso, criatura?

Parece fútil continuar conversando com ela por mais tempo. Eu me viro.

— Viva sua própria vida daqui para frente.

Não temos mais nada um com o outro. É o que digo a ela. Rejeito claramente as sobras do meu poder agora perdido. No instante seguinte, sinto uma dor penetrante em minhas costas.

— Hein?

Minha energia é sugada do meu corpo, e eu caio de joelhos.

Em uma questão de segundos, eles ficam manchados com o sangue que escorre das minhas costas. Vomito sangue e olho para o rosto da pessoa que me esfaqueou. Só agora percebo que, apesar de que estava falando com ela, eu não estava realmente prestando atenção. Tratei-a como se fosse apenas uma ilusão criada pela minha mente.

Só depois de ser ferido desta forma eu poderia reconhecê-la de verdade. Só depois de me ferir desta forma ela poderia me fazer reconhecer sua existência.

— Um humano? Do que você está falando? — diz ela com um olhar distante, me observando de cima. — Você é um deus.

A aluna do fundamental de cabelo chanel larga a enorme faca de cozinha e começa a espalhar meu sangue em seu rosto como se fosse maquiagem.

— Como eu poderia continuar vivendo se você não for um deus? Assuma a responsabilidade! Por favor, assuma a responsabilidade pelo que você começou!

As pessoas ao redor finalmente percebem o que está acontecendo e começam a gritar.

— Você não tem o direito.

Ela ri, com os olhos cheios de lágrimas.

— Você não tem o direito de voltar a ser humano.

Depois dessas palavras, ela corre para longe, esbarrando em todos que estejam em seu caminho. Logo, ela desaparece. Mas não demorará muito até que quebre sob o peso do que fez. Ela está contra a parede. Este mundo jamais será gentil e justo o bastante a ponto de protegê-la. Foi isso que minha tentativa falha de guiar as pessoas me fingindo de deus causou.

— …Ha.

Vomito mais um pouco de sangue.

—…Haha.

Então este é o resultado do que fiz, hein? É tão terrível que preciso rir.

Mas, agora que penso sobre isso, não deveria ser uma surpresa. Para começo de conversa, por que eu pensei que poderia escapar sem punição? Achei que as consequências dos meus atos desapareceriam em um passe de mágica?

Mesmo depois de perder meus poderes, ainda continuo encurralando e sendo encurralado por outras pessoas. Tudo que vai, volta. Eu esperava minha ruína desde o começo, portanto, de certa forma, minhas expectativas acabam de se concretizar.

Porém.

Embora eu perceba que a culpa é toda minha…

— Isso é… uma piada de mau gosto…

Eu lamento.

Não desejo mais minha ruína. Não quero mais um desfecho desses. Mesmo assim, acabei dessa forma, uma vez que coloquei as rodas do destino em movimento visando minha própria destruição.

Já faz tanto tempo que eu passei do ponto sem volta? Bom... cala a boca. O que eu deveria fazer, então? Quer dizer, eu…

— Eu quero… tanto… viver!

Cuspo essas palavras sinceras junto com mais um pouco de sangue.

Machuca. Dói. Dói. Machuca.

Eu quero viver.

Kokone.

Kokone, eu quero te ver.

Eu estava cego, e agora vejo o que é certo. Não me importo se não puder fazer nada. Não me importo se me tornar apenas um fardo. Ainda quero estar com você. Percebi que é isso que eu quero, que eu deveria fazer… e mesmo assim!

Meu desejo acabará sendo esmagado desse jeito?

Não me venha com essa!

Rangendo meus dentes, eu me ergo, cambaleante.

Não posso perder assim. Não posso morrer aqui. A estação de polícia mais próxima deve ser na próxima esquina. Preciso chegar até lá. Ninguém se preocupa em me ajudar enquanto cambaleio em meio à multidão, pingando sangue. Todos apenas tentam me evitar. Não fui capaz de mudar a indiferença do mundo.

É essa a recompensa que mereço?

Tento rir, mas não consigo. Atingi meu limite bem depressa. Não consigo mais mexer minhas pernas; minha consciência está aos poucos se dissipando. O mundo começa a girar ao meu redor.

Tudo acaba aqui.

Desmorono no chão, impotente.

E então, penso:

Se houvesse alguém que pudesse me salvar nessa situação, essa pessoa seria a própria encarnação da esperança.



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