Volume 2

02. Maio

(Sábado)

 

02. Maio (Sábado) 00:11

Acordei graças a um estranho tremor na minha escrivaninha. Me levanto da cama, pego o celular, que era a origem do tremor, e olho para a tela de LCD.

« Maria Otonashi »

Maria Otonashi? Porque ela está ligando? Se está ligando mesmo nessa situação, significa que [Kazuki Hoshino] não contou nada do que está acontecendo para ela? …Não, provavelmente ele não tinha como contar para sua namorada essa história absurda sobre a ‘caixa’. Mas acho que ela devia ter percebido as mudanças nele, mesmo sem dizer nada… tanto faz.

Sem pensar demais sobre isso, atendo a ligação. Afinal de contas, como poderia resistir ao desejo de falar com a garota que admiro?

— Alô?

« Kazuki. Venha para o meu apartamento. »

Wow. Ela sempre fala dessa forma com [Kazuki Hoshino]?

Bem, então como devo responder? Avalio minha situação. Usando essa ‘caixa’ sou capaz de assumir o corpo de [Kazuki Hoshino]. Totalmente em uma semana. Para cumprir esse objetivo seria melhor não fazer nada.

Naturalmente seria melhor não entrar em contato com Maria Otonashi.

Mas não posso perder meu foco. Esse não é o meu objetivo.

O que eu quero… Atormentar [Kazuki Hoshino] o suficiente para fazer ele arranhar o próprio pescoço, fazer ele sucumbir tão miseravelmente a ponto de submeter seu próprio corpo dizendo “Por favor, faça o que quiser comigo” enquanto se retorce em desgraça. Tudo isso para roubar seu corpo perfeitamente, fazendo dele uma casca vazia até 5 de maio, uma casca vazia que existe apenas para ser meu. Esse é o meu desejo.

Por que desejo isso? Porque só assim serei capaz de aceitar que sou [Kazuki Hoshino]. Se não for capaz de sentir que sou [Kazuki Hoshino], seria como se apenas estivesse pegando o corpo emprestado. Seria inútil.

Acho que preciso dividir esse corpo com [Kazuki Hoshino] por um tempo, porque não seria capaz de me sentir como [Kazuki Hoshino] de outra maneira. Deus, essa ‘caixa’ realmente é bem feita.

« Ei, porque ficou em silêncio? »

Entendo. Não há nada a temer. Maria Otonashi é sem dúvidas uma existência importante para [Kazuki Hoshino]. Se ele perde-la, com certeza vai sofrer um dano terrível. Portanto, [Ishihara Yuuhei] vai roubar Maria Otonashi de [Kazuki Hoshino]. Isso é absolutamente necessário para poder completar meu desejo absoluto.

— Ah, sinto muito. Estava absorvido em pensamentos.

Me recordo da forma de falar de [Kazuki Hoshino], abro minha boca.

— Err, seu apartamento. Claro, se você vier me buscar.

Baseado na forma de falar da Maria Otonashi, acredito que [Kazuki Hoshino] visita o apartamento dela diariamente.

« Você não está querendo agrado demais? Não é uma distância que você não possa cruzar de bicicleta, é? »

— Não, mas minha bicicleta não está em condições no momento.

Tento enganá-la de forma aleatória. Não sei aonde ela mora. Portanto vou estar com problemas se ela não vier me buscar.

« Caramba, mesmo sendo o homem da relação você quer que eu vá te pegar? Normalmente não é o contrário? … Bem, tanto faz. Vou de moto, tudo bem? »

— Moto?… Você quer dizer um ciclomotor?

« Não… uma 250cc… »

Droga! Não tem como [Kazuki Hoshino] não saber sobre isso.

« Aah, é verdade. Ainda não te contei que comprei uma moto. »

— Ah… c…certo.

Por um triz! …Não, não tem porque ceder ao nervosismo, afinal não é como se ela fosse perceber a verdade só com isso. Mas é verdade que estou sentindo essa agitação apenas porque a pessoa com quem estou falando é Maria Otonashi.

« Falando nisso, nem tenho idade para tirar carteira. »

Você não tem carteira?! Ainda bem que não tentei fingir que sabia sobre a moto.

« Bem, então estarei aí em quinze minutos. Fica me esperando do lado de fora. »

A ligação foi interrompida antes que pudesse responder.

— … Kazu-chan, quem era no telefone? Pelo que ouvi, era uma garota, certo? E por que você não foi para a varanda?

Uma garota só com roupas intimas, provavelmente a irmã de [Kazuki Hoshino], foi quem perguntou. Entendo. Então [Kazuki Hoshino] não atende o celular no quarto quando a irmã está aqui. Me lembrarei disso por hora.

— A essa hora, não acho que tenha sido a Kasumi Mogi-san…

— Kasumi Mogi? — Quem é essa?

 

02. Maio (Sábado) 00:31

Em exatamente quinze minutos Maria Otonashi chegou montada em uma moto simples.

— Vamos.

Ela joga um capacete em minha direção, eu seguro. Sem saber o que fazer em seguida e diante do olhar silencioso dela, decido usar o capacete.

— O que você está fazendo aí parado? Se já colocou o capacete se apresse e suba.

Me sento atrás dela como ordenado. Após alguma hesitação seguro a cintura dela. Não reclamou. Sua cintura tão magra. A cintura da minha adorada Maria Otonashi.

Após menos de dez minutos ela para a moto em frente a um apartamento de cinco andares. Estou um pouco relutante em largar dela, mas de qualquer forma desço da moto e inspeciono o apartamento após tirar meu capacete. A construção é feita de alvenaria e parece ser de alta classe. Tem até fechadura automática. O aluguel deve ser bem caro.

É improvável que ela convide seu namorado, no meio da noite, para o apartamento onde a família dela vive. Provavelmente mora sozinha e agora está me levando para o quarto dela. Em outras palavras… é *aquilo*. Tem que ser.

Meu coração começa a bater em um ritmo frenético. Ela, por outro lado, não parece nem um pouco preocupada enquanto entra no elevador. Quando chegamos ao andar certo ela desce e abre a porta do quarto « 403 », finalmente.

No instante em que entro no quarto sinto um leve cheiro de menta. O quarto em si é do tamanho de um estúdio de dez tatames¹. Apesar de que a falta de móveis dá a impressão de que é maior.

— Por que está estudando o lugar desse jeito? Nada mudou desde a última vez.

— Ah… sim.

Tento me acalmar e sento em uma almofada. Me observando pelo canto dos olhos, ela abre o armário e começa a procurar por algo.

— Kazu não fique enrolando, estenda suas mãos.

Estender as mãos…? Ela vai beijá-las ou algo assim?

— Porque está hesitando? Assim!

Ela estendeu as mãos em frente ao corpo. Sem entender a imitei.

*Click*

Que som foi esse? – Sem tempo de pensar sobre isso, sinto algo apertar meu pulso. Ao tentar ver o que era me surpreendi.

Algemas.

— …Que tipo de piada é essa, Maria-san?

— Piada? Eu é que pergunto: que tipo de piada é essa? Nós sempre fazemos isso, esqueceu?

Sempre…? Me algemar?

— O que? Então está a fim de fazer um jogo de resistência hoje? Caramba… você realmente não tem jeito.

— A…ai!

Maria Otonashi torce meu pulso, forçando meu braço a virar para as minhas costas com movimentos habilidosos e com um sorriso no rosto ela termina de algemar o meu pulso esquerdo. Quando acho que terminou, ela algema meus pés e me empurra no chão. Tento me mover. Provavelmente conseguiria me levantar, mas não seria capaz de fazer muito além disso.

— Que tal usarmos isso daqui hoje também?

Maria Otonashi me mostra um pedaço de pano preto que ela usou para cobrir meus olhos. Minha visão foi completamente bloqueada.

Que situação. Meu corpo está completamente preso e não posso ver nada. Além disso, só consigo rolar no chão como um verme. Me sinto como um soldado preso por forças inimigas.

…Mh? Aah, entendo.

— Parece que as preparações estão prontas. Vamos começar.

Maria Otonashi provavelmente percebeu que algo estava acontecendo com     [Kazuki Hoshino]. Não tem como ela ainda estar fazendo coisas que se fazem entre amantes. Então, sabendo disso… como quem Maria Otonashi está me tratando?

— Bem… — Ela continuou após uma breve pausa — você não é Kazuki Hoshino, então quem é você?

Entendo. Isso significa que tudo até agora foi apenas um teatro para ‘me’ capturar.

— Huhu…

Brilhante. Como esperado de Maria Otonashi. É por isso que a admiro. Ainda bem que não abandonei essa minha ilusão.

— Porque você está rindo? Até parece que ainda não entendeu sua situação.

Já que estamos aqui, porque não tento me debater um pouco.

— Não, não… Otonashi-san. O que você está dizendo, isso é absurdo.

— Chega dessa atuação inútil.

Aah, é mesmo inútil no final das contas. Mas exatamente por causa disso não consigo parar de rir.

— Mas que cara incompreensível. Por que você está tão animado, mesmo depois de ter te enganado completamente e te algemado?

— Posso perguntar uma coisa? Por que você acha que não sou [Kazuki Hoshino]?

Pergunto desistindo da minha máscara.

— Ouvi sua gravação e sei sobre a ‘caixa’.

Com essa resposta tão franca entendi claramente. Não apenas a razão pela qual ela viu através de mim, mas também entendi o porquê ela é uma existência especial.

— Mas mesmo que você saiba sobre a ‘caixa’ e mesmo ouvindo a mensagem, não é muito pouca informação para conseguir descobrir se [Kazuki Hoshino] sou [eu] ou [Kazuki Hoshino]? Desde quando você percebeu que não era ele?

— Desde que você disse « Alô » no telefone.

— …Você está brincando, não está?

Não tem como distinguir entre uma pessoa só com isso, estava usando a voz dele.

— Kazuki responde dizendo « Sim? ». Ele nunca diz « Alô ». É claro que não teria dado atenção a isso se não fosse por essa situação. Mas sei que Kazuki está envolvido com essa ‘caixa’. É natural ser cética. O que faltava era confirmar. Foi o suficiente fazer você falar até cometer algum erro. Deixe-me contar algo interessante: Kazuki nunca esteve nesse quarto.

— Isso realmente é algo interessante.

Afinal seria imperdoável alguém patético como [Kazuki Hoshino] visitar o quarto de uma nobre dama como Maria Otonashi frequentemente.

— Em outras palavras, você me enganou e ainda por cima confirmou se [eu] realmente existo.

— Não há necessidade de confirmar isso a essa altura. O que queria confirmar era se você divide as memórias com Kazuki ou não. Huhu, e parece que você não possui as memórias dele.

— …

Então ela já está um passo à frente em termos de confirmação. Admito que isso seja um ponto importante. Se [Ishihara Yuuhei] e [Kazuki Hoshino] compartilhassem as mesmas memórias, então toda informação seria vazada se ela tentasse trabalhar um plano junto com o [Kazuki]. E ela não seria capaz de cooperar com ele.

— Bem então, me deixe perguntar: quem é você?

— Não pode ver? Eu sou Kazuki Hoshino!

— Não tente bancar o idiota e responda logo.

Ainda sem poder fazer nada e no chão, dei de ombros.

— Não estou me fazendo de idiota. Sou Kazuki Hoshino. Ou pelo menos alguém que está determinado a se tornar ele através da ‘caixa’.

—… O que você quer dizer com isso?

— Estou falando literalmente. Meu ‘desejo’ foi: « me tornar Kazuki Hoshino ». A ‘caixa’ garante qualquer desejo, não é mesmo? Portanto, sou Kazuki Hoshino. Não posso responder de outra maneira.

Diante desse argumento, Maria Otonashi se manteve em silêncio.

— …« Se tornar Kazuki Hoshino », você disse? Ridículo…. Por que Kazuki de todas as pessoas? Na verdade, não acho que o corpo dele seja tão desejável, então qual o motivo disso?

Porque você está do lado dele.

Respondo sem hesitar.

— …Estou?

— Sim, admiro você. A Maria Otonashi que admiro vai estar do meu lado.

Apenas isso era razão o suficiente para querer estar no lugar dele. A ouvi deixar escapar um suspiro.

— …Nunca teria imaginado que eu era a razão para você ter feito isso com o Kazuki.

Ela reclamou, mas logo em seguida se recompôs e disse:

— Entendo que você insista em ser [Kazuki Hoshino]. Mas não posso te chamar de Kazuki.

— Então me chame de [Ishihara Yuuhei].

— [Ishihara Yuuhei]? Nunca ouvi esse nome. Não é o seu nome verdadeiro, é?

— Quem sabe?

— Hmpf, tanto faz. Mas quero saber, como você troca de lugar com o Kazuki?

— Qual o significado em perguntar isso?

— Não preciso responder sua pergunta.

— Bem, então também não preciso.

— Estou impressionada por você poder dizer isso estando com as mãos e os pés imobilizados.

— Você não pode me enganar! Não pode fazer nada comigo. Afinal, usar violência contra mim é na verdade usar violência contra o corpo de [Kazuki Hoshino].

— Existem inúmeras formas de tortura que não causam impacto no corpo… mas realmente não posso usar violência…

Maria Otonashi terminou sua fala com uma voz baixa.

— Você disse algo?

— Não, nada. …Deixando isso de lado, não vai me falar nada, não é mesmo?

— Mh, deixe-me ver. Honestamente, não me importo, mas não vou falar mesmo assim.

— Você não se importa?

— Sim. Afinal de contas, você precisa fazer algo sobre a ‘caixa’ até 6 de maio ou [Kazuki Hoshino] vai desaparecer. Você pode fazer alguma coisa se te falar algo. É claro que não vou te contar como remover a ‘caixa’. Ou você vai tentar me matar? [Kazuki Hoshino] também vai morrer se você fizer isso!

Não consigo resistir e começo a rir.

Que tal Maria Otonashi? Essa situação é mais desesperadora do que você jamais imaginou, não é mesmo?

— Huhuhu…

Mas por alguma razão ela também começa a rir.

—… Porque você está rindo? A situação é tão desesperadora que você ficou louca?

— Desesperadora? Isso? Huhu… Essa ameaça não é nada comparada com o que nós já passamos. A única coisa que me incomoda agora é você não me dizer como faz ara trocar de lugar com o Kazuki, certo? Como isso pode ser desesperador?

— A única solução é matar [Kazuki Hoshino] … Foi o que acabei de te dizer, será que você não entendeu?

— É exatamente por isso que estou rindo. Afinal, isso é mentira.

Fico sem palavras.

— Entendo que você queira me cansar, mas sinto dizer que não pode me enganar com uma mentira tão óbvia.

— …E por que você acha que é uma mentira?

— Você mesmo disse. Você disse que é [Kazuki Hoshino]. Mas Kazuki não possui a ‘caixa’. Em outras palavras, ele não pode ser o ‘portador’.

— Que jogo de palavras é esse? Você não pode fugir da realidade com isso!

— Você ainda não entendeu? Muito bem, me deixe perguntar uma coisa.

Maria Otonashi continua com uma voz firme.

 

Você acredita que é possível uma alma permanecer no corpo de outra pessoa?

 

— B-Bem…

Não pode responder imediatamente, hein?

Aah… droga.

Não sei porquê. Eu não sei porquê, mas sinto que foi um erro ter ficado sem palavras nesse momento.

— A ‘caixa’ garante desejos completamente. Uma pessoa que pensa mais ou menos racionalmente é incapaz de acreditar que seu ‘desejo’ possa ser completamente garantido. E como pensei você também não acredita, posso ver apenas pela sua reação. A ‘caixa’ incorpora as dúvidas ao garantir o desejo. Portanto, o ‘portador’ foi incapaz de substituir [Kazuki Hoshino].

— …

— O que significa que o ‘portador’ existe da mesma maneira como antes, sem ter substituído a consciência no corpo de [Kazuki Hoshino]. …Separado de você.

Sem se importar com o meu silêncio, ela pergunta:

— Então o que é você, se você não é o ‘portador’?

Não posso responder.

— Se você não sabe, eu respondo. Você é um ser artificial, surgido pela distorção do desejo. Você é apenas uma falsa imitação do ‘portador’. Sim o nome para isso é ‘fabricação’.

Ela riu em voz baixa e continuou.

— E já que você é apenas uma ‘fabricação’, você não é o ‘portador’ que estou procurando.

Entendo. Então é por isso… Que não tenho a ‘caixa’.

— Hahaha!

Mas e daí?

Para começo de história, fiz esse desejo à ‘caixa’ porque queria jogar meu eu ridículo fora de qualquer forma. Não sou o ‘portador’? Apenas uma fabricação?

Isso é melhor ainda!

Exatamente por não ser ninguém que posso sem dúvidas me tornar [Kazuki Hoshino].

— …O que essa risada significa, Ishihara Yuuhei?

— Huhu, isso importa? De qualquer forma, tem algo que preciso perguntar. Então sou uma fabricação. Admito isso! Mas quem é você para conseguir perceber isso?

— Quem sou eu…?

Dessa vez é Maria Otonashi que fica sem palavras por alguma razão.

— …Você é uma fabricação. E eu sou…

— Por que essa hesitação toda? Só quero saber o porquê de você saber tanto sobre a ‘caixa’.

— …Aah. Era só isso?

Entendendo minha intenção, ela se recompõe e sua voz volta a ter um tom firme.

— Eu sou uma ‘caixa’. E já que sou uma ‘caixa’, naturalmente entendo sobre as características delas.

— …Você é uma ‘caixa’? Isso é algum tipo de metáfora?

— Interprete como bem entender.

Uma ‘caixa’ hein? Se ela estiver falando sério, então isso realmente é uma combinação perfeita.

— Falando nisso, tinha algo que precisava te contar, não é mesmo?

— …Do que você está falando?

— Oh? Não te disse? Ontem à noite, te disse que me confessaria no dia seguinte. Já que o dia finalmente mudou, vou dizer!

Então falo com um sorriso tão largo que me sinto arrependido por não poder mostra-lo todo por causa da venda.

— Eu te amo, Maria Otonashi.

Ela disse que é uma ‘caixa’.

Acho que isso combina perfeitamente. Realmente, uma combinação perfeita. Como um objeto para ser ganho e para ser minha inimiga.

 

02. Maio (Sábado) 07:06

Acordo em um quarto que não conheço e algemado.

— …Err…

Acabei de acordar então minha cabeça provavelmente não está funcionando direito. Um quarto branco. Posso sentir um aroma agradável no ar. Ouço o som do chuveiro. Minhas costas doem. Estou sobre um colchão. Mas meus pés também estão algemados.

Espere. O que é isso?

Minha sonolência passou. Tento me levantar apressado, mas apenas consigo tropeçar. Segurando meus dois braços abaixo do meu nariz, sento e analiso o local de novo. Encontro uma cama de casal não tão grande, uma mesa com um notebook e autofalantes sobre ela, um livro que parece ser sobre um tema difícil. No geral não tem muita coisa. Vendo o uniforme estilo marinheiro no canto do armário percebo que esse provavelmente é o quarto de uma garota.

[Ishihara Yuuhei] fez algo novamente? Certo, é claro que fez.

O som do chuveiro parou. Após um tempo começo a ouvir o barulho de um secador de cabelo. Provavelmente a pessoa responsável por esse quarto é quem está no banheiro. Isso significa uma garota…? Então uma garota nua está do outro lado dessa parede…? Que situação é essa… E, aliás, o que diabos eu, não, [Ishihara Yuuhei] fez com essa garota?!

O barulho do secador para e a porta do banheiro se abre.

— U…uwa!!

Percebendo que ela só estava vestindo uma camisa branca, rapidamente olho para o outro lado.

— Ah, você acordou?

Meus pensamentos travaram no momento em que ouço essa voz extremamente familiar.

— Eh?

Realmente a face de uma pessoa familiar aparece quando me viro para ver.

— Ah, Otonashi-san…?

— Pareço com mais alguém?

Ouvindo isso acabo olhando para o corpo dela. Sim, definitivamente essa é Maria Otonashi. Também percebo que estava encarando ela enquanto ela está apenas com roupas íntimas e uma camiseta, rapidamente desvio meu olhar.

— J…já que você sabe que estou aqui, seja um pouco mais cuidadosa, por favor!

— Por que você está entrando em pânico? Só isso não é motivo para essa reação toda, é?

…Isso não é algo que uma garota deveria dizer. Isso é algo que o Haruaki diria enquanto assedia sexualmente da Kokone. Mas antes que pudesse dizer isso, ela fala algo ultrajante.

— Para começo de conversa, você não viu muito mais que minhas roupas íntimas ontem à noite? Ainda precisa ficar nervoso?

— …Eh?

— Nunca achei que você ia fazer *aquilo* assim que entrou no meu quarto, apesar de ter aquela expressão de garoto bem-comportado no começo. Caramba, realmente me surpreendeu.

— D…do que você está falando…?

Pergunto, mas pela situação ela deve estar falando a verdade. Afinal de contas, esse é o quarto dela, ela acabou de sair do chuveiro e não está nem um pouco incomodada em andar por aí com pouca roupa…

— I…isso é uma piada, certo?

Pergunto timidamente.

— Sim, é uma piada.

Ela respondeu honestamente.

— Hein?

— …Uh-huh, muito bem. Você é Kazuki Hoshino. Essa sua reação idiota quando fica de boca aberta é impossível de imitar.

O que pode ser esse sentimento insuportável surgindo dentro de mim, apesar de tudo não ter passado de uma brincadeira como desejei…?

— …Otonashi-san. Diga, o fato de eu ter chegado até aqui sem perceber significa que você falou com Ishihara Yuuhei, cer… ah?

Enquanto falava, ela chegou perto o suficiente para mim, ainda caído no chão, poder sentir o cheiro agradável do cabelo dela… Provavelmente xampu ou algum outro tratamento.

— O…o que é isso?

O som de um *click* me fez perceber que ela estava removendo as algemas dos meus pés. … Bem, isso é algo bom, mas podia pelo menos ter me avisado. Quando terminou de remover as algemas dos pés, ela se ajoelhou na minha frente.

— Uhmm…

A imito e também me ajoelho. Então ela abre a boca lentamente.

— Kazuki, quem eu sou?

O que ela está dizendo assim do nada? Ela é Maria Otonashi. Posso responder sem hesitar. Mas por que ela está perguntando isso nessa situação?

— Se lembre da ‘Rejecting Classroom’.

— Eh? …Ah!

Agora que ela mencionou, consigo me lembrar de uma vez que me fez escrever o nome dela que nem agora.

Naquele tempo, Otonashi pediu para escrevermos o nome dela, para ver se alguém escreveria « Maria ». Um nome que só poderia ser lembrado por alguém capaz de manter as memórias naquela situação.

Então porque ela está perguntando isso agora?

Para poder me diferenciar. Otonashi quer que eu prove que eu sou [eu] e não [Ishihara Yuuhei]. Porque se citar um nome que apenas [eu] posso saber, ela vai poder me identificar como [Kazuki Hoshino].

— …Aya Otonashi.

Portanto digo esse nome. O nome pelo qual ela se apresentou na ‘Rejecting Classroom’ e que só [eu] posso saber.

Mas se ela está pedindo isso, significa que ela não sabe quem eu sou agora? Preciso chegar a esse ponto apenas para ela poder reconhecer que sou [eu]?

De alguma forma isso é… extremamente mortificante.

—Aya Otonashi, eh?

Por algum motivo ela repetiu em um tom baixo, mas pesado.

— …Não era essa a resposta que você queria?

– Não, você está certo. Apenas não esperava que você fosse responder de forma tão clara. Só isso.

— …Certo. Então você entende que esse sou [eu]?

— Por enquanto, sim. Você já deve ter percebido, mas já tenho mais ou menos uma ideia da situação. E, além disso, também ouvi a gravação no seu celular feita por [Ishihara Yuuhei].

— Certo.

— Também consegui falar com ele.

—… Como foi? Ele te disse algo?

— Mhh, nada de útil.

Por algum motivo a resposta dela foi mais curta do que esperava.

— Ah, mas ele foi agressivo de alguma forma? Afinal de contas você algemou até meus pés.

— Sim, fiz isso pensando nessa possibilidade. Não, na verdade coloquei as algemas para você, Kazuki.

— …Eh?

— Como você reagiu quando percebeu que estava preso? Quais foram suas ações?

— Bom, fiquei confuso… até tropecei.

— Queria causar essa reação.

—… Você queria tirar uma com a minha cara?

— Não. Achei que podia perceber o momento em que [Ishihara Yuuhei] troca de lugar com [Kazuki Hoshino] esperando por essa reação. Infelizmente no final perdi a cena porque estava no banho. É realmente uma pena não poder ter visto essa cena engraçada.

Então de um jeito ou de outro ela queria tirar uma com a minha cara!

— Muito bem, é isso por hora. Vamos sair Kazuki.

— …Huh?

Ela parecia impressionada pela minha ignorância.

— Para a sua casa é claro. Que horas você acha que são?

— Eh?

Olhando ao redor do quarto encontro o relógio. Já são sete e quinze da manhã.

— Você quer chegar atrasado? Temos que ir para a escola.

— Hah…

Pensando bem hoje ainda é um dia letivo.

— Não me venha com “Hah”. Você pretende chegar à escola de mãos vazias?

…Faz sentido. Temos que passar na minha casa.

—… Uhm, Posso ir para casa sozinho?

— Do que você está falando? Você nem sabe como ir daqui até sua casa, sabe? Pode ir sozinho sem saber o caminho? De qualquer forma você não chegaria a tempo se fosse a pé, te dou uma carona na minha moto.

— C…certo.

O que eu faço…?

Não foi por vontade própria, mas dormi fora sem permissão. Como vai parecer para minha família me vendo chegar de manhã? Abro meu celular com um pouco de medo, como esperado, a tela mostra várias ligações perdidas da minha mãe. Isso é mau.

Se, além disso, eu aparecer junto com uma garota da minha idade na porta…

— Uhm, Otonashi-san. Quando chegarmos à minha casa, você pode ir na frente…?

— Por quê?

Ela olha para mim confusa. É claro que ela não entendeu minhas intenções… Não tem jeito, vou ter que entrar em casa e me arrumar sem que minha mãe perceba.

 

02. Maio (Sábado) 07:34

Minha tentativa de voltar sem ser percebido acabou em uma falha completa.

— Aquilo foi uma falha.

Otonashi-san murmura enquanto caminhamos em direção a estação, depois de termos deixado a moto estacionada perto da minha casa.

—… Completamente.

Concordo com um suspiro. Minha mãe me descobriu exatamente quando estava subindo as escadas. É claro, não saí sem um sermão.

Nada pode ser feito sobre isso. Entendo que minha mãe tem o direito de ficar zangada comigo já que passei a noite fora sem avisar ninguém. Nada pode ser feito sobre isso, mas…

Com o tempo correndo, naturalmente Otonashi-san ficou cansada de esperar do lado de fora e como esperado, minha mãe concluiu que a garota que acabou de aparecer dentro de casa foi o motivo de eu ter passado a noite fora e lançou um olhar hostil em direção a ela. Surpreendentemente, Otonashi-san diante dessa situação abriu um sorriso e disse:

— O Kazuki não estava na rua fazendo nada de errado. Ele esteve comigo o tempo todo até de manhã. Não chamei mais ninguém para o meu quarto. Não se preocupe, estivemos juntos só nos dois o tempo todo.

…Não, isso não é o que você deveria dizer nessa situação, é?

Minha mãe ficou tão pálida que quase me esqueci da situação e fiquei com pena dela, você pode dizer que ela ainda não aceitou que precisa deixar seus filhos viverem por si mesmos. É claro que Otonashi-san não compreendeu essa atitude dela e continuou com uma expressão séria:

— …? Como eu disse, Kazuki não foi a lugar nenhum e apenas dormiu no meu quarto. Não tem problema com isso, certo? Aah, embora possa ter machucado ele um pouco.

Minha mãe silenciosamente olhou para o meu pulso. É claro que ainda estava com as marcas das algemas.

Ela desmaiou ali mesmo. Otonashi-san correu para apoiar reflexivamente, e com um “Aah!” ela finalmente entendeu.

— É verdade. Nós somos um par de adolescentes ainda, he?

— Como vou encarar ela de agora em diante…?

Relembrando a cena, inconscientemente deixei escapar um suspiro profundo.

— Do que você está falando?

— Ah? Você não acabou de dizer “aquilo foi uma falha” agora mesmo?

— Sim, eu disse. Estava falando da moto.

— A moto?

Por hora vou aceitar que ela não compartilha de nenhuma das minhas preocupações.

— Te dei uma carona de moto, certo? Incluindo com [Ishihara Yuuhei], foram duas vezes. Isso foi uma falha.

— …? Por quê?

— Imagine o que ia acontecer se você trocasse de lugar com ele enquanto estávamos dirigindo. Não seria surpreendente se você simplesmente largasse da minha cintura e caísse que nem você reagiu quando se surpreendeu por causa das algemas mais cedo.

— Ah…

Então é por isso que ela deixou a moto perto da minha casa.

— Que descuido, devia ter percebido… Vou ser mais cuidadosa daqui para frente.

— Certo. …Falando nisso, Otonashi-san. Você pode me dizer agora o que aconteceu quando você estava com [Ishihara Yuuhei]?

No momento em que perguntei isso…

— …

Ela parou no lugar. Olhou em minha direção. Seu rosto inexpressivo.

— Eh…?

Por que esse olhar frio? Sem alterar sua expressão, ela diz:

Não posso te dizer o que aconteceu.

— P…por…

— Por quê? Não te disse antes? — E então ela concluiu sem qualquer emoção em seu rosto — Não vou mais confiar em você.

— Mas isso não tinha sido revogado…?

Não é mais como se não tivéssemos nenhuma ideia da situação. Otonashi-san já sabe a razão por trás do meu comportamento estranho.

— Não revogue isso de acordo com sua própria vontade. Você ainda não entendeu não é mesmo? Para começo de conversa, nós não sabemos o quanto do que [Ishihara Yuuhei] disse é verdade. Talvez ele seja capaz de se lembrar das memórias de [Kazuki Hoshino] e usar as informações das duas personalidades para benefício próprio.

— Isso… Isso não faz sentido!

— Talvez, posso estar me preocupando de mais. Mas ainda não há nada que prove o contrário.

— Mas…

— Vamos assumir que as características da ‘caixa’ que [Ishihara Yuuhei] nos contou são todas reais. Mesmo assim…

Subitamente ela bate a palma das mãos uma contra a outra. Isso me fez fechar os olhos reflexivamente.

— Assuma que uma troca ocorreu nesse exato instante. Não teria nenhuma forma de perceber isso. O que significa que estaria falando com você como se fosse [Kazuki Hoshino] sem perceber que estou falando com [Ishihara Yuuhei]. Nós não sabemos quando a troca ocorre. Alguma informação importante pode ser vazada. Por isso é perigoso. Basicamente é o mesmo caso que acabei de falar sobre a moto.

Realmente, isso poderia acontecer. …Mas eu sou [Kazuki Hoshino].

— Por exemplo… você se considera [Kazuki Hoshino], certo?

— É claro que sim!

— E se você simplesmente for alguém convencido de que é [Kazuki Hoshino]?

— Isso é impo…

“Isso é impossível” é o que ia dizer, mas fiquei em silêncio.

Existe alguma coisa que prove que sou realmente [Kazuki Hoshino]? Minha aparência? Personalidade? Memórias? Mas então o que define [Ishihara Yuuhei] como [Ishihara Yuuhei]? Afinal de contas ele existe no mesmo corpo.

Não, isso não está certo.

Eu sou [Kazuki Hoshino]. Não posso estar errado. Jamais duvidarei disso.

— Isso foi apenas um exemplo. Não fique pensando muito nisso. Mas Kazuki, você entende por que não posso confiar em você no momento, certo? Ainda não tenho total compreensão sobre essa ‘caixa’ – ‘Sevennight in Mud²’. Até ter uma ideia melhor de como isso funciona, não posso confiar em nenhuma das personalidades dentro de você.

Então quando é que essa ‘Sevennight in Mud’ vai ser esclarecida e serei confiável novamente? Isso vai durar enquanto [Ishihara Yuuhei] estiver dentro de mim? Não sou de confiança. Apesar de Otonashi-san ser supostamente minha aliada, não tenho a confiança dela.

A estação de onde vamos embarcar entrou em meu campo de visão. Paro de andar.

— Por que você está parando? Não tem muito tempo até o próximo trem.

— …Por que estou indo para a escola?

Estar com Otonashi-san me fez esquecer. Se isso fosse meu dia-a-dia normal iria para a escola. Não, mesmo se não fosse ainda iria mesmo que fosse só para oferecer resistência. Mas se eu for apenas vou destruir ainda mais o lugar que tenho lá, apesar de que você pode dizer que esse lugar já não existe mais.

— Para conseguirmos informações sobre [Ishihara Yuuhei]. Não há dúvidas de que ele é alguém próximo a nós dois. E, além disso, apenas estudantes da nossa escola têm contato comigo e com você. A importância de investigarmos a escola deveria ser óbvia.

— Mas não há necessidade para eu estar lá, tem…?

— Claro que tem, as condições mudam se você não estiver lá. Hoje é o último dia de aula antes dos feriados consecutivos. Nós não podemos perder essa chance.

Foi o que ela disse. Isso significa que ela não se importa se meu cotidiano for destruído se isso ajudar a obter a ‘caixa’. Me enganei sobre ela. A considerava como uma aliada incondicional. Mas isso não é verdade. Afinal de contas, Otonashi-san não se aproximou de mim para me ajudar, mas para encontrar ‘O’ e obter a ‘caixa’.

Então o que significo para ela? Provavelmente…

apenas uma isca para atrair ‘O’.

— Kazuki, entendo que ir para escola nessa situação deve te incomodar. Mas você entende que essa é a melhor rota de ação que nós temos, não entende? Saber disso e não fazer nada não é uma atitude que você tomaria.

Ela me disse em tom de desaprovação. Obviamente ela precisa que eu faça isso para alcançar o objetivo dela. Afinal de contas Otonashi-san não confia em mim. Contudo, já que sou incapaz de ver [Ishihara Yuuhei] e confrontá-lo diretamente, dependo de suporte. E ninguém é capaz de fazer isso se não ela.

Confiar em alguém com essa situação é o equivalente de confiar minha vida a essa pessoa. Não tenho escolha a não ser acreditar cegamente nela. Se Otonashi-san quisesse poderia me arruinar, poderia facilmente armar uma armadilha contra mim.

— …O que devo fazer na escola?

Mesmo assim, ela é a única pessoa em quem posso confiar.

— Vamos ver, por exemplo…

Ela propôs várias coisas com as quais já concordei. Pensou facilmente em planos efetivos, como esperado, mas exatamente por isso teria medo se ela… decidisse me trair.

— Você tem mais alguma ideia?

Uma coisa me veio à mente:

— E se mudássemos a forma como nos chamamos?

—… Como assim?

— Ao invés de ‘Otonashi-san’, vou te chamar de ‘Aya’ a partir de agora. [Ishihara Yuuhei] não conhece esse nome, então ele obviamente não poderia te chamar assim. Portanto, te chamar de ‘Aya’ provaria que eu sou [eu]. Que tal?

Ela ficou em silêncio.

— Isso é algo inviável?

—… Não, acho que pode funcionar. Vamos fazer isso.

Ela concordou. Mas, por alguma razão parecia relutante quanto a isso. De qualquer forma… ‘Aya Otonashi’, hein?

‘Aya Otonashi’ é o nome de uma ilusão que não existe dentro do nosso cotidiano.

Além disso… foi uma vez o nome da minha inimiga.

Foram esses pensamentos que ocuparam minha mente naquele momento.

 

02. Maio (Sábado) 08:11

Sinto o ar da sala congelar assim que entro com Otonashi-san ao meu lado. Obviamente ninguém me cumprimentou. Daiya é claro que não iria, mas nem mesmo Haruaki olha em minha direção. O assento de Kokone está vazio. Talvez ela nem venha hoje. …Por minha causa? … É claro.

Acho que nem mesmo Otonashi-san esperava que minha situação fosse tão ruim. Do canto de olho percebo ela me olhando com uma expressão triste no rosto. Mas logo ela se recompõe, encara meus colegas de classe e bate palmas duas vezes atraindo a atenção de todos.

— Ouçam todos!

Todos os olhares se voltam para ela, mas provavelmente eles já estavam prestando atenção em nós o tempo todo.

— Alguém conhece uma pessoa chamada [Ishihara Yuuhei]?

Ao ouvir isso, vários alunos trocam olhares suspeitos. Otonashi-san disse que a probabilidade de o ‘portador’ ser um dos meus colegas é alta. Já que não seria provável que alguém usasse uma ‘caixa’ para conseguir o corpo de uma pessoa desconhecida, eu concordei com essa lógica.

Mas o ‘portador’, [Ishihara Yuuhei], não está dentro de mim? Ou ela acredita que exista outra entidade separada dele? Não entendi muito bem aonde ela quer chegar com isso. Contudo, no momento acredito que perguntar a classe sobre o nome [Ishihara Yuuhei] é a forma mais efetiva de conseguir informações no momento.

— Ei, você, o que você pensa que está fazendo?

Miyazaki-kun se dirige a nós com um olhar que claramente mostra o quão inacreditável é minha atitude nos olhos dele.

— Você de novo? O que foi? Você conhece Ishihara Yuuhei?

Ele, aparentemente incapaz de nos levar a sério, responde com algo sem relação à pergunta feita.

— Como vocês dois ainda podem estar andando juntos na frente de todo mundo depois «daquilo»?

Sobre o que ele está falando? Percebo que os olhares dos meus colegas estavam cheios de raiva. Provavelmente eles se sentem no direito de estar com raiva de mim. Isso significa que eles não podem me perdoar por estar junto da Otonashi-san?

— Qual é a sua justificativa para isso, Hoshino?

Mesmo que ele me pergunte, não sei como responder. Nem sei o que fiz de tão imperdoável e obviamente não posso simplesmente perguntar também. Portanto minha única escolha é ficar em silêncio.

Vendo minha atitude, Miyazaki-kun suspira profundamente de forma quase artificial.

— Tanto faz. Não vou ficar tocando nesse assunto!… Porém, o outro caso é um assunto pessoal.

Ele continua sem mudar de atitude.

— O segundo marido da minha mãe… bom, talvez isso seja fora de contexto, de qualquer forma, Ishihara Yuuhei é o segundo marido da minha mãe.

Ele admitiu sem hesitar.

— …Miyazaki-kun. Você pode nos falar mais sobre Ishihara Yuuhei?

— Não, não posso… só pelo que já disse você deve ter uma ideia de que isso é um assunto familiar pessoal.

— Nós temos nossos motivos. O fato de que conheço esse nome já não mostra o quanto isso é importante?

A expressão dele se fecha ainda mais, mas ele assente mesmo com certa relutância.

— … tudo bem, vou te falar.

Como o assunto é delicado ele fez com que nós nos afastássemos da sala em direção ao corredor.

— Bom, não é como se tivesse algo a esconder…

Dizendo isso ele começou sua explicação.

Os pais dele se divorciaram quando ele estava na quinta série. Aparentemente não se amavam mais. Os dois encontraram novos parceiros e foram viver com eles. E no caso da mãe, o parceiro era Ishihara Yuuhei.

Nem o pai nem a mãe queriam levar Miyazaki-kun junto quando se separaram já que ele era como um símbolo da vida passada deles. É claro, nenhum dos dois dizia isso, mas não é algo que se possa esconder então ele percebeu.

Miyazaki-kun não sabia o porquê daquela situação. Mas para ele, como filho, os motivos não faziam diferença. Ele foi traído por eles, e isso não podia ser perdoado. Depois de muitas discussões ficou decidido que o pai teria a guarda. Mas era impossível para ele viver com o pai e a madrasta. Se recusando a morar com eles, começou a viver sozinho a partir da sexta série e seu pai apenas lhe mandava dinheiro.

Pelo que parece… até o início do ensino médio ele se considerava a pessoa mais azarada do mundo graças a essa estranha situação familiar digna de um drama barato. Naturalmente ele criou ressentimento contra seus pais responsáveis por essa situação, pela sua madrasta e por Ishihara Yuuhei.

— É por isso que todos eles deveriam morrer.

Ele disse em uma voz fria e sem emoção.

— Entendo como você se sente, mas não devia dizer isso.

— Obrigado pelo seu ingênuo conselho — disse em um tom sarcástico —, isso é o suficiente?

— …Sim. Obrigado por nos contar sobre esse assunto delicado.

— Oh? Ser tão educada assim não combina com você.

— Surpreendentemente você também tem seus problemas, huh?

— Obrigado pela simpatia.

O sinal toca nesse momento.

— Muito bem então, vou voltar para o meu lugar. Ah, e Hoshino…

Antes de entrar na sala, Miyazaki-kun olhou para mim pela primeira vez desde que começou a falar.

— Não me entenda mal. O fato de ter respondido as perguntas da Otonashi não significa que perdoei o que você fez. Aquilo foi imperdoável.

Deixando essas palavras, ele voltou à carteira dele. Os outros alunos sorriram para ele, aprovando a atitude dele contra mim. Talvez, ele tenha dito isso no caminho intencionalmente para ser ouvido pelos outros.

… isso é cruel de mais.

Deito o rosto na minha carteira e cubro minha cabeça com meus braços.

— Kazuki, estou voltando para minha sala. Você não esqueceu o que te disse no caminho, certo? Tente fazer aquilo.

Ergo minha cabeça relutantemente, pego meu celular e envio uma mensagem em branco para ela. Otonashi checa a caixa de entrada e assente com a cabeça. Em seguida apago a mensagem da caixa de saída.

— Não se esqueça de mandar a mensagem durante as aulas!

Me mande uma mensagem a cada dez minutos. Essas foram as instruções dela. Assim, ela será capaz de perceber o momento da troca entre [Ishihara Yuuhei] e [eu]. Afinal, [Ishihara Yuuhei] não sabe sobre isso e, portanto, não irá mandar a mensagem em branco.

Bom, mas já que nós não sabemos de todas as características da ‘Sevennight in Mud’, ainda não podemos dizer que essa é uma medida eficaz.

— Precisa de mais alguma coisa?

— Não, Aya.

Ela parece perplexa por apenas um segundo, mas no final deixa a sala sem dizer mais nada.

Inconscientemente deixo escapar um suspiro.

… Ishihara Yuuhei é o marido da mãe de Miyazaki-kun? Então é essa pessoa que está no meu corpo? De alguma forma não faz sentido um adulto querer assumir o corpo de [Kazuki Hoshino].

De repente meu celular começa a vibrar. Eu o abro instantaneamente. Uma nova mensagem foi recebida. O nome do remetente é «Maria Otonashi».

Hmm, será que ela se esqueceu de dizer algo? Ah, ou talvez seja algo que ela não possa dizer em voz alta. Havia apenas uma linha de texto. Algo bem simples, provavelmente escrito considerando a possibilidade de eu ser [Ishihara Yuuhei].

«Não acredite».

Ah, certo. Por que Miyazaki-kun está tentando interferir conosco desde ontem? Uma resposta vem à mente imediatamente. Isso é… Porque Miyazaki-kun é aliado de [Ishihara Yuuhei]. Por causa disso ele está tentando se aproximar de nós forçadamente. Para poder contatar [Ishihara Yuuhei] sobre a nossa situação.

Não devo acreditar nas palavras dele, já que ele pode estar envolvido nisso. Deve ser isso que ela deve ter tentado passar com essa mensagem. É claro, não acho que a pessoa da qual ele falou seja o mesmo [Ishihara Yuuhei] dentro de mim. Mas por outro lado, não acho que tudo o que ele disse foi mentira. Os sentimentos expressados no rosto dele enquanto falava não podem ter sido falsos.

Voltando a olhar para o celular, leio o conteúdo da mensagem mais uma vez.

«Não acredite».

… Ah, talvez ela queira dizer algo diferente. Talvez não seja simplesmente «não acredite» «no que Ryuu Miyazaki disse».

Talvez, não deva acreditar… em nada. Só posso saber o que [Ishihara Yuuhei] fez com o meu corpo, ao ouvir sobre isso através de terceiros. Mas não tenho aliados entre esses terceiros. Até Miyazaki-kun, Haruaki, Kokone, Daiya e Aya Otonashi, nenhum deles é meu aliado.

Apago a mensagem. Otonashi-san me mandou apagar qualquer mensagem dela imediatamente após ler.

Inconscientemente cerro meu punho.

— …por quê?

Por que não tenho nenhum aliado, mesmo quando [Ishihara Yuuhei] tem um?

 

02. Maio (Sábado) 09:05

Surpreendentemente [Kazuki Hoshino] está na sala de aula. Tinha certeza que ele ainda estaria algemado no quarto da Maria Otonashi. Realmente me surpreende o fato de [Kazuki Hoshino] ter vindo à escola apesar da situação terrível aqui.

Foi Maria Otonashi que fez ele vir? Queria obter informações? Se for isso, ela realmente é cruel.

Bom, tanto faz. De qualquer forma, o resultado não vai mudar.

O mundo de Kazuki Hoshino vai ser destruído. Afinal de contas, preparei tudo para que a situação de Kazuki Hoshino piore só por estar junto de Maria Otonashi.

Por que me confessei para Kokone Kirino? É claro, para destruir a vida social de Kazuki Hoshino.

É claro, a razão para ter escolhido esse método é apenas um detalhe da minha vingança. Afinal, isso pode ser perdoado? Ele ter uma amiga tão íntima enquanto já é abençoado o suficiente tendo Maria Otonashi como amante?

Por isso decidi destruir a relação deles com uma confissão. E os resultados foram imediatos. Além disso, as repercussões foram tremendas. A confissão foi uma bomba muito mais poderosa do que poderia ter imaginado.

Oomine me atacou. Na verdade, o que acabou criando aquela situação foi algo que fiz sem sequer ter intenções de ferir os sentimentos dela.

Apenas disse:

«Vamos lá, me deixe ouvir sua resposta!»

Disse aquilo apenas para acertar a situação entre nós. Mas Kirino ficou chocada por alguma razão e caiu em lágrimas, o que fez Oomine reagir desproporcionalmente e me atacar. Por que isso aconteceu? Não entendi na hora, mas pensando bem, é simples.

[Kazuki Hoshino] e [Ishihara Yuuhei] não compartilham das mesmas memórias. Por exemplo, assumindo que Kirino já havia dado sua resposta a [Kazuki Hoshino]. E então fui e pedi a ela uma resposta. Como essa situação seria percebida por ela? Não posso dizer com certeza, mas isso provavelmente machucaria os sentimentos dela.

Apesar de que ainda não sei por que Oomine reagiu de forma tão desproporcional. Ouvi rumores de que ele talvez sentisse algo pela Kirino. Apesar de nunca ter sido capaz de confirmar nada apenas observando a atitude dele, esses rumores podem ser verdade no final das contas.

Apesar de não ter visto com meus olhos, ouvi isso de Usui Haruaki.

Pelo que parece, no momento em que Oomine me atacou, a maioria dos alunos da sala 2-3 estavam assumindo que aquela situação surgiu a partir de uma briga causada pela confissão de Kazuki à Kirino.

O problema foi que Maria Otonashi apareceu naquele momento.

Naquele momento, como se fosse incapaz de fazer nada sem a ajuda dela, Kazuki a seguiu. E ignorou completamente os sentimentos de Kokone Kirino… a garota a qual ele supostamente se confessou e que ainda estava chorando. E mesmo depois disso, Kazuki Hoshino continuou andando ao lado da Maria Otonashi como se nada tivesse acontecido.

É apenas natural que os colegas dele tenham ficado loucos de raiva depois dele ter descartado a garota mais popular da sala daquela maneira. De qualquer forma, já que ele não pode fazer nada sem a ajuda da Maria Otonashi, não tem escolha a não ser agir sozinho.

E assim, a vida que ele levava está gradualmente desaparecendo. Não por minha causa, mas por causa do comportamento do próprio [Kazuki Hoshino].

Droga, isso é bom demais.

Avisei ao professor de que ia ao banheiro. Inesperadamente, quando saio no corredor, Maria Otonashi estava me esperando. Com uma expressão mal-humorada ela me pergunta:

— Por que você está sorrindo?

Nem tinha percebido até ela mencionar.

— Deve ser porque você estava me esperando, Otonashi-san.

— Hmpf, tentando agir como [Kazuki Hoshino], [Ishihara Yuuhei]?

Ela conseguiu perceber que sou [Ishihara Yuuhei] apenas por essa resposta? Não, ela já devia saber antes. Afinal, ela estava aqui do lado de fora da sala em horário de aula logo depois da troca. Não poderia estar aqui esperando desde o início das aulas. Provavelmente sabia que [Kazuki Hoshino] trocou para [eu].

Assumo que eles combinaram algum método para nos distinguir.

— Me siga.

Ela mandou.

— Aonde você vai me levar?

Um leve sorriso surgiu em seu rosto.

— Do que você está falando? Você não acabou de dizer o seu destino antes de sair da sala?

— Hah?

— Você vai ao banheiro, não?

 

02. Maio (Sábado) 09:14

— Você está bem com isso? Se alguém descobrir que você veio aqui com Kazuki Hoshino, vocês dois não vão ter sérios problemas?

Ela me trouxe até o banheiro feminino.

— …He.

Ela zombou de mim me vendo entrar no banheiro sem pensar duas vezes. No que ela está pensando? Certamente, os banheiros no terceiro andar desse prédio raramente são usados já que só tem aulas especiais nesse andar, menos ainda em horário de aula. Mesmo assim, por que ela escolheria logo esse lugar?

— Pode ser. Nós seriamos suspensos das aulas. Todos ficariam falando sobre nós.

— O que é isso, você está louca de desespero? Se você não se importa, devo fazer algum barulho para chamar atenção?

— Sinta-se livre para fazer isso.

Ela diz despreocupadamente zombando de mim. …Deve ter percebido que não tenho intenção de fazer isso de qualquer forma. Apesar de ter afetado a vida social de Kazuki Hoshino mais do que o planejado, não tem como eu querer criar uma situação ainda mais problemática. Afinal, irei assumir esses problemas quando Kazuki Hoshino desaparecer.

— [Ishihara Yuuhei], abra o celular do Kazuki.

— …Por que isso do nada?

— Abra a pasta de imagens e veja a terceira foto no topo.

Esse tom dela me faz querer resistir, mas começar uma briga aqui não vai me ajudar em nada então resolvo fazer o que ela diz. Abro a imagem. Era a foto de uma garota de aparência adorável em pijamas, parece ter sido tirada por ela mesma.

— Me diga, quem é essa?

— …Qual o significado dessa pergunta?

— Não faria sentido se te contasse.

Que honestidade. Olhei novamente para a foto. Uma garota desconhecida. Dizer para ela que não conheço essa garota provavelmente seria desvantajoso para mim, eu acho.

Foquei minha atenção no ambiente da foto. Isso é sem dúvidas um hospital. Pensando nisso, ouvi sobre um grande acidente dois meses atrás na região. Talvez essa garota seja a vítima? O nome da vítima foi… não me lembro.

… Não sei. Mas não custa nada chutar.

— Kasumi Mogi.

Usei o nome que ouvi da garota que só anda seminua, Hoshino Ruka.

— Sinto dizer, mas está errado.

Não deu certo, huh? Sem perceber expressei um sorriso amargo.

— Ok, não sei o nome dela… e daí?

— É mentira.

— Hah?

— É mentira que você errou. Ela realmente é Kasumi Mogi. Mas parece que você nunca a viu antes. Ela disse sem qualquer mudança de expressão.

— …Você não está sendo injusta?

— Injusta? É ingenuidade sua pensar que chutar uma resposta iria funcionar. Outra pergunta. Qual a relação entre Kazuki Hoshino e Kasumi Mogi?

Não tenho ideia do propósito dessa pergunta. Bom, acho que é exatamente essa a intenção dela. Tento uma resposta vaga.

— …Eles são amigos.

— E?

Ela não vai me deixar escapar com uma resposta tão simples pelo jeito.

— Como deveria te dar uma resposta melhor se não conheço Kasumi Mogi?

Isso é óbvio. Já disse para ela que não conheço essa garota. Não deveria ter problemas com essa resposta.

Você não conhece Kasumi Mogi?

Mesmo assim, Maria Otonashi fez parecer que cometi um erro fatal.

— …Não disse desde o começo? Não ficou claro que nunca vi a garota nessa foto?

— Sim, você não a reconheceu apenas pela foto. Então você nunca a viu. Mas por que você acha que “nunca viu” é equivalente de “não conhece”?

— … Você não está fazendo sentido algum. Nunca a vi, então claro que eu não a conhe…

…espere, isso não está certo.

— Entendo. Com isso já tenho uma ideia melhor da sua identidade. Você não é estudante da classe 2-3.

…Então esse era o plano dela.

«Kasumi Mogi» provavelmente não veio às aulas porque esteve hospitalizada. Por isso nunca a vi. Contudo, alunos da classe 2-3 a conhecem mesmo nunca a tendo visto.

É natural que eles reconheçam o nome da pessoa cujo lugar está sempre vazio, certamente esse nome é citado em várias ocasiões, não há dúvidas. É claro, a intenção dessas perguntas eram… diminuir o número de suspeitos.

— Hmpf, para ser honesta, estava acreditando que Ryuu Miyazaki era o ‘portador’. Mas já que você não pertence à classe 2-3, parece que eu estava errada.

Ryuu Miyazaki? Por que ela mencionou esse nome?

Não me diga que ele resolveu agir sozinho por não ter entrado em contato com ele hoje e acabou sendo capturado por ela…

— Você… não, o ‘portador’ tem que ser alguém que ao mesmo tempo não é colega de classe de Kazuki Hoshino, mas nos conhece bem. Provavelmente alguém que eu e Kazuki possamos pensar facilmente, certo?

Obviamente não disse nada.

— Além disso, tem mais uma coisa. É sobre Ishihara Yuuhei. Ryuu Miyazaki nos disse que Ishihara Yuuhei é o novo marido da mãe dele. Por que ele nos diria isso? É fácil deduzir…

Maria Otonashi declarou:

— …Ishihara Yuuhei não existe!

Prendo minha respiração.

— Esse nome era aleatório desde o começo. Você ou Ryuu Miyazaki decidiram usar isso para sua vantagem. Você tentou esconder a identidade do ‘portador’ nos fazendo pensar que «Ishihara Yuuhei» realmente existe, certo? E ainda criaram essa relação familiar complicada porque isso tornaria mais difícil qualquer investigação, não é mesmo?

Ele não existe, portanto nós podemos escondê-lo…heh? Entendo. Ela está quase certa. Só errou em uma coisa. Ishihara Yuuhei realmente é o marido da mãe de Ryuu Miyazaki. Mas nós podemos dizer que ele não existe mais.

Afinal Ishihara Yuuhei está morto.

— Isso era tudo? Posso falar agora?

Ela deve ter ficado confusa com meu pedido súbito. Maria Otonashi fica cautelosa.

— …Sobre o que você quer discutir?

— Isso deve ser do seu interesse também! Talvez seja algo que você já tenha tentado descobrir — com um sorriso, continuo falando — vou te explicar. O funcionamento da ‘Sevennight in Mud’.

 

02. Maio (Sábado) 10:00

Observando tudo o que está no alcance do meu campo de visão consigo obter informações e recuperar meu estado como Kazuki Hoshino. O céu. Concreto. O chão. Areia. Maria Otonashi. Minha mão. Kazuki Hoshino. Esse lugar é atrás do prédio da escola. Eu sou…eu.

Acho que me acostumei, após trocar tantas vezes. Mas exatamente por ter me acostumado, consigo perceber:

Isso é como uma morte temporária.

Desapareço completamente enquanto não estou no controle do meu corpo. Nem sequer sonho. Isso é como uma « morte » se aproximando de mim, passo a passo. Se não destruir a ‘Sevennight in Mud’ até 05 de maio, vou desaparecer para sempre. Em outras palavras, vou « morrer ».

— Kazuki?

Ela me pergunta. Assinto silenciosamente, mas me dou conta de que isso não é o suficiente e adiciono: — Sim, Aya.

Ela olha para o relógio e franze a testa. Percebo uma guitarra acabada em frente aos pés dela.

— Isso? É do clube de música leve.

Parece ser bem velha, mas já que as cordas foram trocadas e estão em bom estado provavelmente ainda deve ser usada.

… Por que tenho certeza de que ela trouxe isso sem permissão?

— Usava isso para matar tempo durante a ‘Rejecting Classroom’.

Ela pegou a guitarra e começou a tocar. A habilidade dela é impressionante, muito melhor do que eu, que mal consigo segurar a corda F. Ela parou seu desempenho e me entregou a guitarra.

— Eh?

— Toque, sei que você ganhou a guitarra da sua irmã.

— Ah, não… não posso tocar muito bem, sabe?

— Não me importo. Toque a guitarra o tempo todo enquanto falo. Assim posso perceber imediatamente se você trocar com [Ishihara Yuuhei].

Entendo, então esse é o motivo dela ter trago a guitarra. Sinceramente sou um péssimo tocador de guitarra então isso é meio constrangedor. De qualquer forma começo a tocar um som famoso de uma banda de rock antiga que estava no livro de prática.

— Estou surpreso por você saber sobre a guitarra da minha irmã.

— Não tem nada que eu não saiba sobre você.

Ela disse sem hesitação alguma.

— … Você não esquece de coisas do ‘Rejecting Classroom’, Aya?

Pergunto a primeira coisa que me veio à mente, sem parar de tocar.

— Mh bem, me lembro de tudo. …Não. Para ser exata, eu me esqueço de algumas coisas já que aquilo foi uma sequência tão longa de acontecimentos similares o tempo todo. Mas basicamente me lembro da maior parte de tudo.

Ela franze e olha para mim.

— É diferente para você?

— Sim, não me lembro muito sobre o que aconteceu. E mesmo que me lembre, não tenho o sentimento que deveria estar ligado àquela memória então é meio confuso. Meio que… igual à forma que você não se lembra do rosto de todos por quem você passa na rua.

Ouvindo isso Otonashi-san arregalou os olhos e fica congelada.

— Eh? Qual o problema?

— Ah, não…

Apenas fico mais perplexo vendo a óbvia perturbação expressada no rosto dela.

— Então você não se lembra de quase nada do que fizemos juntos dentro da

‘caixa’?

— Bem…, não.

— En…Entendo.

Ela ficou em silêncio por alguma razão. Olho para ela, esperando pela continuação, mas ela desvia o olhar.

— Agora que você diz, é plausível. Não tem como você se lembrar de tudo da mesma forma que eu. Você não é um ‘portador’. Entendo, finalmente faz sentido. Então esse era o motivo…

Ela continuou murmurando sem olhar para mim.

— … é por isso que você me chama de Aya.

— Eh?

— Não é nada.

Ela recuperou sua atitude e me olhou de forma séria.

— Ei, Kazuki. Você parou de tocar a guitarra.

Volto a tocar apressadamente. Esqueço até que ponto toquei então começo a música de novo do início.

— Caramba, não consigo focar no assunto principal porque você fica perguntando coisas sem sentido.

— Desculpe. Então, qual o assunto?

— …Mh, deixe-me ver. Já que não sei se posso confiar nas palavras de [Ishihara Yuuhei] vou deixar aquilo de fora nesse momento. Quero falar com você sobre como essa ‘caixa’ funciona enquanto ainda estou convencida de que você é [Kazuki Hoshino].

Concordo e a incentivo a continuar.

— Para ser clara, existem vários tipos de ‘caixas’. Posso estar deixando muita coisa de fora falando dessa forma, mas para simplificar: existem ‘caixas’ que funcionam dentro de si mesmas e ‘caixas’ que operam do lado de fora. A ‘Rejecting Classroom’ era mais do tipo interno, dessa vez, o ‘Sevennight in Mud’ é do tipo externo.

— …? Qual a diferença?

— A ‘caixa’ do tipo interna é para os casos em que o ‘portador’ considera que seu ‘desejo’ é impossível de se realizar no mundo real. Por exemplo, Kasumi Mogi, ‘portadora’ da ‘Rejecting Classroom’, não acreditava na possibilidade de refazer o passado. Portanto ela criou um espaço, removido do mundo real, onde ela podia realizar o ‘desejo’. Ou seja, ela colocou a si mesma e seus colegas no interior dessa ‘caixa’ onde ela podia acreditar que seu ‘desejo’ era possível — assinto e continuo tocando a guitarra.

— E então, o tipo externo é para os casos em que o ‘portador’ acredita que seu ‘desejo’ é possível no mundo real. O ‘portador’ do ‘Sevennight in Mud’ parece acreditar que seu ‘desejo’ é possível com o poder da ‘caixa’. Realmente, assumir o lugar de um corpo pode parecer plausível de acontecer no mundo real. Isso significa que não há a necessidade de usar um espaço restrito. O motivo pelo qual não consigo sentir perfeitamente essa ‘caixa’ tem relação a isso.

— Não consigo entender tudo, mas basicamente: se você não acredita que o milagre da ‘caixa’ pode acontecer no mundo real, ela se torna do tipo interna; e se você puder acreditar, ela se torna externa?

— Sim, basicamente é isso. Se formos classificar elas com um sistema de notas sendo o valor máximo 10, a ‘Rejecting Classroom’ ganharia um nível interno de nove e a ‘Sevennight in Mud’ receberia um nível externo de quatro. Quanto maior o nível externo, maior o impacto na realidade.

É óbvio que o impacto do ‘Rejecting Classroom’ foi quase inexistente já que os colegas que foram envolvidos não se lembram do que aconteceu. Mas então, isso quer dizer que a ‘Sevennight in Mud’ não vai ser dessa forma?

— Ah…

Finalmente percebo a crueldade da situação com essas palavras. Atualmente sou rejeitado por todos os meus colegas. Além disso, minha relação com o Daiya, Kokone e Haruaki foi destruída.

— Então…então…, meu cotidiano destruído…

— Sim, não pode ser recuperado.

Minha mão que estava tocando a guitarra até esse ponto para, fazendo o som desaparecer.

Não pode ser recuperado? Meu dia a dia de sempre não pode ser recuperado? Minha vida foi corroída além de qualquer reparo? Então… tudo aqui, não existe mais. Aquilo que quero recuperar, não existe mais.

O instante em que percebo isso, minha visão escurece como se todas as luzes do mundo tivessem se apagado no mesmo instante. Afinal, não tenho mais um objetivo. Não há significado em destruir a ‘caixa’. Perdi meu foco completamente. Não me importo mais.

Meus pés começam a se mover e me afastei de forma desajeitada. Otonashi-san diz algo, respondo de alguma forma. Não sei o que ela disse nem o que respondi, mas não faz diferença.

Quero gritar. Mas mesmo se gritar, ninguém vai me salvar.

 

02. Maio (Sábado) 11:00

Estou em uma loja de conveniência por algum motivo. Em minhas mãos, a edição recente de uma revista de mangás semanal. Chequei a hora no celular de Kazuki Hoshino. Deveria estar na terceira aula agora… então por que estou em uma loja?

Olhei ao redor, Maria Otonashi não está por perto. O que isso significa? Não me diga que eles terminaram. Tinha minhas dúvidas de que isso poderia ser uma armadilha, mas não posso deixar escapar essa chance de entrar em contato com Ryuu Miyazaki. Digito o número dele de memória. Por algum tempo só posso ouvir o som da chamada. Bom, ele deve estar em aula, então não pode atender imediatamente.

Cancelo a chamada e apago o número do registro de números discados. Ele imediatamente me liga de volta.

— Alô? Ryuu Miyazaki?

«…Hei, por que está me chamando pelo meu nome completo?»

Ele pergunta parecendo um tanto nervoso.

— Não sou ninguém. «Alguém» de quem você se lembra pode não ter te tratado pelo nome completo, mas para o eu atual, sinto que essa é a forma mais natural de se falar.

«…Então é assim. Então, você precisa de algo, não é? O que é?»

— Você deve estar em aula agora, não se importa?

«…Nada é mais importante do que você.»

— Me pergunto se está tudo bem para o representante de classe dizer isso. De qualquer forma estou feliz em ouvir isso. Certo, quero discutir como vamos prosseguir…

«Não acho que devamos conversar sobre isso na escola. Não quer vir ao meu apartamento?»

— Não me importo… Mas você sabe que não tenho certeza se meio dia é meu horário ou não, não é mesmo?

«Por isso propus meu apartamento. Nós apenas precisamos prender [Kazuki Hoshino] lá antes do meio dia. Uma da tarde é seu horário de novo, não?»

— Entendo. Então me deixe te contar um jeito interessante de se fazer isso! Na verdade Maria Otonashi me enganou da mesma forma antes…

Expliquei para ele o que aconteceu de manhã.

«Algemas, huh? Parece bom. Você pode comprar algumas antes de ir até o meu apartamento?»

— Claro.

«Bom, você sabe onde eu moro, certo?»

— Sim, te vejo mais tarde.

Desligo e com movimentos rápidos apago o número do registro de chamadas recebidas.

O apartamento dele hein? Agora que penso nisso, será minha primeira vez lá. Até agora sempre me impedi de ir. Que ironia ser capaz de ir só agora usando esse corpo.

 

02. Maio (Sábado) 11:47

O apartamento de Ryuu Miyazaki é em uma construção de dois andares, duas estrelas abaixo da mansão em que Maria Otonashi vive. Não havia travas automáticas também. Vou até a porta do segundo andar e toco a campainha.

O rosto dele aparece imediatamente

— Aqui… um presente.

Dizendo isso, entrego a ele uma embalagem de papel marrom. Um par de algemas para mãos e um para os pés estavam dentro. Ryuu Miyazaki aceita com quase nenhuma mudança de expressão.

Tiro meus sapatos e entro. O tamanho total do apartamento é de aproximadamente seis tatames³. Apesar de ser pequeno, ele o mantém bem organizado. Tirando um momento para me impressionar com a quantidade de espaço tomado pelo computador, me sento no chão.

— Ah, tenho uma reclamação. Você agiu por conta própria e disse coisas desnecessárias para Maria Otonashi, não foi?

Ryuu Miyazaki sorri de leve.

— Me chamar de ‘você’ assim, não é nem um pouco gentil.

— Aquela garota percebeu sua tentativa de esconder os fatos. Parece que ela também deduziu que estamos trabalhando juntos.

— Então é exatamente o que eu esperava.

Ele disse isso tão facilmente que me fez erguer uma sobrancelha.

— …Não te entendo. Você propositalmente revelou que é meu aliado?

— Bem, acho que sim?

Ei… isso parece nada mais do que uma desculpa ruim.

— Maria Otonashi duvidou de mim apenas porque tentei entrar em contato com Kazuki Hoshino. Nós estamos lidando com esse tipo de garota. Portanto cheguei à conclusão de que não seria capaz de enganá-la.

— Mesmo assim você não precisa ir e dizer tudo a ela!

— …Seu objetivo é fazer [Kazuki Hoshino] se render, não é mesmo?

— É, …e daí?

— Sem dúvidas, Otonashi vai ficar no seu caminho se você tentar fazer isso, já que não pode atacar [Kazuki Hoshino] diretamente. Em outras palavras, você pode apenas atacá-lo através da Otonashi. Mas como você sabe, ela é inteligente. Então seu ataque através dela não seria efetivo.

— Bem, você tem um ponto…

— Portanto cheguei à conclusão de que você apenas precisa de alguém que possa atacar [Kazuki Hoshino] diretamente, ao invés atacar através da Otonashi. Obviamente, sou o único que pode fazer isso.

— …Entendo.

— Para isso é melhor deixar claro que sou seu aliado. Mas se eu apenas revelasse isso diretamente, ela ficaria em guarda contra mim. Por isso fiz as coisas dessa forma!

Ele disse com indiferença.

Um leve sorriso surgiu em meu rosto espontaneamente. Não achei que ele levaria as coisas em tanta consideração. Já sabia que ele era alguém capaz, mas é melhor do que esperava.

— Já tenho um plano!

— Me diga mais.

Vamos mostrar um corpo a ele.

Ryuu Miyazaki disse.

— Você realmente acha que podemos fazer ele se desesperar assim? Bem, é claro que ele ficaria em choque ao ver um corpo, mas…

Ele deu um sorriso de canto ao ouvir minha pergunta.

— ‘Você acabou de matar essa pessoa’. Que tal dizer isso a ele?

Isso é… bastante interessante.

Instintivamente imito a expressão dele.

— Não se preocupe. Farei [Kazuki Hoshino] entrar em desespero.

Ele declara, abre a embalagem de papel e joga as algemas em minha direção.

 

02. Maio (Sábado) 12:00

Quem é essa pessoa na minha frente? Olhando melhor percebo que era o olhar de Ryuu Miyazaki que me observa, apenas sem os óculos.

Por que Miyazaki-kun está aqui…?

Estou com as mãos… e pés algemados em um quarto pequeno que nunca vi antes. A seriedade da situação é clara.

O que fiz agora, antes de trocar? …Não me lembro. Quando percebi que meu cotidiano não pode ser recuperado, minha visão escureceu… e quando percebi, já estava aqui.

— Esse é meu quarto, algemei você.

— … Por quê?

— Você pergunta o porquê? [Ishihara Yuuhei] não te explicou? Para fazer você se render.

Em outras palavras, ele não está fazendo isso por si mesmo, mas pelo bem de [Ishihara Yuuhei]?

— Hoshino. Por acaso a Otonashi te explicou os detalhes dessa ‘caixa’?

Balanço minha cabeça negativamente.

— Então ela manteve segredo, heh. Bem, certamente, é uma decisão apropriada. Afinal [Ishihara Yuuhei] havia dito tudo a ela na expectativa de que ela contasse para você, sabia? Pensando nisso, acho que ela realmente estava para me dizer algo que ouviu de [Ishihara Yuuhei].

— Não faz mal, eu te explico! …Haha! Realmente é menos problemático agora que revelei minha posição como seu inimigo.

— …Inimigo? O que?

— Nada demais. …Bem, você já sabe que essa ‘caixa’ vai eliminar sua existência dentro de uma semana, certo?

— Sim. …Mas posso perguntar algo antes?

— O que é?

— Não posso acreditar em suas palavras. Afinal de contas, você é meu inimigo, não é mesmo? Não posso simplesmente acreditar na sua explicação. E, além disso, você já tentou me enganar antes.

— É verdade — ele aceitou minha denuncia sem mostrar qualquer alteração — eu mesmo comecei a questionar se tenho algum talento como vigarista. É uma descoberta nova para mim. Mas por hora só vou te contar a verdade. Sinta-se livre para testar se isso é verdade ou não. Se não quiser ouvir, apenas tampe os ouvidos. …Bom, embora você não possa fazer isso por causa das algemas.

Ele disse friamente, se aproximou e me entregou um pedaço de papel tirado de um caderno.

— Isto foi entregue a mim por [Ishihara Yuuhei].

O que significa que [Ishihara Yuuhei] foi quem escreveu essa nota. A sua letra é inesperadamente bonita.

— Hoje é o quarto dia.

«09 – 10» é tudo o que está escrito na quarta linha. Embora nas linhas acima todas possuam três pares de números e a partir daí todas as linhas estão em branco.

— O que isso deveria significar…?

— Hoshino, você percebeu que seu tempo diminui a cada dia?

— …Ah?

— O tempo de [Kazuki Hoshino] é roubado por [Ishihara Yuuhei] pouco a pouco todo dia! Essa nota é uma lista das horas que foram roubadas de você. Por exemplo, «00 – 01» significa que o tempo da meia noite até uma da manhã não pertence mais a [Kazuki Hoshino] e sim a [Ishihara Yuuhei].

Volto minha atenção ao papel. O par «09 – 10» era tudo o que estava marcado no dia de hoje. Então [Ishihara Yuuhei] controlou esse corpo durante aquele tempo? Realmente não estava consciente naquele momento.

— Então ele só rouba três horas do meu dia? Então ele não é mais do que um parasita!

— …Hei, pense um pouco mais antes de falar. Disse que ‘o tempo é roubado’. O tempo não é roubado apenas aquele dia. O tempo continua sob o poder de [Ishihara Yuuhei] a partir daí. Por exemplo, o tempo que foi roubado de você da meia noite até a uma da manhã não pertencerá mais a [Kazuki Hoshino].

Ainda não estou entendendo completamente.

— Deus, você ainda não entendeu? Mh… talvez seja mais fácil assim, imagine que o dia é dividido em 24 blocos, e três desses blocos são roubados todos os dias. No primeiro dia seus blocos são reduzidos para 21. 18 no segundo. 15 no terceiro. E no sétimo dia só terão 3 sobrando. No momento em que o ponteiro apontar o primeiro minuto do oitavo dia, você não terá nenhum bloco restante. Em outras palavras: Fim de Jogo.

Finalmente entendo a situação.

Também entendo o motivo de ele estar me dizendo isso. Me contar sobre a ‘Sevennight in Mud’ normalmente seria desvantajoso para [Ishihara Yuuhei]. Então o motivo dele ter me contado mesmo assim é…

— Parece que você percebeu. Você entende agora, não? Portanto, não tem como isso ser mentira. Uma mentira pode trazer esperança no momento em que for descoberta. Por outro lado, quando você percebe que um fato cruel é a mais pura verdade, tudo o que há é desespero. E você pode perceber, se pensar um pouco sobre os eventos dos últimos dias, essa é a pura verdade do que está acontecendo com você, não é mesmo?

Sim. Meu próprio corpo me diz que isso é verdade.

— Devo calcular para você? [Kazuki Hoshino] ainda possui 7 blocos restantes para usar hoje, incluindo esse agora. 9 amanhã, 03 de maio. 6 no dia 04 de maio. 3 no dia 05. Se você não contar o bloco de agora, você só tem mais 24. Entende? Você mal tem um dia sobrando!

Ele está falando isso para me acuar.

Te acuar usando a pura verdade. É por isso que [Ishihara Yuuhei] faz questão de te revelar esse fato. Portanto, isso não é nada mais do que a verdade.

‘Ainda tenho quatro dias’. Era o que estava pensando. Mas isso foi um grande erro. O progresso dessa luta já está pendendo para o lado de [Ishihara Yuuhei]. Se apenas considerarmos o tempo gasto nesse corpo, [Kazuki Hoshino] já é a existência irregular entre nós. E fora isso, ele tem Ryuu Miyazaki como parceiro.

Ah. Realmente é uma situação desesperadora.

— Estou surpreso por você estar tão calmo.

Agora que ele falou… realmente estou. Isso é… plausível. Afinal, já tinha entrado em desespero, mesmo antes dele me contar isso.

— Miyazaki-kun, posso perguntar algo?

— O que é?

— Por que você está ajudando [Ishihara Yuuhei]?

Parece que ele não esperava por essa pergunta… Miyazaki-kun fica em silêncio.

— Você não o ajudaria se não tivesse um bom motivo, certo? Além do mais, [Ishihara Yuuhei] te disse que está no meu corpo, ninguém acreditaria em algo assim imediatamente não é mesmo?

…Mhh, certo. Por que não tentar fazê-lo dizer algo?

— Seria porque talvez: Na verdade você é [Ishihara Yuuhei]?

Um argumento irracional digno de riso caso esteja errado. Mas ele mantém sua atitude e continua em silêncio por algum tempo antes de responder.

— …Eu sou na verdade [Ishihara Yuuhei], hein? Bem…

Um sorriso amargo brota em seu rosto.

É verdade.

—…Hah?

Fico sem palavras diante dessa declaração inesperada.

— Honestamente, já estava cansado disso. Nunca imaginei que esconder seria tão exaustivo. Então não tem porque não tirar isso das minhas costas, vou te contar quais são as minhas circunstâncias.

Ele suspira, realmente sua expressão parece bem cansada.

— Hoshino. Existe algo que é importante para você?

— …Existe.

Talvez « existia » seria mais correto. Afinal, aquilo foi destruído.

— Então talvez você entenda como me sinto. Em minha opinião, algo realmente importante não é algo que você cuide com todo o cuidado do mundo, e nem algo em que você concentra sentimentos românticos. Não, algo realmente importante é algo que se torna sua base de sustentação. Portanto, se você o perder é como se sua espinha fosse removida e você se torna uma casca vazia. Portanto, algo realmente importante é… o equivalente de si mesmo.

— O seu « É verdade » agora a pouco não significa que você é realmente [Ishihara Yuuhei] não é mesmo?

— É claro que não. Se fosse, jamais permitiria uma conduta tão detestável.

Mesmo assim ele está apoiando [Ishihara Yuuhei] que permite isso. Porque [Ishihara Yuuhei] é alguém realmente importante para ele.

— Se esse é o desejo dele, vou realizá-lo. Se for para proteger aquela pessoa, farei qualquer coisa. Mesmo se for a coisa errada a se fazer.

Essa atitude não é teimosa ou cheia de orgulho. Sua expressão amarga deixa claro que existe um sentimento de renúncia sobre essa situação, mas ele vai fazer o que for preciso sem hesitar.

— …Entendo o que você quer dizer! Mas porque [Ishihara Yuuhei] é uma existência tão importante para você?

Ele murmurou — hm… — antes de continuar.

— Provavelmente… não, não provavelmente. Com certeza. A razão pela qual [Ishihara Yuuhei] é tão importante para mim, é… — ele cuspe as próximas palavras com desgosto — …porque sou o irmão mais velho dessa pessoa.

— Irmão mais velho? — Demoro um pouco antes de conseguir entender essas palavras. — Então a relação entre você e Ishihara Yuuhei era mentira? …huh?

Mas…eeh…

— Ishihara Yuuhei é realmente marido da minha mãe. Isso é verdade.

— …uhmm, então, Ishihara Yuuhei e [Ishihara Yuuhei] são duas pessoas completamente diferentes?

— Sim. Usar o nome daquele bastardo tornou as coisas um tanto complicadas, mas é exatamente o que você disse.

— Então não é [Ishihara Yuuhei], mas o seu irmão mais novo dentro de mim…

[Ishihara Yuuhei] é alguém tão importante para Miyazaki a ponto de fazer ele dizer que é como se ele mesmo fosse [Ishihara Yuuhei], apenas por serem parentes de sangue? …Não, não posso entender isso completamente. Tenho uma irmã mais velha. É claro que ela é importante para mim. Mas não acho que chegaria a esse ponto por ela, Ruu-chan.

— Não te contei? Sobre a situação da minha família?

Ele disse sem responder minha pergunta.

— Tudo aquilo era verdade, exceto ter escondido o fato de não ser filho único. Minha vida naquele ponto foi destruída pelo divórcio. Crianças devem depender de seus pais, não? Mas aqueles pais disseram « Nós não precisamos de você! ». Eu era um incomodo. Um lixo. Um erro do passado deles. Toda minha vida foi destruída. Pode parecer clichê, mas eu estava em total desespero. É quase como se eu sequer fosse humano.

Seus lábios formaram um sorriso de autodesprezo.

— Mas eu não era o único que não era mais humano. A pessoa que foi morar com a minha mãe naquele tempo. Esse outro não humano foi o que me salvou. Pode ter sido uma dependência doentia e mal colocada. Mas só voltei a viver por causa dessa dependência. Essa pessoa se tornou minha base de sustentação, e já não posso mais viver sem isso.

Com uma expressão assustadora ele me encarou.

— Não quero voltar para aquele estado de não humano. Vou proteger… a mim mesmo.

Entendo completamente que o irmão mais novo de Miyazaki-kun é uma existência insubstituível para ele.

— …Mas não entendo.

Sem dizer nada, Miyazaki-kun me apressa para continuar.

— Como [ele] pode ser feliz se tornando Kazuki Hoshino? Não acho que isso seja o mesmo que protegê-lo. Ele tem que encontrar o próprio caminho.

— Você provavelmente está certo.

Surpreendentemente ele concordou sem hesitar.

— Então…

— Não diga! Eu sei. Estou bem ciente disso. Mas já é tarde demais!

— …Huh?

 

02. Maio (Sábado) 14:00

Entendi por que é « tarde demais ».

Embora não tenha compreendido a situação quando vi aquilo tão subitamente, agora percebo que realmente é tarde demais.

Esses são os corpos de Ishihara Yuuhei e da minha mãe.

Novamente estou em uma casa desconhecida. Uma sala de estar comum sem nada digno de atenção. Exceto talvez pelo líquido vermelho espalhado por todo o lugar. Olho para os corpos. O corpo de uma mulher de meia idade. Sua cabeça aberta. A massa cerebral espalhada ao redor e o que restou de sua cabeça tinha a forma de uma lua crescente. O corpo de um homem de meia idade. Esse provavelmente é o verdadeiro Ishihara Yuuhei. Sua cabeça estava em um estado parecido com o da mulher. Mas não apenas isso. Seus membros estavam dobrados em direções inacreditáveis como se suas juntas tivessem sido completamente ignoradas. Uma cena terrível capaz de mostrar claramente o ressentimento de quem fez isso.

De qualquer forma, aqui realmente fede.

— Aah…

O fedor me faz observar os corpos calmamente, e meus pensamentos pulam vários passos. Por que… isso está aqui?

— Esse é o ataque dele contra você!

Uma lâmpada fluorescente ilumina palidamente os dois corpos.

— Esse assassinato foi cometido usando o corpo de Kazuki Hoshino. Você sabe o que isso significa certo? Enquanto você for Kazuki Hoshino, você não vai poder fugir desse pecado cometido aqui. Quando a polícia chegar até você, Kazuki Hoshino será punido.

Sua voz parece tão distante que mal é capaz de me alcançar. Ele me olha primeiro, mas logo deixa escapar um suspiro.

— … É o cenário que nós tínhamos planejado usar, mas esqueça isso. Como disse antes, quando uma mentira for descoberta criará esperança. Esses corpos são a causa. A causa pela qual seu corpo está sendo tomado.

— A causa…?

— Então ter matado esses dois foi o motivo que o fez querer roubar meu corpo?

Pelo que Miyazaki-kun me disse, acredito que [ele] veja a si mesmo como alguém sem sorte. O que [ele] iria ‘desejar’ ao obter a ‘caixa’ depois de ter cometido esse crime? Provavelmente não seria recuperar seu antigo estilo de vida. Ele não iria querer a si mesmo. É claro que ele iria querer roubar o corpo de outra pessoa.

— … Entendo porque o ‘portador’ colocou esse ‘desejo’ na ‘caixa’! Mas… eu ainda não entendo porque você está ajudando ele a completar a ‘Sevennight in Mud’. Não seria melhor recomendá-lo a destruir a ‘caixa’ e se entregar…?

— Eu não seria capaz de ficar ao lado de alguém preso, seria?

Realmente. Mas ainda assim, entre ir para a prisão e se tornar outra pessoa. A primeira opção ainda não é melhor…?

— Parece que você ainda não pode me compreender. …Ah, entendo. Certamente você ainda não sabe. Diga, você nunca se perguntou sobre isso até agora? Se [Ishihara Yuuhei] está dentro de você, onde você acha que está o corpo original?

Falando nisso, realmente nunca pensei sobre. Estava assumindo que ele desapareceu já que está dentro do meu corpo.

— Te dou a resposta! Pegue seu celular.

Isso foi o suficiente para entender. Pego meu celular e abro a pasta de arquivos de voz. Havia um novo. Começo a reprodução.

« Meu corpo original? Já matei aquilo! »

Minha respiração parou.

Então [ele] cometeu suicídio após matar Ishihara Yuuhei e sua própria mãe? Por que fazer algo tão tolo…!!?

— Afinal de contas, não seria um incomodo? Não preciso mais daquele corpo… não sou mais aquele lixo!

…Espere! Em outras palavras…

— É tarde demais, entendeu? Não posso mais proteger a pessoa que quero proteger.

…Certo, já é tarde demais.

Não apenas para Miyazaki-kun, mas para mim também.

Afinal de contas, o corpo original dele morreu. O que significa que o ‘portador’ está morto. Que, além disso, também quer dizer que não existe mais uma maneira de destruir a ‘caixa’.

Em outras palavras… a ‘Sevennight in Mud’ não pode mais ser impedida.

Nós estamos atrasados. Atrasados de mais.

— Não tenho outra escolha se não ser completar a ‘Sevennight in Mud’.

Ele disse aquelas palavras tão dolorosamente que imediatamente percebo que ele está atropelando os próprios sentimentos. Ele continuou:

— Portanto, Hoshino… acho que vou ter que eliminar você.

Lentamente ele ergue seu rosto pálido, seus olhos estão… vazios.

— Vou acabar com sua vontade de resistir completamente.

Sem me olhar nos olhos nem um momento, Miyazaki-kun continua.

— Mas não posso baixar a guarda apenas com isso. Afinal ainda tem Maria Otonashi. Então estive pensando. Fazer você se render e parar a Maria Otonashi.

Como fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Dessa vez o rosto de Miyazaki-kun se distorce minimamente.

Capturar Otonashi, mas fazer com que isso seja feito por você.

— …E isso faz com que eu me renda?

— Sim. Pense nisso: se capturarmos a Otonashi e a confinarmos até seis de maio, não teremos mais risco nenhum, isso é óbvio. Se Otonashi não puder se mover, a ‘Sevennight in Mud’ não pode ser revertida.

Então trair a Otonashi é o equivalente de abandonar meu último recurso por conta própria. Portanto, isso significa que terei me rendido se o fizer.

— Então, vamos executar o plano. …Hoshino, vou te confinar em meu apartamento e te usar como isca para capturar a Otonashi. Vou te levar comigo não importa o quanto você resista. Também não vou hesitar em usar violência. Bom, de qualquer forma, resistir não vai adiantar de nada no momento em que você trocar de novo.

— Então… por que você não espera que a troca aconteça?

— Se fizer isso, você pode tentar justificar para si mesmo que foi preso involuntariamente. Não faz sentido se você não trair Maria Otonashi por conta própria. Afinal de contas, preciso que você se renda.

…Entendo.

— Então o que vai fazer? Quer tentar resistir?

Miyazaki tira um soco inglês do seu bolso e o empunha. Seus olhos mostram claramente que isso não é um blefe.

Devo traí-la?

Ela, Maria Otonashi … não, Aya Otonashi.

O que há para trair? Nós não confiamos um no outro para começo de conversa. Além disso, Miyazaki-kun pode não ter percebido, mas não tenho mais qualquer desejo de resistir agora que meu cotidiano é irrecuperável. Devo enfrentar Miyazaki-kun? Claro que não. Por que escolheria uma opção dolorosa sem motivo algum?

— …

E mesmo assim, ainda não consigo dizer. Não consigo dizer uma sentença tão simples: “Vou trair a Otonashi-san”.

Por que não? Não entendo. Não vai ser diferente mesmo que não diga. Já desisti mesmo e quando houver a troca vou ser preso de qualquer maneira. O resultado não vai mudar. E mesmo assim, quando tento por minha traição em palavras meu peito começa a queimar como se estivesse em chamas.

— Mi… Miyazaki-kun, diga…

Bam.

— …Ugh!

Ele realmente não hesita em usar violência. Me retorço antes de sequer poder dizer algo. A expressão dele continuava vazia enquanto me observa. Ele não vai ouvir o que tenho para dizer. Com certeza vai continuar me atingindo sem misericórdia enquanto mostrar resistência.

Eu sei. Só posso escolher o caminho da traição. Não está tudo bem assim? Afinal, Aya Otonashi é uma inimiga. Ele me pegou pelos ombros e me forçou a levantar. Pressionando o punho armado contra meu estomago indefeso ele disse:

— Vamos, me deixe ouvir suas palavras de traição!

— Você pode…

Nada vai mudar, então não há qualquer razão para hesitar. Então por que…

— Você pode… me prender.

Por que meu coração parece que vai partir só por dizer essas palavras?

 

02. Maio (Sábado) 23:10

Estou tendo um sonho.

O mesmo sonho novamente.

 


Notas:

1 – 10 Tatames = Aproximadamente 33,06m²

2 – Sete Noites na Lama

3 – Aproximadamente 19,84m²



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