Volume 3
Capítulo 120: De Volta ao Lar (1)
As planícies do Leste eram uma vastidão de terras férteis, cultivadas com uma diversidade de espécies alimentícias. Grãos, frutas, temperos, até plantas para a produção de fibras têxteis, tudo poderia ser encontrado ali.
Ao centro de todas aquelas terras planas entrecortadas por córregos límpididos, havia uma montanha de cor escura que podia ser avistada a muitos quilômetros de distância. A Montanha Solitária, o castelo erguido com pedras escuras trazidas de tão longe que a história se confundia com as lendas.
Segundo o que haviam contado a Sônia, por fora era apenas uma montanha de entulhos enegrecidos, mas por dentro havia toda uma estrutura de salões, corredores e passagens secretas, além da capacidade de alojar toda a população das planíceis circundantes por dias a fio.
Parecia algo incrível. Como nos filmes e contos de fadas. Ela não acreditaria se não estivesse vendo com seus próprios olhos.
— … e como não existe algodão, eles utilizam a fibra de “cea” para produzir tecidos de maior resistência, enquanto que os mais finos e confortáveis são de “avlam”. — Elizabeth explicava.
— Oh. — Lídia parecia bastante entretida com as explicações da amiga — Mas o Felipe disse que também utilizam couro e metal em alguns adereços.
— Sim, mas aí depende do trabalho da pessoa. — Elizabeth continuou — Para essas pessoas que trabalham expostas ao sol, couro e metal protegem bem, mas não são tão leves quanto um tecido, e eles precisam de resistência na roupa para aguentar o desgaste.
— Roupas de cea? — Lídia pensou alto — Então há uma divisão socioeconômica na indústria de vestuário?
— Não. — André se intrometeu na conversa — Cea e avlam são duas fibras diferentes, mas produzidas da mesma forma. A diferença principal está na resistência e durabilidade dos fios, aqui no Leste não existe diferença entre quem usa qual. Inclusive, é comum que todas as pessoas possuam roupas dos dois tipos para diferentes ocasiões. As mais luxuosas só são usadas em festas importantes.
— O dia do sol por exemplo. — Zita completou.
— É o nosso festival de ano novo. — André explicou — Fazem fogueiras em todas as vilas da planície, mesmo à noite isso aqui fica claro como o dia.
Sônia ouvia tudo aquilo em silêncio. Como faziam apenas quatro dias que ela havia chegado nesse mundo, tudo era uma novidade exótica e pitoresca. Mesmo assim ela conseguia ver algumas coisas familiares entre os dois mundos.
As características físicas das pessoas, as plantas, os animais, as ferramentas, as formas de comportamento… Era como uma cópia medieva do mundo original. O que isso deveria significar? Os heróis passaram tanto tempo aqui e nunca perceberam isso? Ou será que perceberam e estavam escondendo algo?
Eles sempre escondiam algo.
Por mais que tentasse entender o conceito de um mundo paralelo, Sônia acreditava que seria impossível dois mundos diferentes evoluirem de forma tão parecida. Por mais que a questão de conseguir entender a língua que todos falassem já tivesse sido explicada por Elizabeth, que disse haver uma magia universal de comunicação, que inexplicavelmente fazia todos falarem a mesma língua, essa magia só afetava a comunicação.
O que explicava então haverem bois e cavalos ali? E aquelas plantas eram pés de trigo, ela tinha certeza. E mais na frente arroz. Haviam porcos e galinhas em uma vila que passaram um dia atrás. Não poderia ser coincidência.
As leis da evolução das espécies prezam que quando indivíduos são isolados geograficamente, suas características evoluem de forma diferente para se adaptarem às condições de cada local. Mas naquele exato momento havia um boi nelore buxando uma carroça no qual ela estava sentada.
— Os bois nelores são originários da India… — Ela pensou alto — Os primeiros que chegaram no Brasil foram levados de navio não muito tempo atrás.
— Então como é possível existirem bois da mesma raça aqui? — Zita completou a pergunta — Há uma lenda sobre isso, mas não posso atestar se é real.
— Estamos em um mundo paralelo, lendas podem não ser apenas lendas. — Lídia disse, aparentemente curiosa com a informação.
— Segundo os registros históricos, para não chamar de lendas, mais de cem anos atrás houve uma crise de alimentos que levou um reino inteiro à beira do colapso. Em poucos meses todo tipo de planta ou animal do reino definhou até a morte, sem nenhuma explicação.
A fome se instaurou, os reinos vizinhos ficaram com medo de ser algum castigo divino e fecharam as suas fronteiras, não permitindo qualquer ajuda. Então o rei daquele povo, vendo que não havia saída, arrastou seu trono até uma região logínqua, e usando seu sangue como sacrifício aos deuses, implorou por cinco dias cinco noites inteiros para que seu povo não morresse de fome.
Mas as pessoas não o abandonaram, elas ficaram ao redor dele. Para que o frio da noite não o fizesse perder o foco, enormes fogueiras foram erguidas e aqueceram o rei e seu povo durante as cinco noites.
Então os deuses se compadeceram da coragem daquele povo, e enviaram uma quantidade de bois, cavalos, porcos, galinhas, e sementes de diversas plantas. E nunca mais houve fome. Dali eles se espalharam por todo o continente.
— Que história linda. — Sônia comentou — Mas realmente parece ser apenas uma lenda. Por exemplo, por que o rei levaria seu trono para outro lugar?
— Para que seu povo não o visse sofrer por eles. — André respondeu no seu tom sério habitual.
— Se é assim… — Sônia se voltou para ele — Qual dos sete reinos foi o da lenda?
— Nenhum dos sete. Era o Reino de Pedra, do qual apenas sobram ruínas.
— Então o sacrifício não teve valor algum?
— Sim, teve. — André olhou para Sônia enquanto dizia — O trono de pedra permanece no mesmo lugar que o rei deixou, seu povo trouxe as pedras que eram paredes do castelo e colocaram em torno do trono, erguendo uma montanha. Ao redor da montanha plantaram e cultivaram o presente dos deuses. E todo ano, no soltício de verão, e mais dois dias antes e dois depois, celebram a vida e os sacrifícios de cada um. Acendem fogueiras e partilham comida, comemorando a fartura que espanta o medo da fome.
Sônia ouviu de boca aberta.
— Até arrepiou aqui! — Lídia disse.
— Essa é a origem do festival de ano novo do Leste? — Zita perguntou.
— Aposto que quando começou a contar a história, você não imaginava esse final. — André piscou apara ela.
— Não mesmo.
— Mas há alguma prova de que esse Reino de Pedra existiu, ou é mais uma lenda? — Sônia questionou.
— Sim, há! — Zita respondeu — Eu já fui lá nas ruínas, inclusive.
— As ruínas onde estam os segredos desse mundo que ajudaram a encontrar a sétima chave e selar a magia perdida? — Os olhos de Lídia brilhavam enquanto ela falava.
— Essa mesma. — Zita confirmou.
— Vocês verão o trono de pedra quando chegarmos na Montanha Solitária. — André disse lançando um olhar que revelava suas intenções de atiçar a curiosidade de Lídia — Mas devo avisá-las, não se aproximem, toquem ou sentem naquela coisa. Não importa o quanto ela atraia vocês. E fiquem longe da coroa também, o real motivo de terem trazido o castelo para cá é que tanto o trono quanto a coroa se tonaram artefatos amaldiçoados, desde então não há um rei sobre o Leste. Na verdade nunca houve.
— Você está mais falador hoje. — Zita sorriu para ele.
— Deve ser a felicidade de estar de volta…
— Essa é a sua casa, afinal.
— Sua casa… — Sônia murmurou baixo.
A carroça parou próxima da entrada da montanha, André agradeceu ao agricultor que ofereceu uma carona desde uma vila próxima, e foi se identificar aos guardas do reino.
Os guardas reconheceram o filho mais novo de Miraa e correram para dentro para avisar os outros filhos do Leste que André havia retornado. André ficou lá fora como se contemplasse a enorme montanha de pedra escura. Sônia teve até a impressão de que ele sorriu gentilmente.
Talvez fosse apenas uma impressão, um desejo dela. Querer que ele se sentisse apegado a um lar a ponto de sorrir gentilmente ao retornar, diferente do olhar de ódio que ela viu quando o olhou pela primeira vez acordado. É claro que Sônia o visitou quando ele ainda estava desacordado, mas sempre em segredo da Aliança Internacional. Até os heróis que sabiam dessa informação eram poucos e de confiança.
Mas um som de galope chamou a sua atenção na direção oposta, o bater de cascos de um cavalo e mais o chacoalhar de peças de metal lembravam a sonoplastia de filmes medievais. E quando ela olhou para trás viu um cavaleiro medieval, de verdade.
A armadura reluzente e o manto azulado se destacavam pelo brilho do sol.
Elizabeth ficou ao lado dela com uma expressão confusa, e por fim perguntou:
— O Cavaleiro de Prata?