Volume 2

Capítulo 84: Décima Sétima Página do Diário

A noite rendeu.

Após ter que pagar sua parte das despesas da briga da taverna, e foram muitas, Shiduu precisou ser carregada para uma pousada onde passamos a noite. Gouroo disse que era normal ela ficar bêbada assim quando eles saiam em missão e isso nunca havia atrapalhado nenhum resultado.

Carregar uma pessoa bêbada é mais difícil do que parece, então quando caí na cama, dormi como se não houvesse amanhã. Quando acordei no dia seguinte o sol já estava alto, e eu era o único no quarto da pousada. A moça na recepção me passou o recado deixado por Shiduu, ela dizia que ia visitar um amigo.

“Visitar um amigo” era o código para “investigar os suspeitos”, o que significava que eles iam demorar. E como eu não sabia extamanente qual era a investigação, ou sequer onde estariam, achei melhor ficar no quarto. Uma boa oportunidade para aprimorar mais um pouco o controle do meu poder.

Treinei o básico, lembrando que Miraa sempre dizia que o básico é o pilar que sustenta os especialistas. Sem o básico, a técnica mais avançada nunca estará completa. Então repassei toda a parte de concentração em sentimentos negativos e emissão da névoa negra, depois transformá-la em armas, tentando sempre ser o mais rápido e preciso.

Vendo que a minha habilidade não tinha diminuído, eu resolvi testar criar uma arma enquanto “descriava” outra. No começo foi bem difíci, já que exigia uma concentração alta, mas provei que não era impossível, apenas precisaria de mais treino.

Então tentei criar algum tipo de armadura que pudesse me ajudar em batalha, focando na proteção das partes vitais, e reduzindo o peso o quanto fosse possível. Quanto mais resistente me parecia a armadura, mais ela impedia a minha mobilidade.

Mas eu não desistiria tão fácil.

Ua coisa que percebi foi que a quantidade de névoa escura que parecia sair do meu corpo havia aumentado. Pouco tempo atrás eu não conseguia criar sequer duas adagas com a quantidade inicial, mas agora já dava para fazer duas adagas completas e ainda sobrava uma quantidade considerável.

Como eu conseguia usar apenas duas adagas por vez, o que é obvio quando só se tem duas mãos, então resolvi tentar criar um escudo. Mas um que eu pudesse criar e descriar rápido. Assim eu poderia me protege e não teria redução na mobilidade.

Eu sou um gênio.

Estava quase conseguindo formar uma imagem mental de um formato de escudo que fosse adequado ao meu estilo de luta, quando Shiduu entou chutando a porta. Passando por mim, ela apenas bufou e foi para a janela, ficando lá encostada no parapeito com cara de poucos amigos.

Não que ela tivesse muitos amigos, ou até eu sabia ela não tinha nenhum.

Surii e Gouroo entraram também, os dois estavam muito pra baixo. Surii se jogou na cama e ficou olhando para o teto, Gouroo sentou no chão, perto da porta.

— Isso foi cansativo. — Surii reclamou.

— Muito… — Gouroo concordou.

— E como foi? — Perguntei, inocentemente.

— Nenhuma pista. — Shiduu respondeu mais séria do que o normal.

— Tudo que conseguimos descobrir foi que faltam algumas carroças na caravana. — Surii disse e meio a um suspiro.

— Procuramos em todos os possíveis depósitos e estacionamentos usados pelas caravanas, e nada.

— E nenhuma informação que confirme a saída das carroças com escravos durante a noite.

Shiduu continuava na janela, olhando para a rua, ele parecia pensativa, então fiquei conversando com os outros sem querem incomodá-la.

— Nossa irmã acha que aproveitaram a noite na taverna para mover as carroças para algum lugar secreto. — Gouroo disse — Então ela está se culpando.

— Ela parecia aflita enquanto a gente procurava. — Completou Surii.

— Não precisa exagerar.

— Não estou exagerando, é verdade.

— Ela só é extremamente concentrada quando está em missão. — Gouroo torceu o lábio.

— Eu não disse que não é, apenas que ela estava preocupada. — Surii revirou os olhos.

— Não, você disse que ela estava aflita, o que é bem diferente.

— Calem a boca! — Shiduu disse irritada — Eu vou me deitar um pouco, então fiquem quietos, e se quiserem brigar, façam isso em silêncio.

Vendo que Shiduu não estava de bom humor, resolvi dar uma volta pela cidade, ficar com meus irmãos estressados me estressaria. Andar por aí sem rumo, sem ser reconhecido, seria bom, me lembraria os tempos de liberdade nas ruas da Cidade de Prata. Mesmo passando fome e correndo risco de vida, andar por aí quase invisível aos olhos dos cidadãos comuns era refrescante para a alma.

Lembrei de quando, em uma das minhas andanças por aquele lugar cheio de dor e miséria, invadi a mansão de um dos ministros para roubar algo de valor, e achei por acaso um estoque de drogas. Mas infelizmente estava com muita proteção ou eu teria feito muito dinheiro.

Foi quando eu me veio uma ideia.

Se uma mercadoria não pode ser descoberta, o melhor local para guardá-la é em uma propriedade que não chame atenção. Era assim que o Reino de Prata nunca conseguia achar o depósito das drogas, estavam guardadas na casa de um dos ministros e protegidas por soldados do castelo, quem imaginaria?

Seguindo esa linha de pensamento, eu vasculhei o centro da pequena cidade em busca do local mais bem protegido, e encontrei três possíveis esconderijos.

No primeiro local havia um prédio cheio de detalhes estranhos, não havia espaço que desse para guardar carroças. No segundo havia um pátio enorme, porém vazio. Então me restou o terceiro, chegando lá havia um muro muito alto.

Para a minha sorte, o que sempre foi muito raro, havia um buraco no muro, por onde vi cerca de vinte carroças estacionadas e cobertas com lonas. Mas apenas saber que ali tinham carroças não era suficiente, eu precisava dscobrir se os escravos estavam la.

Atravessando o buraco no muro com a ponta do pé para pegar apoio, eu me joguei do outro lado em apenas um impulso. Uma habilidade aprendida com os ratos e aprimorada nos treinos com Yobaa.

E lá estavam as carroças que faltavam na caravana, só podeira haver um motivo para estarem separadas das outras: alguém não queria que soubéssemos o que havia dentro delas. Mas eu já tinha uma noção do que se tratava, era onde os escravos traficados eram mantidos.

Mas ainda precisava ter uma certeza. Então me esgueirei pelas sombras, fugindo de rotas previsíveis e buscando o ponto cego dos guardas, até chegar a uma delas. Mas quando levantei a lona, mesmo esperando ver escravos presos, ainda me surpreendi.

A carroça estava cheia de crianças desnutridas, feridas, assustadas. A cena me quebrou. Não sabia como reagir diante de tantos outros seres humanos, com praticamente a minha idade, dentro de uma gaiola sobre rodas, sendo tratados como mercadoria.

Algumas daquelas crianças me olharam, mas não como se pedissem ajuda, estava mais par alguém que já havia desistido da própria vida. Mas a maioria apenas permaneceu como estava, inertes, esperando por um comando, talvez.

Não sabendo como reagir, saí dali e corri de volta para a pousada, precisava me reunir com os meus irmãos para decidir uma forma de salvar todas aquelas crianças e punir o chefe da caravana.

Agora que eu tinha uma prova tudo ficaria mais fácil. Tudo daria certo.



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