Volume 2

Capítulo 80: Décima Sexta Página do Diário

Existe uma regra nesse mundo que todos conhecem mas ninguém comenta. Uma regra velada, não que seja tabu, mas porque ninguém precisa falar nada, pois todos deveriam saber dela.

O problema é que como alguém que veio de outro mundo, eu desconhecia essa regra.

Até aquele fatídico dia.

Após sairmos da Montanha Solitária fingindo sermos uma pequena caravana de mercadores de grãos em direção à fronteira com o Reino do Norte, nos encontramos “por acaso” com os suspeitos de traficar escravos.

Quando digo “por acaso”, significa que esperamos eles por quatro dias, e tivemos uma rota planejada e a velocidade controlada para dar tudo certo.

A infiltração foi um sucesso, Shiduu era muito boa de conversa e rapidamente ganhou a confiança dos chefes da grande caravana, enquanto apresentava Surii como sua irmã, e dizia que estavam fazendo isso para manter os negócios da família enquanto seu pai estava muito doente.

Os caras quase choraram de emoção enquanto ela fazia todo aquele teatro. E eu, finalmente entendi pra quê fazer teatro.

Enquanto as duas davam uma de chefes, eu e Gouroo fazíamos trabalho pesado, fingindo sermos apenas simples trabalhadores. A pior parte foi levarem sacas cheias com grãos de verdade, mesmo eu sugerindo que colocassem palha apenas, então ficou muito pesado.

A viagem era lenta e chata, na maioria do tempo a gente só ficava nas carroças olhando para o horizonte e apreciando a paisagem. Para passar o tempo eu e Gouroo fazíamos jogos infantis de adivinhação. Quando estávamos muito entediados seguíamos a pé, para nos execitar um pouco.

No oitavo dia de viagem chegamos a uma pequena cidade, era repleta de pousadas e tavernas por ser um ponto de passagem da maioria das caravanas de mercadores que seguiam para o norte.

Shiduu nos avisou que faríamos uma parada de dois dias para que os animais descansassem. Entendi aquilo como uma oportunidade de tirar o tédio e poder treinar meu poder mais um pouco, já que na caravana sempre havia alguém por perto.

Mas os meu plano não contava com um detalhe, os outros queriam se divertir.

— Vamos tomar uma cerveja! — Shiduu disse.

— Somos crianças, não deveríamos entrar nesses locais, pior ainda, tomar cerveja. — Respondi.

— Fui criada em locais assim pelo meu antigo dono! Cerveja era nossa janta…

Lembrei que ela havia sido vendida por sua própria família para um ladrão e que ela foi usada para cometer diversos roubos, não que eu nunca tivesse roubado, mas pensar naquilo me deixou triste. Uma pessoa se referir ao outra como seu dono…

— Uma cerveja cura tristeza! Era o que meu antigo mestre dizia…

— Agora eu nem sei mais o que quero…

Muito relutante, mas fui com eles para a taverna, mesmo com a sensação de que aquele não era lugar para crianças. E o lugar era pior do que eu imaginava.

O cheiro forte de álcool, suor e comida podre me atacou assim que entrei. A falta de iluminação, a quantidade de pessoas, e o barulho alto que sufocava a tentativa de ter uma música no local me deixaram meio tonto. Foquei totalmente em seguir Shiduu, não seria seguro me perder dela naquele lugar.

Após atravessar totalmente o lugar, paramos perto de uma mesa onde apenas um homem estava sentado. Ele vestia um sobretudo surrado, e tinha os cabelos escuros bem desgastados. Com muita certeza não era uma nobre. Sobre a mesa de madeira desgastada havia uma caneca de cerveja e um prato com castanhas assadas.

— Esse é o nosso contato, Gruder. — Shiduu apresentou o homem — Ele é um dos melhores quando se trata de conseguir informações de ruas. O verdadeiro motivo de ter vindo pra cá foi para falar com ele, não apenas pela cerveja.

— Ela não descartou a cerveja… — Pensei.

— Não sou digno de elogios, princesa. — O homem fez uma mesura desejeitada — Sou um mero rato que vive de boatos e fofocas.

— Um rato? — Perguntei.

— É um antigo termo para aqueles que vieram dos subúrbios da Cidade de Prata, no geral somos orfãos que cresceram sobrevivendo das migalhas dos nobres, empurrados para longe, em valas e esgotos, fazendo o que mais ninguém teria coragem de fazer.

— Tipo comer pão mofado e limpar latrinas em troca de duas moedas de cobre?

O homem soriu como se me conhecesse. Shiduu parecia gostar do andamento da conversa, então apenas deixu que eu conversasse com ele. E ele indicando um banco para sentar, continuou falando:

— No meu tempo era apenas uma moeda de cobre! Mas algo me diz que você não comentou isso apenas por saber, a careta quando falou em limpar latrina… parecia que você estava limpando uma naquele exato momento…

— Os ratos me chamavam de Deco. — Estiquei o braço para cumprimentá-lo.

— Hu-hu-hu… — Ele riu com a boca cheia de cerveja enquanto apertava minha mão — O meu era grude… Apenas adicionei uma letra no meu nome quando saí de lá.

— Afinal, Ratos não tem nomes. — Concluí.

Ele sorriu para Shiduu, e sinalizou para que ela sentasse à mesa conosco. A partir daí as negociações de informações foram iniciadas, mas eu estava mais interessado no prato de castanhas assadas.

Quando eu estava quase acabando de comer os petisco que deveriam ser apenas tira gosto, Gruder se virou para mim e perguntu abruptamente:

— Aonde foram os ratos? Mesmo de longe eu procuro manter um pouco de vigilância, mas soube recentemente que todas as crinaças da toca desapareceram da noite para o dia.

Engoli em seco a última castanha e respondi meio receioso da reação dele:

— Eu os trouxe para o Leste… Queria ajudar eles.

O homem deu meio sorriso, se levantou e saiu. Mas ainda pude ouvi-lo dizer, como se fosse apenas para mim:

— Os ratos não podem deixar de existir, enquanto houver aquela cidade, haverão órfãos, alguém precisa cuidar deles.

Fiquei olhando o homem saindo pela porta e desaparecendo na escuridão das ruas. As palavras dele faziam sentido, mas eu já tinha pensado em tudo, ou melhor, Adênia tinha um plano para buscar e cuidar de qualquer órfão que aparecesse.

E foi justamente quando eu comecei a me perder nesses pensamentos que tudo começou.

Algo caiu abruptamente em cima da nossa mesa, mas antes que eu visse o que era, a coisa já tinha sumido. Foi muito rápido, e totalmente inesperado. Fiquei atordoado com o ocorrido, mas quando fui perguntar à Shiduu o que foi aquilo, vi que ela tinha um sorriso maligno no rosto.

— Melhor não incomodar. — Pensei.

Pensei em perguntar para Surii, mas ela estava com uma expressão tão psicótica quanto Shiduu, o que me deixou ainda mais confuso.

— Aaaaah… — Não segurei — o que está acontecendo?

— Ainda não aconteceu! — Respondeu Shiduu — Mas vai acontecer.

— Deco, essa será sua primeira vez, então tenha cuidado. — Disse Surii — Tente ficar calmo e não borrar as calças.

— Não sei o que está acontecendo, mas algo me diz que eu deveria ter ido ao banheiro antes… — Disse pra mim mesmo — Mas pelo nível desse lugar, nem banheiro deve ter…

— Vai começar! — Anunciou Shiduu.

— AAAAAAAHHHHHG…!

O grito grave de diversas pessoas ecoou simulteneamente pelo local, gelando minha alma. Vi que Shiduu e Surii também gritaram, extasiadas. Eu já não sabia se devia ficar com medo ou gritar também.

— Pega ele…! — alguém gritou no meio da multidão.

E essa foi a última frase que consegui entender.

Um segundo depois todas as pessoas começaram a freneticamente trocar socos e pontapés, móveis eram destruídos, canecas de cerveja eram arremessadas, até um barril foi jogado em alguém, mas o cara apenas se levantou, e mesmo sangrando, correu de volta para a bagunça.

Me escondi embaixo da mesa, se eu fosse acertado por um barril de cerveja, seria muito doloroso. Mas um cara enorme teve a ideia de usar a mesa para acertar a cabeça de outro que usava armadura. A mim, restou sair encolhido, me desviando dos brigões, em busca de um novo refúgio.

Vi no canto oposto o pessoal da caravana, era uma distância relativamente curta, mas que, por ter se tornado um campo de guerra, pareciam quilômetros. Não foi fácil, mas consegui chegar até eles. Lá fui recebido e protegido, enquanto assistia o desenrolar.

A maioria dos brigões já estava nocauteada ou havia sido arremessada para fora. Shiduu enfrentava sozinha duas mulheres esguias que pareciam ser gêmeas, um cara alto e gordo, e um anão. Surii estava dando um mata-leão em um cara grande com cicatriz no rosto, uma cena muito assustadora. Não demorou muito e o cara da cicatriz desmaiou.

Shiduu avançou no cara gordo, mas no último passo mudou de direção e atacou uma das mulheres, reconheci o movimento, foi o mesmo que Ladii me ensinou, mas com muito mais precisão do que eu conseguia fazer.

A primeira mulher foi arremessada ao ar com uma joelhada na cara, e repetindo o movimento, Shiduu ficou de frente ao gordo, nocauteando ele com socos tão rápidos que eu nem consegui contar quantos foram. A última mulher e o anão avançaram simultaneamente, mas Shiduu desapareceu diante dos olhos de todos, reaparecendo exatamente atrás dos dois.

Tão rápido quanto seu último movimento, ela nocauteou a mulher, e quando vi, o anão já estava de cabeça para baixo, Shiduu o mantinha preso pelo tornozelo. O anão foi arremessado pela janela, o que gerou aplausos e vivas da multidão de bêbados. Shiduu pegou a única caneca de cerveja ainda cheia no ambiente, subiu na última mesa inteira e gritou:

— Quem é o próximo?

Eu estava assustado, sem entender nada, foi quando senti tocarem meu ombro, era um dos líderes da caravana.

— Sua chefa é meio louca, mas é muito boa em brigas de taverna.

E novamente alguém foi arremessado junto a móveis e canecas de cervejas em nossa direção.

E a regra é: Sempre que tiver uma taverna, terá uma briga.



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