Volume 2

Capítulo 74: Movimento ao Sul

Os passos apressados que eram ouvidos no corredor, que outrora foi o mais silencioso do castelo do Reino do Sul eram os indícios de que a pessoa mais frequente naquele lugar estava de volta. Lu-Ji estava fazendo uma de suas visitas rotineiras à pessoa responsável por lhe restaurar as mãos.

Os guardas já o conheciam e sabiam exatamente o que ele procurava, portanto, nunca o paravam ou interrogavam sobre os seus motivos de estar ali. Assim como todos os dias naquele mesmo horário Lu-Ji chegou ao quarto de Yu-Kan e bateu à porta. Antes mesmo que sua entrada fosse permitida pela pessoa no lado de dentro, o arqueiro empurrou a porta e entrou.

Lá dentro uma pessoa de pele branca como as nuvens estava de costas, suas costas desnudas pareciam emitir luz própria, e seus cabelos negros estavam enrolados em um coque muito bem elaborado.

 — Lu-Ji! — A voz fraca de Yu-Kan passava um sentimento de felicidade, por mais que permanecesse de costas.

 — Yu-Kan… — Lu-Ji ficou um pouco receoso de entrar no quarto de uma pessoa enquanto ela não estava devidamente vestida — Eu posso voltar depois.

 — Não se preocupe, eu já estou acabando… — Yu-Kan parecia se divertir coma reação tímida do bravo soldado do Sul — Se ver as minhas costas te incomoda, pode ficar olhando para a parede.

Enquanto desviava o olhar, observou algo diferente, o ambiente que sempre fora escuro agora estava bem iluminado graças a uma janela que dava para a frente do castelo. Aproveitando a desculpa de olhar a nova janela, Lu-Ji se afastou de Yu-Kan, mesmo que desse olhares de relance para ver o que a outra pessoa fazia seminu.

Yu-Kan estava tomando um banho improvisado, ou pelo menos, era uma forma mínima de higiene pessoal. Passando um tecido embebido em água e perfumes por sua pele, o descendente do clã escorpião retirava lentamente o suor e o mal cheiro de seu corpo.

Tentando manter o foco, Lu-Ji procurou pelos arredores algo que lhe chamasse atenção, e viu quando um militar jovem, que saía pelo portão do castelo, entregou ao general de guerra uma trombeta feita de chifre esculpido e adornado com pedras preciosas. Era a trombeta real, ela só era usada em cerimônias de importância máxima, como há cerca de cinco anos quando Long-Hua retornou ao Reino do Sul e unificou os três povos mais uma vez e foi coroado como rei do Sul.

O general recebeu o objeto sob aplausos de uma multidão que rapidamente foi se formando, todos buscavam ver esse momento raro. Assim que todos os expectadores possíveis estavam reunidos, e o silêncio na área frontal era o máximo, o general soprou o instrumento.

O som da trombeta ecoou pelo castelo, podendo ser ouvido em todos os cômodos, assim que a trombeta silenciou, milhares de vozes entoaram um cântico de guerra, junto àquelas vozes ribombaram tambores em um ritmo de marcha militar. Lu-Ji olhou pela janela do quarto e sua visão o encheu de satisfação.

Tropas se alinhavam em frente ao portão principal do castelo, seus uniformes compostos por umas partes de armaduras em metal e madeira, e outras em tecido confeccionado com uma técnica mágica que deixava o material mais leve e resistente a ataques físicos. Pelo menos quatro mil soldados de infantaria, oitocentos cavaleiros e mil e quinhentos magos.

Uma força militar pequena em termos de números, mas a organização e treinamento garantia que a disciplina militar levaria à vitória sobre números cem vezes superiores, caso fosse necessário. Mas Long-Hua jamais levaria seus soldados em uma empreitada suicida, ele era inteligente demais para entregar todo o seu exército por uma única vitória.

Lu-Ji estava feliz por ser parte daquele magnífico exército, graças a Long-Hua e Yu-Kan ele tinha recuperado suas mãos, e assim como havia prometido, buscaria sua vingança e a glória do Sul.

Se virando de volta para Yu-Kan, Lu-Ji estava muito emocionado, tanto que até esqueceu que antes Yu-Kan estava em estado semidespido. Se lembrando tardiamente, ele ainda pensou em voltar a vista para a janela, mas não precisou.

Yu-Kan estava de frente com seu corpo devidamente vestido, o que deixou Lu-Ji mais à vontade para conversar. Não era comum para os membros do clã do vento conversar com alguém em estado de seminudez.

 — Essa janela é nova… — Yu-Kan disse calidamente.

 — É… Eu notei — Lu-ji desviou o olhar para a nova abertura que permitia a luz e o ar fresco entrarem no quarto de Yu-Kan.

 — Eu finalmente achei que é a hora de voltar a interagir com o mundo…

 — Uma janela já é um bom começo.

 — Um dia serei capaz de sair daqui…

 — E eu vou mostrar o mundo inteiro para você.

Yu-Kan sorriu de uma forma cálida, e a luz que entrava pela janela fazia as suas feições ficarem ainda mais bonitas do que da primeira vez que Lu-Ji viu. Jovem arqueiro sentiu um leve formigamento no estômago, e mais uma vez voltou-se para a janela.

 — Há alguém lá fora esperando por mim…

Ao ouvir essas palavras de Yu-Kan, Lu-Ji sentiu o formigamento ir sendo substituído por um aperto muito desconfortável no peito. De alguma forma, saber que existia mais alguém importante para Yu-Kan o deixava de mal humor.

 — Alguém muito importante? — Lu-Ji não segurou a curiosidade — Tipo, uma pessoa pela qual vale a pena arriscar a própria vida?

Yu-Kan assentiu em meio a um sorriso.

 — Mas não é da forma que você está pensando…

O rosto do arqueiro demonstrava uma mistura de sentimentos, de confusão a alívio, e Lu-Ji ficou sem palavras.

 — Eu nem sei como é o rosto dela…

 — Então é uma mulher? — Lu-Ji tentou manter o diálogo — E onde a conheceu se nunca sai desse quarto?

 — Ela é a minha irmã… — Yu-Kan disse olhando nos olhos de Lu-Ji com uma expressão severa

A expressão no rosto de Lu-Ji foi para culpa em menos de um segundo.

 — Aaah…

 — Nós duas fomos separadas há muito tempo, mas tenho o sentimento que ela ainda está viva em algum lugar.

 — Vocês… “duas”? — Lu-Ji ficou confuso mais uma vez — Como assim?

 — Eu e ela.

 — Mas falando assim parece que você também é uma mulher… 

 — Você achava que eu sou homem?

Lu-Ji engoliu em seco, ele tinha ficado em dúvida no início a respeito do sexo de Yu-Kan, mas achou que era um homem pelo seu modo de falar e se referir a si mesma com palavras masculinas.

 — S-Sim… — Lu-Ji gaguejou — É e-errado entrar t-todos o-os dias n-no qu-quarto d-de uma mu-mulher…

 — Então é ruim eu não ser homem? Ficou chateado em saber?

 — P-pelo menos e-eu não estava sentindo a-atração por u-um homem… 

 — Então eu sou atraente para você?

Yu-Kan se aproximou mais de Lu-Ji o encarando mais ainda. Lu-Ji apeas ficou muito corado e sem reação.

 — Espera, tá fazendo muita pergunta, não estou pensando direito…

 — Então não pensa em nada!

 — Isso é impossível.

Mal Lu-Ji acabou de falar e sentiu os lábios de Yu-Kan tocarem os seus, os pensamentos conflitantes, por aqueles poucos segundos, deixaram de fluir. Segundo que parecerem uma eternidade feliz e tranquila, onde nem mesmo os sons graves dos tambores e a gritaria extasiada no lado externo pareciam existir.

Quando finalmente os lábios se separaram, os olhos permaneceram ligados, não mais encarando um ao outro, mas parecendo admirar a alma. Mais alguns segundo de silêncio, e Lu-Ji sentiu que precisava dizer algo. Mas ele não era bom com palavras.

 — Obrigado por restaurar minhas mãos.

 — Não foi nada… — Yu-Kan sorriu e baixou a cabeça timidamente — Apenas fiz meu trabalho…

 — Acabei achando divertido esse tempo que passamos juntos…

 — Eu também…

 — Gostei de te conhecer…

 — Eu gosto de você.

 — Eu também gosto muito de você.

Com um beijo demorado, Lu-ji se despediu de Yu-Kan, ele torcia para que pudesse repetir o ato em seu retorno, mas na guerra nunca há certeza de que voltará vivo, ou ao menos se o seu cadáver voltaria para ser velado. Mas uma coisa ele tinha certeza, suas novas mãos fariam chover flechas sobre o Leste e o solo daquele lugar seria banhado em sangue.

 — Toda a glória a Long-Hua! — Lu-Ji disse saindo do quarto.

— Que a floresta, o mar e o deserto se curvem diante de sua grandeza! — Yu-Kan respondeu com uma voz tristonha.

Uma hora depois, Lu-Ji estava atravessando o deserto congelante em meio às tropas do Reino do Sul, guiando um destacamento inteiro de arqueiros do clã do vento em direção à guerra. Seu coração batia apertado, mas ele sabia que naquele momento tudo o que importava era a glória de seu povo e sua vingança pessoal.



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