Volume 2

Capítulo 72: Décima Quarta Página do Diário

Uma vitória “quase” fácil, um plano idiota que nos fez enganar e vencer uma tropa de especialistas, usando móveis e guardas de rua, não exatamente soldados ou guerreiros.

Entenda-se por guarda qualquer pessoa responsável por manter a lei dentro de um determinado perímetro, além de proteger as muralhas e portões da cidade. Soldados são, geralmente, membros de uma força armada, treinados para combate armado de diversos tipo. Guerreiro é o termo que designa as pessoas que treinaram a vida inteira para a guerra, eles não ligam para brigas de rua ou proteger portões, eles vivem para matar, vivem para a guerra, e morrem pela vitória.

Essa foi a explicação que Baruu me deu sobre a diferença entre as três denominações que as vezes são confundidas, mas no momento de desespero pode fazer a diferença. Em uma guerra um guerreiro pode fazer a diferença, a menos que seja seu inimigo, aí seria melhor um guarda.

Com a cidade de Parva em segurança, Baruu anunciou que estava no momento do nosso retorno à Montanha Solitária. Eu estava com muita saudade de minha casa nesse último ano, mas nem tanto da parte do treinamento. E com os ratos em segurança, eu poderia aproveitar sem culpa as maravilhas do Reino do Leste.

Após um dia de descanso e comemorações, o que foi altamente contraditório, pois acabei ficando mais cansado, saímos em uma carruagem enviada unicamente para nos buscar. Baruu e Surii estavam muito animadas, mas eu, o centro das atenções dos dias anteriores, estava colapsando. Dormi a vigem quase toda.

Quando acordei já estávamos próximos da nossa casa, o castelo de Miraa, a Montanha Solitária. Fiquei olhando a silhueta que lentamente se formava ao horizonte, se destacando em meio à planície granífera, lembrando que quase um ano atrás eu havia visto aquela cena pela primeira vez. E foi bonito da mesma forma.

Não pude conter o sorriso de felicidade.

Enquanto observava a silhueta escura da montanha/castelo ficar cada vez maior a medida em que nos aproximávamos, fiquei ouvindo a conversa das minhas irmãs, que passava por coisas simples, como os vestidos que haviam visto na festa dos heróis, até as inferências políticas dos discursos de cada um dos representantes e como isso poderia afetar a socioeconomia no continente.

Obviamente eu não entendia nada, seja de vestidos ou de política. Eu sequer sabia o significado da palavra “inferência”.

A conversa passou pelo objeto que tínhamos como missão afanar do castelo de prata, e que para a nossa felicidade o príncipe idiota, cujo nome sequer fiz questão de decorar, nos entregou de bandeja. Então me surgiu uma curiosidade, ou melhor, ela já existia, apenas a expressei.

 — Afinal, o que era aquele ovo exatamente? Porque todo mundo ali pareceu assutado quando viu. Não vai me dizer que é um ovo de dragão…

Após rir um pouco do que eu tinha dito, Baruu me explicou, enquanto Surii e eu tentávamos acompanhar as suas palavras.

 — Aquilo não é um ovo, é uma semente. Mas não uma semente comum, é um item sagrado, também chamado de artefato divino.

 — Tá, e o que isso significa? — Surii pareceu interessada no ovo, digo, semente.

 — É um objeto de valor inestimável, criado por um dos deuses, no caso da semente da Mãe Terra, a própria deusa da natureza criou aquele item e deixou um fragmento do seu poder ali dentro, dependendo de quem tiver aquilo em mãos pode ser muito perigoso.

 — Então nossa mãe mandou a gente roubar uma parada que poderia matar todo mundo? — Perguntei.

 — Eu não disse isso! — Baruu revirou os olhos — Perigoso não significa unicamente capaz de matar, mas que os poderes contidos naquele artefato são variados e, em parte, desconhecidos.

 — Mas por que roubar aquilo? — Surii perguntou também — Digo, tá certo que é perigoso, mas ela mandou nós três para roubar uma “coisa” criada por um deus em pessoa.

 — É uma questão de equilíbrio de poder. — Baruu se encostou na lateral da carruagem e, fechando os olhos, suspirou e continuou — Cada reino já tem um item sob seu controle, isso é uma das garantias de igualdade bélica, então se o Reino de Prata possuísse dois artefatos e mais os heróis, poderia se sentir tentado a dominar os demais territórios como já aconteceu em outros momentos ao longo da história.

Ambos, Surii e eu, assentimos concordando como que Baruu tinha acabado de explicar, fazia todo sentido, se o Reino do Leste já tinha um artefato sagrado, com a semente teria dois, e o Reino de Prata tinha um artefato e os heróis, consideremos um empate técnico.

 — Só mais duas dúvidas… — Ergui a palma da mão enquanto falava — Se os deuses fizeram “artefatos”, e são 32 deuses, então devem existir mais uma penca de trecos divinos por aí, certo?

 — Exato, com o aparecimento da semente da Mãe Terra, somam 8 artefatos em poder humano, um em poder de cada reino e mais a semente. — Baruu respondeu com um sorriso — E a outra dúvida?

 — O que significa “bélico”?

Após rir desenfreadamente enquanto eu respirava fundo para segurar a vontade de esganá-la, Baruu me explicou o significado de “bélico”, além de outras palavras que eu não tinha o costume de ouvir ou usar no cotidiano. Assim, antes que víssemos, chegamos à Montanha Solitária.

Em nossa chegada fomos recepcionados como heróis, Miraa e os nossos irmão foram nos esperar nos portões do palácio, e cada um de nós recebeu um abraço acolhedor de boas vindas. Algo realmente incrível.

Eu finalmente comecei a entender o significado de família.

Os ratos também estavam nos esperando, ou melhor, agora se chamavam “Pessoas Livres do Leste”. Adenia, que os liderava, parecia muito emocionada e animada com a nova vida, até mesmo parecia estar mais bem nutrida, todos eles estavam. E agora usavam roupas de verdade, não os trapos que recolhíamos no lixo ou roubávamos em algum varal.

Após mais um dia de comemorações eu estava ficando mal acostumado com o estilo de vida opulento e hedonista, duas palavras que Baruu me ensinou quando eu disse que preferia festas e comemorações do que o espancamento disfarçado de treinamento diário.

Uma pena que no dia seguinte a minha boa vida chegou ao fim, quando fui informado por Miraa em pessoa que o meu treinamento chegou a um novo nível, e ela ia me treinar em combate e que eu ainda teria que manter os estudos e fazer aulas extras de teatro.

 — Teatro? Para quê?

 — Você é o meu espião, precisa saber se disfarçar e agir conforme a situação.

Uma regra não comentada mas seguida por todos no Leste era: Nunca, jamais, sob nenhuma circunstância, discuta com Miraa. Então apenas concordei com o que ela tinha dito e fui me informar sobre as tais aulas de teatro.

Então a minha nova rotina mudou de “acordar – estudar – apanhar – dormir” para “acordar – estudar – apanhar de Miraa – teatro – dormir”. Eu achava que Yobaa era violento, mas após a primeira aula de combate com a minha mãe adotiva, senti saudade das sessões de espancamento com o meu irmão mais velho.

Eu achava que o pior de tudo era ter que fazer aula de teatro todo quebrado depois de levar uma surra de Miraa, mas estava enganado, com o tempo ela começou a fazer uma pergunta complicada no final do treino e eu deveria ter uma resposta até o treino do dia anterior, ou minha tortura seria pior.

Nem sempre eu conseguia pensar em uma resposta satisfatória, mas já me considerava capaz de ao menos apresentar algo para tentar evitar a surra em dobro.

Então um certo dia veio a pergunta que mudou tudo.

 — O que significa ser um espião do Leste?

Naquele momento achei que era apenas uma pergunta como qualquer outra, mas o que eu não fazia ideia era que as implicações da resposta envolviam o meu destino e o do Reino do Leste.

 



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