Volume 2

Capítulo 71: Uma História Carregada de Dor e Ódio (2)

Lídia ouviu a história de André em silêncio, prestando atenção a cada detalhe como se buscasse achar alguma pista dentro daquelas palavras angustiantes que descreviam um momento triste da vide André.

Durante alguns minutos de silêncio, que André aproveitou para ficar encarando o céu azul e as poucas nuvens, Lídia ficou imaginando repassou os pontos principais do que ouviu.

Se ajeitando no banquinho de madeira, ela esboçou uma expressão intelectual e, coçando o queixo, perguntou:

 — E o que você fez depois? — Instigou Lídia — Digo, depois que o portal fechou…

 — Eu fiquei parado lá… sozinho… abandonado, de novo… 

 — Que merda, hein!

 — Sim, é uma merda.

 — E depois?

 — Então ouvi passos vindo das escadas da torre do castelo, eram os guardas que finalmente vinham ver o que tinha acontecido, e como nunca fui bem-vindo àquele reino, com certeza seria difícil eles acreditarem que eu era inocente.

 — Não me diga que tentou explicar a situação para eles.

 — Óbvio que não. Não perdi tempo, estiquei a capa da armadura no chão, recolhi as partes usando o tecido azul-celeste como sacola, pus nas costas e me atirei da torre, agora era tarde para voltar atrás.

 — Peraí… Você levou a armadura? — Lídia perguntou animada — Me diz que escondeu ela em um lugar que ninguém consegue achar.

 — Eu viajei pelo continente durante um tempo, e escondi as partes dela em locais de difícil acesso, mas aquela coisa é um item sagrado, provavelmente já deve ter sido encontrada…

 — Item sagrado? — Lídia ficou confusa — Tipo as relíquias dos deuses?

 — Não “tipo”, a armadura do Cavaleiro de Prata “é” um item divino, um artefato místico criado pelo Deus Guardião em pessoa, por isso pode anular os poderes dos heróis.

 — Mas você conseguiu perfurar ela…

 — Eu não sou um herói… — André resmungou — E aquilo não era um poder, e sim uma maldição.

 — Você foi junto aos demais, ganhou poderes, teve sua cota de aventura e ajudou a impedir a guerra, é óbvio que você é um herói.

 — Não Lídia. — André sentou na rede e encarou a garota com um olhar feroz — Eu fui jogado naquele lugar de merda, seminu e sem memórias, vivi um ano como um rato nas ruas, roubei para sobreviver, sofri uma tentativa de assassinato sem saber o motivo, recebi uma maldição disfarçada de poder, passei por um treinamento desgastante, iniciei uma guerra, causei uma chacina, fui preso, tive que lutar contra a pessoa a quem mais amo, perdi amigos sem poder fazer nada, e quando finalmente achei que tudo tinha acabado, fui deixado para trás.

 — Você nunca vê o lado positivo das coisas?

 — E você acha que tem algo de positivo em tudo isso?

 — Penso que sim… Tipo a Elizabeth que te ama, e a sua família do Outro Mundo, e os seus amigos de lá, as pessoas que você ajudou a proteger, e está vivo. Se isso não é positivo, então me diga o seu conceito de positividade.

André não respondeu, apenas ficou encarando Lídia com um olhar triste e perdido. Enquanto pensava sobre o que ela tinha respondido.

Após poucos segundos, André baixou a cabeça e disse com uma voz triste.

 — Sinto saudade de Miraa… e de Surii e os meus irmãos, até Shiduu… as pessoas do meu grupo de guerreiros… droga!

Vendo uma lágrima cair no chão, Lídia sentiu um nó na garganta, o herói que impunha medo em todos os outros estava demonstrando fragilidade emocional em sua presença. Em todo o tempo de Aliança Internacional ela nunca passou por preparação para algo desse tipo.

 — Então voltar para lá não deve ser tão ruim…

 — Era o que eu pensava de voltar para cá.

Lídia fez uma careta confusa, e André, vendo que ela não tinha entendido, explicou.

 — Eu lembrei de tudo, todas as minhas memórias de antes de ir para o Outro Mundo, da minha família, minha mãe, meu pai, minha irmã… o dia em que morri… e desde então sonhei com o dia em que voltaria e me reencontraria com a minha família verdadeira, mas quando encontrei a mulher que me pôs “nesse” mundo, ela me tratou como um estranho e ainda me acusou de ser um impostor se passando pelo filho dela.

 — Fala da conselheira Sônia?

 — Sim, e pensar que ela foi a culpada de tudo desde o começo… e eu apenas queria era apenas ter a minha família de volta.

 — Culpada, você diz, mas de quê?

Antes que André respondesse, um som de veículo se aproximando interrompeu, e ele apenas levantou da rede, dizendo.

 — Não comente com a Zita sobre nada do que falei aqui… e… obrigado!

Lídia apenas assentiu, ao mesmo tempo Zita desceu do carro, esboçando o seu sorriso de sempre. O veículo deu meia volta e saiu pela mesma estrada de terra pela qual chegou.

 — Cheguei! — Zita anunciou, jogando uma mochila no chão.

 — Isso aí parece pesado… — Lídia se admirou da quantidade de poeira levantada por uma única mochila ao encontrar o solo.

 — É o nosso lanche da viagem. — Explicou Zita — Minha mãe ficou triste em saber que teremos que voltar para o Outro Mundo, mas mandou umas coisinhas para beliscarmos no caminho.

Um ar de felicidade surgiu no rosto de Lídia, principalmente por causa de que os biscoitos que Felipe havia deixado no porta-luvas do carro já estarem acabando. Uma pena a mãe de Zita não ser a “chef” da sua confeitaria preferida.

André deu uma conferida no conteúdo da mochila e comentou:

 — Aqui tem comida para sustentar 100 pessoas durante um mês, agora só falta água e armas.

Lídia riu da piada, até notar que Zita estava séria e concordando com a cabeça, enquanto apoiava o queixo na mão direita, em simbologia de reflexão.

 — Diz que isso é uma brincadeira! — Lídia reclamou — Eu como isso aí tudo, sozinha, em no máximo três dias!

 — Teremos que racionar as provisões! — Zita disse bem séria, olhando para André.

Dessa vez foi ele quem concordou fazendo uma expressão de seriedade.

O sangue de Lídia gelou, o sonho de ir para o Outro Mundo já se mostrava uma decepção antes mesmo de cruzarem o portal. Uma sensação de angústia dominou sua mente e sua respiração ficou mais pesada.

Após segundos de um silêncio angustiante, André e Zita desataram a rir.

 — Não é possível que ela acreditou… — Zita olhou para Lídia segurando a barriga e rindo descontroladamente.

 — Eu falei que ela leva tudo muito a sério… — André se desmanchava em gargalhadas dentro de sua rede.

 — Seus… — Lídia foi de desespero a ódio em meio segundo — Um minuto atrás a gente estava falando de coisa séria, o André até ch…

Antes que terminasse a frase, ela viu a alegria de André mudar para uma expressão gélida, que lhe arrepiou até a alma.

 — O André o quê? — Zita perguntou.

 — Ele apenas estava me contando como é noutro Mundo… — Lídia respondeu desviando o olhar para o chão — Achei que ele não era de fazer esse tipo de piada…

 — Não leve a sério… — Zita disse pegando amochila e entrando na casa — Foi uma aposta que fizemos, eu disse que ele não seria capaz de fazer uma brincadeira engraçada, e ele ganhou.

Zita entrou, e novamente Lídia e André ficaram sozinhos no quintal, alguns segundos foram necessários para processar o ocorrido.

 — Mas… peraí… — Lídia estava mais confusa ainda — E tudo aquilo que você me contou antes?

 — tudo o que eu te falei é verdade, foi o que aconteceu e é como me sinto.

 — E mesmo assim você fez uma piada dessas comigo?

 — Que eu me lembre, você mesma me disse para ver o lado positivo das coisas! — André respondeu, finalmente se levantando da rede — Então sendo positivo: Talvez a gente volte vivo do Outro Mundo… e isso não foi uma piada.

E de pé na porta da casa completou:

 — Agora, se puder, fique aqui fora até que eu diga que pode entrar… e tape os ouvidos… ou finja não ouvir os sons que virão de dentro. Porque eu vou cobrar a aposta!



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