Volume 2

Capítulo 70: Uma História Carregada de Dor e Ódio (1)

Era véspera do dia marcado para André e Zita retornarem para Outro Mundo conforme as ordens da Aliança Internacional. Zita saiu cedo para visitar a mãe e avisar da viagem para o Outro Mundo, enquanto isso André e Lídia faziam os últimos preparativos e repassavam os possíveis planos de ação deixados por Felipe no livro.

Após distribuir as hortaliças para famílias carentes da região, e deixar as galinhas com um vizinho que era dono de uma granja, André se deitou em sua rede e ficou contemplando o azul do céu por algum tempo. Lídia, que estava muito nervosa, pôs um banquinho de madeira perto da rede de André e começou a puxar conversa.

Ela sabia que André não era muito de conversar, mas não se importava, precisava falar para aliviar a tensão e o nervosismo. Para a surpresa de Lídia, o rapaz estava mais falante do que o normal, talvez também estivesse ansioso para o retorno ao Outro Mundo.

— Estou nervosa… — Disse ela.

— É normal. — Respondeu ele.

— Você tem alguma memória boa daquele mundo?

— Poucas, mas tenho.

— Então a maioria é ruim…

André deu silêncio como resposta.

— O que você espera encontrar voltando para lá?

— Minha mãe, minha família, meus amigos, meus inimigos, pessoas desconhecidas, morte, dor, sofrimento, guerra, o Cavaleiro de Prata e o traidor entre os heróis.

— Sei que o tal Cavaleiro de Prata fez muita coisa ruim, mas não entendo o porquê de acreditarem que algum de vocês trairia o resto do grupo se juntando a ele.

— Depois de tudo seria quase impossível, para mim, não suspeitar de algum deles.

— Como assim?

— O dia em que retornaram, eu estava lá, e mesmo assim fui deixado… — André se sentou na rede e encarou Lídia com um olhar triste — Mas o Cavaleiro de Prata passou pra cá.

— Já ouvi essa história de vocês contadas por cada um dos 32, e nunca vi motivo para desconfiar de nenhum deles.

— Quando você admira alguém ou confia naquela pessoa, a última coisa que faria é levantar suspeitas sobre ela. Por isso acredito que seja alguém muito próximo a Felipe. — André falou compassadamente — Vou contar a história, ou, pelo menos, a minha versão dela… preste bem atenção.

Lídia ajeitou no banquinho e encarou André, aguardando que o rapaz contasse a sua história, assim como Felipe, ela amava saber de tudo.

André se jogou para trás na rede, fechou os olhos e começou a contar:

“Quando a guerra acabou, e a sétima chave foi encontrada, eu voltei para a Montanha solitária para avisar que retornaria para o Mundo original, mas não foi como imaginei.

Após uma viagem longa a cansativa, sem sequer descansar para me recuperar das lesões da batalha final, eu cheguei à capital do reino de Prata, e mais uma vez aquele lugar se mostrou decepcionante.

Eu esperei por umas duas horas do lado de fora até que Leonardo aparecesse, apenas para me trazer a notícia de que todos tinham votado e a maioria decidiu que eu não deveria ir para o “Mundo Original”, eles ainda não acreditavam que eu tinha vindo de lá também.

Mesmo depois de tudo eu ainda era excluído do grupo, oito anos e ainda me consideravam um estranho, mesmo que nem todos eles tivessem ficado do mesmo lado, ao fim da guerra se abraçaram e pediram perdão.

Mas qual o motivo de me manterem a uma distância?

Fiquei triste e perdido, por oito anos eu estive preso naquele mundo, sem memórias, sem tranquilidade, em meio à guerra e a dor, pisando em sangue, esterco e cadáveres todos os dias, sofrendo e causando sofrimento.

E justamente quando achei que estava chegando ao fim, sou atropelado pela notícia de que terei que ficar preso aqui. Leonardo ficou me olhando em silêncio por alguns segundos antes de entrar novamente no castelo.

Enquanto eu via os portões se fecharam nas costas de Leonardo, mordi os lábios para segurar as lágrimas, a dor de ser deixado para trás só perdia para o sentimento de vazio na minha alma, tudo que eu sabia sobre mim mesmo foi o que eu vivi naqueles últimos oito anos.

Permaneci de pé em frente ao portão se saber o que fazer, para onde ir, sequer sabia o que estava sentindo. O portão novamente se abriu, um sorriso triste se revelou, e um corpo cansado se moveu lentamente em minha direção. Uma dúzia de guardas a cercavam para impedir que eu fizesse algo.

Como se fossem fortes o suficiente.

Zita veio se despedir, com olhos marejados e lábios trêmulos, sua pele ainda marcada pelas consequências de suas ações destemidas para pôr um fim à guerra, e seus ferimentos em recuperação, todos escondidos por trás das roupas longas, da forma imponente de andar e da elegância que somente a sacerdotisa do fogo possuía.

 — Eu não queria que fosse assim… — Ela disse.

 — Nem eu…. — Respondi.

Não dissemos mais nada, apenas deixamos as lágrimas rolarem, na minha cabeça passava um filme com tudo de ruim que havia acontecido, todas as mortes, o tempo que passamos longe, e as cicatrizes que causamos um ao outro, mas também lembrei dos bons momentos, que mesmo sendo poucos, ainda existiram…

Acho que na cabeça de Zita também passava algo do tipo.

Nos despedimos comum beijo longo e apaixonado, eu senti que ela não queria me soltar. E quando um dos guardas avisou que estava na hora dela retornar, ela olhou nos meus olhos e disse que me amava e me esperaria desse lado.

Eu nem soube o que dizer… que idiota que eu sou… 

Assim como Leonardo, eu a vi entrar e os portões do castelo se fecharem, significando que não restava nada mais para fazer ali. Virei de costas, já sem lágrimas no rosto e segui de volta para o Leste.

Eu estava saindo do castelo do novo rei, quando senti um abalo na energia vindo da torre principal, pensei em voltar e ver o que era, mas como eles já tinham deixado bem claro que eu não era bem-vindo, fiquei um tempo apenas olhando para a “porta” que flutuava acima da torre e me perguntando qual o motivo de abrirem tão cedo, não iam aproveitar a festa da coroação? 

Então vi que alguns deles estavam lutando, e eu apesar de ficar relutante por alguns minutos se deveria voltar… Ah, eu não perderia a chance de entrar em uma luta, principalmente contra o Cavaleiro de Prata, apenas me lancei em direção à torre, com certa dificuldade escalei pelo lado de fora e quando cheguei lá, apenas três permaneciam na luta…

Os mais feridos e os não-combatente passaram primeiro, então Léo, Zita e Anne ficaram para trás segurando o nosso inimigo comum. Zita e Léo atacavam o Cavaleiro de prata à distância e Anne o mantinha longe.

Zita usava suas chamas, Léo atirava raios, e o poder de Anne permite a ela mover as coisas com a mente, então ela apenas “empurrava” o cara de metal para longe… 

Mas a armadura tem a habilidade de neutralizar magias e poderes, devido a isso, na tentativa de proteger os demais enquanto atravessavam, Léo e Zita se feriram gravemente, e mesmo assim ela tentava usar uma forma de poder do qual ainda não tinha controle, e acabou por piorar a situação, isso somado ao fato de que seus ferimentos anteriores ainda não estavam totalmente cicatrizados.

Sem dizer nada, eu simplesmente entrei na briga contra o cara de lata, tentando dar aos três uma chance de atravessar. Mesmo cansada, ferida e esgotada, Zita atacava furiosamente o Cavaleiro, mas suas chamas não surtiam efeito… 

Para impedir que ela se forçasse mais, e acabasse por se machucar com seu próprio poder, eu agarrei o seu braço e puxei seu corpo contra o meu. Atordoada com a minha atitude repentina, Zita me olhou confusa, com aqueles olhos tão lindos, enquanto retraia suas chamas para não me machucar, não segurei a vontade e beijei-a. 

O meu ato surpreendeu a todos, inclusive o Cavaleiro de Prata, aproveitando o momento eu me separei dela e ataquei o nosso inimigo. No mesmo momento Léo arrastou ela para o outro lado, enquanto Anne me ajudava a segurar o Cavaleiro de Prata.

Ela conseguiu arremessar o Cavaleiro de Prata contra uma parede, e enquanto eu avançava para cima dele, Anne entrou pela porta, que imediatamente se fechou!

Eu ataquei o cavaleiro de Prata com toda a minha força, aproveitando que ele estava desequilibrado devido ao ataque de Anne. Senti minha mão atravessar o peitoral da armadura, em seguida a costa e entrar na parede atrás dele.

Assim que o meu ataque atravessou ele, a armadura se desfez, caindo aos pedaços, não havia forma dele ter fugido ou trocado de lugar com uma armadura vazia, eu estive de frente para ele desde que cheguei lá, e seria impossível que a armadura estivesse enfeitiçada para nos atacar.

Aquela era a armadura original, a única naquele mundo que tinha capacidade de neutralizar o poder dos heróis. Mas ela esteve vazia desde o início, alguém estava controlando a sucata de prata.

Só havia uma explicação: mais uma vez fomos todos manipulados. Então deveria haver um traidor entre os outros 32!

 — Mas teria volta. Ou eu não me chamo André Lima.



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