Volume 2

Capítulo 55: Décima Primeira Página do Diário

Dentro da carruagem especialmente projetada para ser veloz, nós cruzamos a Cidade de Prata com base no mapa que eu tinha elaborado, evitando rotas que pudessem ser perigosas. Eu acho que fiz um bom trabalho como espião.

A carruagem correu o a noite inteira, conforme estava previsto para a nossa fuga, com apenas pequenas pausas para os cavalos descansarem. Antes do nascer do sol o nosso cocheiro avisou que estávamos chegando à Grande Falha, a divisa entre os reinos de Prata e do Leste.

Senti um frio na espinha ao lembrar o que havia ocorrido há exato um ano atrás. Mas me fiz de forte, respirei fundo foquei na missão. Não poderíamos comemorar antes de estarmos em segurança.

Cruzamos a grande Falha por umas das três pontes que foram construídas misteriosamente em tempos tão antigos que ninguém sabe exatamente quando foi. Enquanto Baruu nos explicava sobre as pontes e a importância delas para a conexão entre os dois reinos, Ladii, o cocheiro que era na verdade um experiente soldado do Leste, nos avisou que estava na hora de uma pausa.

Concordo que era importante os cavalos descansarem, mas eu ainda tinha medo de sermos alcançados pelos soldados do reino de Prata. O nosso cocheiro/segurança fez questão de nos acalmar enquanto descíamos da carruagem, apontando para o nascer do sol e mostrando que lá na frente os que tinham saído primeiro estavam nos esperando para o café da manhã.

Enquanto eu deixava os outros irem na frente, Ladii tocou meu ombro e fez um sinal discreto para que eu aguardasse. Concordei com um movimento de cabeça, afinal, se ele queria ser discreto, talvez fosse algo que minhas irmãs não pudessem ouvir.

— Eu vi o que você fez lá no salão… — Ele me disse.

— Como assim? Você não estava lá fora? — Eu perguntei confuso.

— Não subestime a capacidade de alguém treinado por Miraa!

— Ta bom… Mas o que exatamente você viu?

— Vi que você tem um poder formidável, e acredito haver potencial em você, mas seus pés não acompanham os seus movimentos.

— Meus pés..?

Em vez de responder ou me explicar o que significavam aquelas palavras, Ladii apenas levantou o indicador da mão direita, em seguida sumiu do meu campo de visão, me deixando totalmente confuso.

Senti algo tocar a minha nuca, e quando me virei vi ele atrás de mim com a expressão calma e indicador apontado em minha direção.

— C-Como fez isso? — Eu perguntei animado.

— O segredo está nos pés. — Ele me respondeu se virando para sair — Olhe para o chão e não para mim.

Voltei meu olhos para onde Ladii estava segundos antes e notei a grama amassada formando pequenos semicírculos. Finalmente entendi, ele não tinha desaparecido, apenas se moveu muito rápido e de uma forma especial. Querendo aprender aquele movimento me posicionei com os pés onde os dele estavam e fui me movendo passando meus pés pelo amassado.

Eram quatro movimentos, o primeiro de 180º, seguido por dois de 270º, e mais um de 180º. Cada pé serviria de apoio duas vezes, iniciando com o esquerdo e finalizando com o direito.

Parecia ser um giro simples, mas colocava uma força tremenda sobre os tornozelos. Fiquei ali alguns minutos praticando para pegar a base do espaço e do sentido do giro. Até que ouvi Adenia me chamar para comer enquanto acenava com um sorriso largo.

Cheguei onde os outros estavam tomando café, peguei um pedaço de pão e saboreei, não era como os pães mofados como tempos atrás, eu podia ver a felicidade dos ratos enquanto comiam o que para eles era uma banquete. Enquanto para a comitiva do Leste, aquela era apenas comida simples de viagem.

— Quem diria que nós, ratos, poderíamos comer algo tão bom um dia? — Caniço Sorria enquanto mastigava uma fruta suculenta.

— Vocês não são mais ratos, agora serão pessoas livres para serem o que quiserem. — Baruu explicou — Bem-vindos ao Reino do Leste, aqui poderão ter um nome, uma casa, e o melhor de tudo, uma vida. Aqui serão cidadãos do Leste.

Baruu falava tão bem, com um tom acolhedor e a postura de liderança. Entendi o porquê dela ser uma diplomata.

— Pessoas livres… Do Leste? — Adenia olhou para Baruu com semblante feliz enquanto uma lágrima descia pelas suas bochechas estufadas de comida. — Não sei se um dia poderei retribuir a generosidade.

— Não é o momento para se emocionar, espere até chegarmos à Montanha Solitária. E não precisa retribuir nada, além do mais, eu preciso de você para continuar cuidado bem de todas essas crianças.

Baruu afagou os cabelos de Adenia, enquanto a líder dos ratos se desfazia em lágrimas, Surii não evitou de se emocionar e chorar abraçada com as duas. Em seguidas todos os órfãos retirados da Cidade do Leste se jogaram em cima das três chorando de felicidade, muitos nem entendiam o motivo, apenas estavam felizes.

Confesso que aquilo me tocou, eu fui um rato durante um ano inteiro, sabia exatamente as dificuldades que eles haviam passado. Uma pena que Olho de Peixe, aquele que me ensinou como sobreviver nesse mundo,  não pudesse compartilhar esse momento conosco.

Catei mais uma fruta e me virei para sair, não queria que me vissem com olhos marejados. Caminhei em direção à carruagem que tínhamos vindo até ali, notei que Ladii vinha me seguindo.

— Você também é um órfão? — Ele perguntou.

— Mais ou menos…

— Como alguém pode ser mais ou menos órfão? É ou não é!

Pensei um pouco, minha situação era confusa, eu não lembrava de nada do meu passado, nem sabia se tinha uma família. Tudo que havia me restado era um nome, que eu abandonei quando fui adotado por Miraa.

— Eu não sou órfão, eu tenho uma mãe! — Respondi resoluto — Ela se chama Miraa, a senhora do Leste.

Mesmo que estivesse de costas para Ladii, eu sabia que naquele momento ele sorriu. Acho que a minha resposta o agradou.

— Resposta perfeita, digna de um filho de Miraa.

Ladii se virou para sair, mas antes parou e disse.

— Vamos nos separar aqui, a prioridade é levar o tesouro e os ratos para a Montanha Solitária. Surii, Baruu e você ficarão em Parva, a primeira cidade do Leste. Não precisam se preocupar com nada, o prefeito já foi avisado da chegada de vocês…

Fiquei em silêncio enquanto ele saia, mas alguns passos depois ele parou mais uma vez e se virou dizendo:

— Você é pequeno e leve, se continuar praticando com foco, não terá dificuldade em aprender o “salto ilusório”!

Salto Ilusório… — Repeti aquelas palavras em minha mente.

Eu tinha visto como fazia, sabia os passos e o nome, só o que me faltava era a prática. Não pude conter o sorriso.

Surii gritou me chamando, estava na hora de partirmos, em uma mesma carruagem fomos: Baruu, Surii, eu e mais alguns guardas da nossa comitiva. Os restantes foram nas outras carruagens direto para a Montanha Solitária.

Era perto de meio dia quando adentramos a cidade de Parva. Fomos levados direto ao palácio do Prefeito para relatar que estávamos em situação de emergência e sob a possibilidade de ataque do reino de Prata.

A guerra era iminente e como a cidade mais próxima da fronteira, Parva seria a primeira a sofrer uma invasão militar em caso de uma invasão. O prefeito se chamava Nerii, era um homem idoso, magro de cabelos grisalhos e bigode aparado, que passava um ar de tranquilidade e autoridade. 

O “magistrado” Nerii, como o chamavam, recomendou que nós descansássemos enquanto ele aumentava a segurança da cidade. Para mim, aqueles notícias foram boas, eu estava cansado por passar uma noite lutando e fugindo.

Ficamos hospedados na casa do prefeito, onde tomamos banho, trocamos de roupa, além de eu receber uns curativos. Também tivemos um almoço reforçado, digno da visita dos filhos de Miraa.

Mas nem tudo na vida são flores, após o almoço, o chefe da guarda veio nos informar que um grupamento militar composto por cavaleiros que carregavam a bandeira do Reino de Prata acabara de ser avistado a poucos quilômetros da cidade de Parva.

O magistrado olhou para nós da Montanha Solitária com um sorriso calmo declarando:

— Não há o que temer, apenas descansem e deixem a segurança da cidade em minhas mãos.



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