Volume 1

Capítulo 3: Contrato, Parte 3 (final)

 

Mio piscava os olhos constantemente, enquanto tentava parar o sangramento com as mãos — sem sucesso. Queria acreditar que tudo, desde os estudantes passando mal na faculdade sem motivo até o ataque de uma criatura misteriosa, fosse um sonho ou uma brincadeira de mal gosto.

Porém, aquele homem estava ali. Só podia ser real.

Ela tentou chamá-lo, alertá-lo sobre o quão perigosa aquela criatura era. Era inútil, as palavras não saíam de sua boca. Seu esforço apenas fez com que a sensação de formigamento na região em que foi atacada aumentasse.

Zethnniyr e o monstro continuaram se encarando. Mas, assim que ouviu um gemido atrás de si — que acreditava ser de Mio —, o Rei dos Demônios apertou mais o braço do inimigo, querendo quebrá-lo. Não demorando muito para fazê-lo.

O estalo dos ossos sendo esmagados e o instantâneo grito de dor da criatura fizeram Zethnniyr mais do que apenas sorrir com o desespero alheio, mas também arrancaram uma risada histérica do demônio. 

— O medo de vocês fizeram recuperar um pouco da minha energia mágica — disse, gargalhando na sequência.

— Como meu item de drenagem mágica não funcionou com você?! — A criatura tentava manter a calma mesmo com um dos braços quebrados, apesar de estar nítido em sua expressão a dor e o desespero que sentia.

— Você acha mesmo que esse item de rank tão baixo funcionaria comigo, goblin imaturo? Apenas humanos fracos sentiriam os efeitos.

— Espera, olhando bem agora, você não é…?!

— Percebeu agora que está frente a frente ao Rei do Reino das Trevas?

— Lorde Zethnniyr…!

Desespero. Era tudo o que o goblin imaturo sentia naquele momento. Sua expressão ficou atônita desde a revelação de estar de frente com o Rei dos Demônios. Como ele poderia imaginar que Sua Majestade também estava naquele mundo?

— Lorde Zethnniyr, por que está atacando uma criatura do Reino das Trevas? Nós não deveríamos ser aliados? 

— Aqueles que atrapalham os planos do grande Rei dos Demônios são duramente punidos. — Fechou a expressão, ele realmente parecia um demônio.

— M-Mas, Lorde Zethnniyr! Eu não fiz nada que merecesse sua punição! — O goblin aumentou o volume de sua voz, desesperado com o resultado da discussão. — Aliás, só existem humanos e animais neste mundo! Eles não eram os…

— Cale-se.

Zethnniyr tinha perdido muito tempo ali. Sua paciência já havia se esgotado desde que a criatura abriu a boca para falar. Isso somado ao fato do goblin ter ferido Mio. Ele já estava farto.

O monstro se calou. Seu suor escorria pelo rosto, sua boca tremia bem como o seu corpo. No momento em que se cruzou com o maou, seu destino estava traçado. 

Ele não conseguia mais raciocinar, tudo o que queria era sair daquela situação e se curar o mais rápido possível de seus ferimentos. Sem pensar duas vezes, levou o seu punho livre em direção ao rosto de Zethnniyr, a fim de socá-lo.

Uma péssima escolha.

O corpo do pequeno goblin paralisou instantaneamente, por mais força que colocasse, não conseguia mover um único músculo. Os olhos da criatura se encontraram com o do maou mais uma vez. A íris que antes eram roxas, estavam brilhando vermelho como sangue. Talvez fosse aquele olhar que deixou o goblin paralisado.

E assim, Zethnniyr proclamou calmamente:

— Queime, como as chamas do inferno.

O coração do goblin parou ao ouvir aquelas palavras. O braço que tinha usado para transferir Zethnniyr entrou em chamas instantaneamente. O fogo de coloração roxa percorreu todo o corpo do monstro, arrancando gritos de dor e súplica. Cada canto queimava de maneira intensa, carbonizando a pele normalmente resistente do goblin.

E em alguns segundos, os gritos de agonia foram cessados. Já não havia mais nenhum corpo ali, apenas cinzas que voavam ao vento.

Mio olhava para aquilo tudo horrorizada. Aquela criatura parecia aterrorizante aos seus olhos, mas Zethnniyr o fez parecer tão fraco. Ou melhor, o quão forte Zethnniyr era?

Perdida em seus pensamentos, a garota de maria-chiquinha não percebeu que Zethnniyr estava próximo dela. Ela tentou falar:

— Por que você…?

Kawano não conseguiu completar a frase, pois logo sentiu uma dor forte na região onde havia sido atacada. A dor era tamanha que Mio não conseguiu se manter sentada no chão, jogando seu corpo no chão inconscientemente. O pequeno impacto foi o bastante para fazê-la gemer de dor. Sua visão estava turva, não conseguia nem ver que tipo de expressão Zethnniyr fazia. O sangue continuava jorrando sem parar, manchando o seu casaco favorito.

Mio já sabia que seu momento havia chegado. Ela nunca havia pensado que morreria tão cedo assim, na verdade, ela evitava pensar em como seria sua morte. De todas as coisas assustadoras existentes, o maior medo de Mio era a morte.

Seu fim estava próximo.

A jovem garota sentiu algo tocar suas costas e levantá-la lentamente, se tratava das mãos de Zethnniyr. Ele agarrou o corpo de Mio de maneira suave para não fazê-la sentir mais dor. O maou estava com uma expressão um tanto atônita no rosto. Era como se estivesse revivendo seu passado novamente.

— O quão estúpida você é para se jogar na frente de outra pessoa?

— Não pensei em nada… Apenas agi no impulso… — disse Mio com a voz trêmula. Sua respiração desregulada dificultava a comunicação.

— Você poderia ter fugido.

— Não seria eu se fizesse isso… — A garota de maria-chiquinha levou a mão até o ferimento, sentindo seu próprio sangue. Ela não conseguia segurar mais, suas lágrimas começaram a escorrer pelo rosto. — Eu sou uma idiota… Eu não quero morrer agora… Eu não quero morrer agora!!

Kawano segurou firmemente nos ombros do maou e se escondeu no pescoço dele.  Zethnniyr ficou em silêncio, atordoado com o quão desesperada a garota estava. Ele podia ver a vontade de viver de Mio. Essa cena o fez lembrar de uma situação dolorosa.

— Se você fizer um contrato comigo… — Ele levou uma mão até o rosto de Mio, fazendo-a encará-lo nos olhos. — Conseguirá viver, seus ferimentos serão curados rapidamente.

— Eu tenho uma segunda chance? — Assim que ouviu a proposta do demônio, as lágrimas começaram a cair intensamente. Ela se agarrou ao corpo de Zethnniyr mais do que nunca, como se não quisesse deixá-lo fugir. — Só me deixe viver mais, por favor…

— Certo.

Zethnniyr fechou os olhos, Mio olhou para aquilo e fez o mesmo. Uma aura vermelha escura rodeou o corpo de ambos. O demônio proclamava palavras desconhecidas, então Kawano supôs que se tratava de alguma runa.

— Mio Kawano, você estará encarregada de me mostrar como esse mundo funciona como minha serva, bem como restabelecer a minha magia. E eu, Zethnniyr, te protegerei de tudo. Você está bem com isso? — perguntou, abrindo os olhos e encarando a menor. Mio apenas assentiu com a cabeça. Então, Zethnniyr continuou: — O contrato está feito.

A aura vermelha escura, que antes envolvia o corpo dos dois, desapareceu por completo. Não apenas isso, mas o sangramento de Mio diminuía gradativamente, até parar de vez. A dor do ferimento também diminuía. Kawano enxugou suas lágrimas com a manga do casaco, ela estava uma bagunça.

— Obrigada por isso, não, obrigada por tudo… — Ela deu um sorriso aliviado, talvez aquele tenha sido seu sorriso mais verdadeiro em toda a sua vida. Mio transbordava as mais diversas emoções e, de maneira impulsiva, abraçou o demônio com toda a sua força. Não havia espaço para timidez ou vergonha, apenas gratidão. — Você é muito gentil, Zethnniyr!

— Certo, certo. Você estava parecendo um bebê de tão desesperada, tive que fazer alguma coisa.

— E-Ei! Dá pra você não quebrar o clima?

Zethnniyr provocou Mio intencionalmente, não sabia como lidar com alguém agradecendo-o. Em seu interior, estava feliz por escutar a palavra “gentil” de novo, faz muito tempo que não ouvia alguém chamá-lo assim. O maou se sentiu nostálgico com isso.

— Apesar dos seus ferimentos estarem cicatrizados, você deve estar bem cansada. Vou te carregar até em casa.

— Mas, e quanto a Kintarou e Haruka?! — Mio virou seu olhar para seus colegas desmaiados.

— E daí? Você é minha prioridade — disse o maou, coçando a cabeça preguiçosamente. — Além disso, eles vão ficar bem. Minhas chamas destruíram aquele item.

— Vamos deixar eles no meio da rua de jeito nenhum! Você tem que fazer alguma coisa!

— Certo, certo. — Zethnniyr se levantou, fechou os olhos e estalou os dedos. Mio olhou para o maou, confusa. Percebendo o desentendimento de Kawano, ele explicou: — Eu desativei a barreira que ocultava nossa presença.

— Nossa, uma magia assim existe… Então, é por isso que não vi ninguém passando por aqui?

— Exatamente. Consegui recuperar um pouco da minha magia, então deu pra usar uma magia de ocultismo de baixo rank. 

Com a barreira desativada, o movimento crescia na rua onde estavam. Não demorou muito para algumas pessoas se disponibilizarem para ajudar. Uma conhecida de Haruka passava por ali na hora e se responsabilizou por cuidar e levar os colegas de Kawano até o hospital. 

Essa amiga de Haruka se preocupou com o fato de Mio estar com as roupas ensanguentadas. A garota não soube o que responder de imediato, e percebendo o nervosismo dela, Zethnniyr veio a intervir, dizendo que ele mesmo cuidaria de Kawano. Mio só conseguia se inclinar e pedir desculpas pelo inconveniente.

Depois que resolveram a questão de seus amigos, Mio e Zethnniyr estavam prontos para irem para casa. Ou quase prontos, pois a garota de maria-chiquinha mal conseguia se manter em pé. Zethnniyr se virou e abaixou, ficando de joelhos e dando as costas para Mio. 

— Vamos, suba nas minhas costas. 

— Não posso fazer isso! — Mio disse nervosamente, com o coração palpitando e com o rosto ardendo. Ela, então, sussurrou: — E eu sou gordinha…

— Você está falando que o grande Rei dos Demônios não aguenta? Você teria que ser tão pesada quanto um meteoro para me fazer suar um pouquinho! — Zethnniyr começou a gargalhar.

— Por que você tá falando isso como se fosse uma coisa legal?!

— Anda logo, não vou ficar nessa posição para sempre!

Mio hesitou um pouco, tinha medo de Zethnniyr não conseguir aguentá-la e acabar zoando da cara dela — bom, isso meio que já tinha acontecido antes. Mas, ela tomou coragem e subiu nas costas do maou, segurando-se nos ombros dele. Incrivelmente, Zethnniyr levantou e começou a andar de maneira normal, como se nem estivesse carregando Kawano nas costas.

— Eu falei que isso não era nada.

— Fico feliz em saber que me aguenta… — Não conseguiu conter um suspiro aliviado. — Ah, você não deve saber o caminho pra minha casa, então eu vou te guiar.

— É uma boa ideia. — Continuou caminhando, seguindo as orientações de Mio. — Eu só fiquei andando sem rumo. Foi, então, que senti um fraco segmento de magia, então segui até aqui e felizmente, te encontrei.

— Imagino que deve ter sido difícil…

— Aliás, enquanto estava andando pelas redondezas, alguns humanos me perguntaram sobre uma coisa chamada “cosplay”. Eu só ignorava e seguia meu caminho, mas me pergunto o que isso significa.

— Bom, eu também pensei nisso na primeira vez que nos encontramos… — Deu um sorriso forçado e riu brevemente. — Você consegue fazer com que seus chifres e cauda sumam? Sabe, não é algo comum nesse mundo.

Zethnniyr assentiu com a cabeça e, parando por um instante, se concentrou. Tanto os chifres quanto a cauda brilharam e, como mágica, sumiram. Tirando a roupa estilo RPG, Zethnniyr parecia um humano normal. 

Ambos seguiram o mesmo caminho que Mio e seus amigos haviam feito anteriormente. Eles andaram por 12 minutos até a estação e, dessa vez, pegaram o trem que deixava perto da casa de Kawano. Zethnniyr estava impressionado com toda a tecnologia que aquele transporte oferecia, até queria ficar tocando nas coisas, mas se controlou por Mio estar ferida.

E o caminho foi seguindo assim, tranquilamente.


 

Mio e Zethnniyr se encontravam no quarteirão onde Mio morava. Já havia anoitecido e tinha pouco movimento nas ruas em que passaram, um pouco deserto de fato.

Os dois tinham ficado em silêncio o trajeto inteiro, tanto no trem quanto andando. Apenas se comunicaram para coisas básicas, como saber qual rota pegar e tal. A fim de quebrar a quietude que os cercavam, Mio começou:

— Obrigada por ter me carregado até aqui, mas acho que já posso andar sozinha — disse Mio timidamente. E continuou: — Me sinto completamente curada!

— Oh? Então, parece que o contrato está fazendo efeito. Pensei que levaria mais tempo. 

— E-Efeito?

— Como fizemos um contrato, você agora compartilha um pouco da minha regeneração, bem como a minha resistência a ferimentos. — Soltou um sorriso confiante após soltar a informação.

— Isso quer dizer que posso sobreviver se eu tomar uma bala perdida?! — Mio parecia animada com o fato, não a toa os olhos dela brilhavam.

— Eu não sei o que isso quer dizer, mas você só compartilha algo em torno de 10% da minha resistência. Nosso contrato não é tão forte assim, então não se iluda.

— Certo… — respondeu um tanto desapontada com a revelação.

— Ah, e você não pode usar magia também, antes que me pergunte.

— Pare de destruir minhas fantasias!!

— Chegamos.

Zethnniyr parou os passos e foi assim que Mio notou que já estava de frente para o prédio onde residia. Ela desceu das costas do maou e se espreguiçou um pouco, esticando os braços e as pernas. 

— Vou só pegar as chaves e aí subimos as escadas, tá? — Verificou sua mochila e pegou as chaves do apartamento, mostrando-as para o demônio.

— Ótimo. Eu estou sentindo fo…

— Zethnniyr?!

O maou não conseguiu completar a frase, pois seu corpo caiu no chão sem qualquer aviso, deixando a garota de maria-chiquinha assustada com a situação. Será que carregá-la foi uma ideia tão ruim ao ponto de fazê-lo desmaiar? Mio só conseguia pensar em duas coisas: levá-lo até seu apartamento e o mais importante, emagrecer.



 






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