Volume 1

Capítulo 2: Contrato, Parte 2

 

 

Aquele era o verdadeiro inferno. O campo que antes florido e cheio de vida, se encontrava em um estado deplorável, o verde havia se tornado um marrom morto. No chão, havia poças de sangue, e junto a elas, muitos corpos caídos, irreconhecíveis. A pobre garota olhava para tudo aquilo horrorizada.

A garota, então, tomou coragem e andou sem rumo pelo campo sangrento. Quanto mais andava, mais corpos apareciam. Ela estava se aproximando no que seria o centro da batalha.

Incrivelmente, o lugar estava em silêncio absoluto. Nenhuma palavra foi dita, nenhum grito de guerra foi proclamado. 

A jovem parou assim que avistou um homem de cabelos negros todo ensanguentado. Ele estava em pé e, em seus braços, segurava uma mulher. Assim como o homem misterioso, havia manchas de sangue e feridas profundas no corpo de aparência frágil.

Atrás dos dois indivíduos, uma multidão armada se aproximava do local. A observadora chutaria que havia um pouco mais de 100 pessoas. No centro, um cavaleiro montando um cavalo chamou sua atenção. A armadura era diferente dos demais e a espada que portava brilhava como o Sol. 

O sujeito que segurava a mulher pouco se importou com o perigo que se aproximava. Sua expressão transbordava angústia e, acima de tudo, ódio. 

Um tremor de terra assustou tanto a garota quanto os cavaleiros. O céu de repente se encheu de nuvens negras e um forte vento soprou. Além disso, uma aura roxa escura envolveu todos os presentes, inclusive a garota que apenas observava a cena.



Um urro ressoou naquele campo de batalha.



O corpo da jovem adulta levantou instantaneamente depois daquele forte grito. Mio se encontrava com uma expressão atormentada, aquele sonho parecia real. Normalmente ela sonha com coisas bizarras ou com os personagens dos animes que assistia. Mas, aquilo não se encaixava em nada que tinha visto nos últimos meses.

Kawano levou sua mão até a altura do coração, sentindo-o bater rápido. Levou sua outra mão até a testa, um tanto suada. Tinha esquecido de ligar o ar-condicionado na noite anterior – a primavera havia chegado com tudo –, estava muito atordoada com o que aconteceu antes de dormir.

Ela poderia jurar que tudo se passava apenas de um sonho, assim como aquele que teve há alguns segundos atrás. Mas, não era o caso. Se fosse, provavelmente o evento do mmorpg que costumava jogar seria diferente do real. Sim, foi essa a conclusão que chegou.

Depois de se espreguiçar, a primeira coisa que fez foi verificar as horas no celular. Marcavam 10:57. Havia, também, algumas mensagens na tela de bloqueio, umas de seus pais e outras de Kintarou.

“Droga, dormi demais...”, pensou enquanto verificava as mensagens uma por uma. Normalmente acordava um pouco mais cedo, entre 9 às 10 horas. Só nos finais de semana que passava do ponto – realmente uma garota preguiçosa.

— Preciso me apressar e fazer o almoço, não posso ficar pensando naquele cara. Kintarou não vai me perdoar se eu faltar por bobeira... — falou consigo mesma, dando um longo suspiro em seguida. — Bem que eu queria...

Mio bateu as palmas das mãos no seu rosto e balançou a cabeça para os lados. Precisava afastar todas essas preocupações e seguir em frente. Kawano fez seu caminho até o banheiro para fazer sua higiene matinal, e assim, faria o almoço apressadamente. Talvez até jogasse depois de tudo feito (talvez não, com certeza jogaria).


 

— Mio, você está bem? 

— Hm? Por que não estaria?

— Você parece mais distraída que o normal. Quero dizer, nem está prestando atenção na aula, só tá olhando pra janela — concluiu Kintarou num tom um pouco mais baixo que o normal, assim o professor não ouviria. — Normalmente você fica desenhando ou algo assim.

Mio já se encontrava dentro da sala de aula. E mesmo com aquela declaração anterior, ela não levou a sério o suficiente e continuou pensando no que tinha ocorrido na noite anterior. Kintarou – que sempre sentava ao lado da amiga – percebeu o comportamento dela.

Obviamente que Mio não podia contar sobre o que tinha acontecido. Primeiro, Kintarou ficaria preocupado demais por um desconhecido ter invadido o quarto dela, talvez até chamaria a polícia para investigar. Segundo, ele a chamaria de maluca por um homem ter se autoproclamado o Rei dos Demônios. Precisava esconder não importava como.

A-Ah, eu tô um pouco chateada porque não consegui participar da raid ontem... Acabei dormindo, tava cansada, hehe. — Inventou qualquer desculpa e deu uma risada forçada. Sentia as mãos suando.

— Sério? Estava tão animada. Fora que você não costuma dormir tão cedo assim.

— Bom... Eu consegui jogar hoje de manhã. Felizmente a raid ainda tava de pé.

— Então, foi por isso que você chegou atrasada, né?

— E-Eu só me atrasei 10 minutos! Nem foi muito! — Além das mãos suando, Mio sentia seu rosto arder e tinha certeza que estava corada.

— Acha que eu não vi o diretor falando com você?

— Merda, fui pega.

Por mais que Mio fosse uma aluna que todos os professores e funcionários gostassem, mesmo assim, ela merecia um puxão de orelha quando necessário. E seu atraso não seria passado despercebido pelo diretor da instituição.

— De qualquer forma, fico feliz que pelo menos tenha conseguido jogar um pouco — disse Kintarou, tirando seus olhos de Mio e voltando a atenção para o quadro negro. — Trate de prestar atenção na aula a partir de agora, okay?

— Okay, irmãozão!

— Não fala isso alto…

Depois da pequena conversa entre os dois, as aulas seguiram normalmente como de costume. Mio tentou ao máximo esquecer do homem misterioso para assim focar mais nos conteúdos.

Passando-se algumas horas desde então, não demorou para ter aquele momento de pausa entre as aulas, o tão esperado intervalo.

A maioria dos alunos se concentraram no refeitório, uns na fila esperando e outros já lanchando. Mio e Kintarou estavam entre aqueles que aguardavam.

Enquanto esperavam a vez, na frente deles, duas garotas que estavam na mesma sala conversavam sobre um assunto que chamou a atenção de Mio e Kintarou. Uma se chamava Eiko e a outra Nika. Percebendo que estavam interessados, as duas os incluíram na conversa.

— Vocês perceberam que algumas pessoas de vários cursos diferentes estão saindo mais cedo? — Eiko começou.

— Não reparei...

— Se não me engano, Akamatsu da nossa turma estava se sentindo mal e saiu mais cedo, né? — perguntou Kintarou curioso com a situação. — Como você não reparou nisso, Mio...?

— Ele disse que estava se sentindo muito fraco. A enfermeira até mediu a temperatura dele, marcava 37.9°. — Eiko estava com as sobrancelhas arregaladas enquanto contava o que tinha ouvido. E continuou contando: — Eu me ofereci para levá-lo até a estação, mas ele recusou...

— Parece que muitas pessoas estão se sentindo febris, será que é algum tipo de virose? — Nika levou uma de suas mãos até o queixo, tocando-o levemente.

— Não sei. Pelo menos nos jornais que acompanho, não falaram nada sobre uma epidemia.

— Eu nem assisto jornal, vejo as notícias na internet.

— Você deveria assistir jornais também, idiota. — Sem aviso prévio, Kintarou deu um tapa na cabeça da menor. Kawano apenas deu um pequeno “ai” como resposta.

— Acho que deveriam investigar isso. Talvez até tomar alguma medida.

— Eiko tem razão. Vocês dois tomem cuidado, hein?

A vez de pegarem o lanche do pequeno grupo havia chegado, então tanto Eiko quanto Nika se despediram e foram se sentar em algum canto do refeitório. Mio e Kintarou fizeram o mesmo, procuraram alguma mesa vazia e, encontrando, fizeram suas respectivas refeições.

O intervalo seguiu como sempre. Porém, tanto os alunos quanto os professores estavam preocupados com a saúde daqueles que saíram mais cedo. Doze pessoas apresentaram os mesmos sintomas, algo bem raro de se acontecer em situações normais, mas não no caso de uma possível epidemia. A direção da escola decidiu cancelar as aulas por uma semana, inclusive as daquele dia.

Mio e Kintarou subiram as escadas, pois o refeitório ficava no térreo e a sala deles no segundo andar. Ambos avistaram uma colega sentada em um dos degraus. O rosto dela estava molhado por conta do suor e sua respiração desregulada. Estava nítido que o estado da garota não era dos melhores.

— Haruka! O que aconteceu? — Mio se aproximou da colega e a segurou nos braços, tentando levantá-la.

— Meu corpo... Me sinto muito cansada... — disse pausadamente, pois sua respiração não contribuía para falar de maneira adequada. — A enfermeira me disse para ir pra casa, mas acho que não vou conseguir ir nessas condições...

— Não se preocupe! Nós podemos te levar pra casa, não é, Kintarou?

— Certo. Vou pegar nossos materiais lá em cima e avisar aos professores.

O jovem de cabelos castanhos escuros continuou subindo as escadas apressadamente. Mio envolveu o braço de Haruka ao redor do próprio pescoço e agarrou o pulso dela, com a outra mão segurou as costas da colega a fim de mantê-la equilibrada. Com isso feito, ambas desceram as escadas vagarosamente até o térreo. 

Mio não imaginava que mais alguém da sala passaria mal. Kawano sentiu alívio por chegar a tempo de socorrer Haruka, quem sabe o que poderia ter acontecido se demorasse. O sentimento de responsabilidade fez a garota de maria-chiquinha se sentir apreensiva. 

“Ainda bem que Kintarou está comigo”, pensou tentando acalmar seu coração.


 

O caminho da faculdade para a casa de Haruka se dava, primeiramente, pela estação de trem, era mais rápido tanto para ir quanto para voltar (levava uns 20 minutos). Depois da estação, Haruka andava cerca de 15 minutos até chegar em sua residência. Ela fazia esse trajeto todos os dias.

O trio tinha descido do meio de transporte e se encontravam andando em direção a casa de Haruka. As casas pelas quais passavam eram simples, mas mantendo a estrutura tradicional japonesa. Havia poucas pessoas circulando e a ausência de vozes humanas poderia ser algo relaxante para os fãs do silêncio. Porém, a calmaria foi quebrada quando Mio iniciou uma conversa.

— Falta muito? Minhas pernas doem…

— É isso que dá ficar comendo besteira, fora o fato de você ser sedentária.

— Quer esfregar na minha cara mesmo? — Fez uma voz debochada, revirando os olhos na sequência.

— Não precisam brigar... — Haruka tentou apagar a briga que estava se formando, e então, continuou: — Falta pouco, uns 5 minutos.

— Glória a Deus!

Os três continuaram andando em linha reta. Porém, os passos do pequeno grupo ficavam cada vez mais lentos. Até mesmo Kintarou que havia reclamado mais cedo estava sentindo suas pernas cansadas. Junto a isso, Mio podia sentir o corpo de Haruka esquentar, indicando que a febre possivelmente teve uma alta. Aqueles 5 minutos não pareciam acabar.

— Pessoal, me desculpe...

— Haruka?!

O corpo de Haruka não tinha mais força para se manter em pé, e não aguentando a dor que sentia, a garota fechou os olhos, perdendo consciência. Mio balançou os ombros de sua colega a fim de acordá-la, mas não houve progresso. 

— Kintarou, o que fazemos? Haruka desmaiou!

— Mio, eu também não estou me sentindo bem...

Assim que Mio virou seu olhar, encontrou seu amigo de infância sentado no chão, um tanto ofegante. Ela arregalou os olhos, desesperada com a situação em que se encontrava. Seu peito começou a apertar e seu coração batia num ritmo acelerado. Mio nunca havia passado por isso.

O desespero e o medo tomaram o seu ser. Era como se estivesse em um beco sem saída. 

“Fique calma, Mio!”, balançou a cabeça negativamente. Ela não podia se dar ao luxo de sentar ali e chorar, seus amigos precisavam dela. Por mais que a vontade de desistir fosse grande, não podia deixar as coisas desse jeito.

Enquanto pensava em chamar ajuda de algum morador, em uma das ruas adjacentes, uma figura humanoide se aproximava do trio silenciosamente.

Seu rosto era cheio de verrugas e com marcas que indicavam por quanto tempo viveu. Era uma criatura de estatura baixa, que parecia uma criança à primeira vista, media um pouco mais de 1,40 centímetros. De corpo magro e com longos braços, quase tocavam o chão. Em suas mãos, segurava um objeto cilíndrico de   alaranjada, não se parecia com nada criado até o momento.

Assim que se aproximou o bastante, deu uma risada, acariciando o objeto com as mãos. Ouvindo que alguém estava por perto, Mio virou o rosto e arregalou os olhos logo que avistou a criatura humanoide.

— Parece que esse item é uma mão na roda... Apesar de só consumir 20 pessoas ao mesmo tempo, sinto minha energia mágica voltando — comentou o monstrengo em meio a risos histéricos. 

— Você… não parece humano...

— Humano? Esse mundo está cheio deles... — Seus olhos grandes e esbugalhados fitaram Mio profundamente, a garota tremeu com o olhar afiado. — Faz um tempo que eu não como carne humana devido a separação dos reinos. Mas, esse mundo é outro, então não preciso me segurar, certo?!

O monstro humanoide riu alto da desgraça do grupo, principalmente de Mio que se encontrava aos prantos. A criatura fitou Haruka e lambeu os lábios, o estado dela era o pior dos três. Sem perder tempo, ele deu um impulso e mostrou as garras, indo em direção a Haruka. 

Deu um saltou e fez um movimento com as mãos para arranhar a garota desmaiada, mas ele não obteve o sucesso desejado e acertou uma outra coisa.

— Mio!!

Mio havia se jogado na frente de Haruka e recebeu todo o impacto do golpe. Ela podia sentir as garras da criatura perfurando seus ombros e parte do braço, bem como a sensação do sangue jorrando. Nunca sentiu tamanha dor em todos os seus 23 anos.

Surpreso com a ação repentina de Mio, o monstro se afastou. Vendo que Kawano estava ajoelhada no chão, com a respiração pesada e o vermelho tomando conta de suas roupas, ele riu ainda mais alto. 

Kwahahaha! Quis tanto ser a primeira da fila? Humanos são tão engraçados! — falou entre gargalhadas, podia ver algumas lágrimas saindo de seus olhos. — Não me importo qual de vocês será o primeiro, já que irei consumi-los de todo o jeito.

— Mio…! Por que fez isso…? — Kintarou tentou se levantar para socorrer sua melhor amiga, mas falhou miseravelmente assim que caiu com tudo no chão. Ele havia perdido a consciência.

— Vê-los tão desesperados só faz a minha fome aumentar… Não irei me segurar!

O monstrengo se preparava para ferir Mio com tudo, só que dessa vez com a intenção de matá-la de primeira. A jovem garota fazia o máximo para tentar se levantar, mas seu corpo estava frágil pelo golpe anterior. Se tentasse forçar mais, o sangramento poderia se intensificar.

Kawano nunca pensou que sua morte seria algo tão aterrorizante quanto ser morta por uma criatura desconhecida. O sentimento de morrer tão jovem e com tanta coisa para fazer era muito assustador, porém aquilo que mais pesava era a sensação de não ter salvado seus amigos. Mio Kawano se sentia inútil, e esse era seu maior arrependimento naquele momento.

Aceitando seu destino, Mio apenas fechou os olhos e esperou o golpe. Não havia mais nada a ser feito. Mas, o impacto demorou para ser sentido. Assim que criou coragem, abriu os olhos.

— …?!

Um homem repentinamente apareceu bem na frente de Mio, como se tivesse se teletransportado para lá. 

A capa negra balançava ao vento, fazendo com que a garota não conseguisse identificar quem era. O homem segurava o braço da criatura, o aperto foi mais que o suficiente para quebrar um dos ossos do monstro. Um grito de dor ressoou.

Então, virando o rosto, tal sujeito encarou os ferimentos de Mio e depois nos olhos da mesma. Quando se encararam, Kawano reconheceu aquela figura. 

Aquele homem que ela havia expulsado de casa, com um jeito sem noção e que se auto proclamava Rei dos Demônios. 

Ele estava ali, bem na frente de Mio, atuando como um verdadeiro herói.

Zethnniyr não conseguiu deixar de soltar um suspiro aliviado, bem como um pequeno sorriso. O coração de Mio palpitou ao presenciar tal reação.

Após se encararem por alguns segundos, o maou voltou seu olhar para a criatura e mudou a expressão, transbordando irritação. E assim, dando um sorriso feroz, proclamou:

— Como ousa ferir a minha serva?!





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