Volume 1

Capítulo 19: Sonho de Unidade

 

— Essa não! — lamenta Sashi com um sussurro quase soprado. — Não conseguimos a tempo.

— Quer terminar a sua luta? Não há ninguém aqui para lutar com você. — Charles toma a frente, ajeitando sua gravata. — Ninguém aqui é seu inimigo, samurai. Seus inimigos são outros.

— Inimigos? Do que é que você está falando?

—...? — Charles abre a boca para falar, mas não há palavras. Ele franze a testa, sem entender.

— Eu não tenho inimigos — diz Yatsufusa, balançando a espada, fazendo várias coisas pelo quarto voarem ou caírem. — Somente oponentes! Degraus a serem galgados para me aprimorar no caminho da espada.

— O que?

— Esse papo de novo? Nos poupe!

— Calebe — sussurra Sashi para mim enquanto Charles papeia com o mascarado. — Vamos comprar tempo para você. Continua tentando fazer o que o senhor Charles disse.

Que escolha eu tinha? Mesmo ao lado do velho, eu não estou tão certo de que vamos ganhar. E dessa vez, se eu não fizer nada, todos vamos morrer pra ele.

— Certo — sussurro de volta. — Dê seu melhor.

Ela concorda com um aceno.

— Já entendi. Você é aquele que se intrometeu na nossa luta, não é? — diz Yatsufusa, retorcendo os lábios, sua lâmina agora apontando para Charles. — Aquele que apareceu com a fumaça.

— Fico lisonjeado que se lembre de mim, apesar de não temos tido tempo para nos conhecermos melhor.

— Você não tinha o direito, ancião.

— Não sou tão velho assim. Além do que você iria matá-la — responde Charles, calmamente. — Sabe, ela é mais útil para mim viva.

Sashi faz uma careta cômica.

— Essa luta só irá terminar quando um de nós dois tomarmos a vida um do outro. Do contrário, isso nunca terá um fim.

— Então receio que não temos acordo algum aqui, não é?

— Receio que não.

Mais algum tempo de silêncio, os três personas se encarando. Um aguardando um movimento do outro, um deslize, uma abertura. Parece aquelas cenas de duelo em filmes antigos de faroeste.

A mão de Sashi desliza lentamente para o cabo da katana ao mesmo tempo que a mão de Charles escorrega sutilmente para seu bolso.

—『Oni no kata: Yamizuki koketsu! — Yatsufusa começa girando sua nodachi em um corte ascendente poderoso.

—『Ativar: Campo Lúdico! 』— Charles grita, batendo a palma das mãos e formando uma esfera de luz.

De repente o tempo desacelera drasticamente um pouco antes do ataque do mascarado sair. Um domo de cores cinzentas toma toda a área do quarto e além, superando paredes e quaisquer barreiras físicas. Charles é mais rápido, mas Yatsufusa já havia anunciado seu ataque. O resultado é inevitável.

— Porraaa!!

Uma explosão acontece dentro do quarto e tudo sai voando pelos ares; tábuas do chão e das paredes e pedaços de mobília, forro, pedaços da parede... tudo é esmerilhado pelo ataque brutal do mascarado, mandando os dois voando pra longe. Um buraco gigantesco na parede e no chão, que pega um pouco do andar de baixo, é a única coisa que sobra do quarto depois que a poeira baixa.

Pelo menos a minha cama e as minhas coisas — assim como eu também — não foram incluídas na viagem para a Disneylândia. O que eu vou dizer para o reitor pelo amor de Deus?! Dessa vez eu sou jubilado! Tenho certeza!

— O que você fez, ancião? — Yatsufusa pousa na frente deles, confuso com o domo preto e branco. Alguns prédios e postes brotam do chão, criando todo o cenário de uma cidade escura sem leis e dominada pelo crime.

— É... o que você fez?

— Acha que só pesadelos podem criar campos lúdicos? — diz Charles, baixando a aba de seu chapéu. — Esse é meu campo lúdico: Cidade do mistério e dos segredos.

— Entendi foi nada. — As sobrancelhas de Sashi ondulam.

— Isso é mais um de seus truques? Acha que mudar o ambiente do combate vai lhe salvar da minha espada?

— Não. — Uma neblina espessa começar a tomar todo o contorno dos prédios e o ambiente aos poucos, criando globos de luz opacos ao envolver os postes. — Mas vai nos dar um pouco mais de vantagem. E, consequentemente, ganhar mais tempo para nós.

— Pois que assim seja. Não sei o que estão pretendendo, mas não serei derrotado tão facilmente. Nunca recuo ante um desafio!

Enquanto eles três se matam, eu não posso ficar aqui parado feito um poste. Por mais que eu quisesse ver o desenrolar daquele combate, as habilidades de Charles em ação, eu também tenho uma tarefa para cumprir, minha própria batalha para travar.

E nem quero imaginar o que vai acontecer se eu falhar.

 

 

*****   *****

 

 

Estou naquele lugar maldito de novo, sentindo toda a aura pesada e aquele sentimento de impotência, medo, desespero. Já senti isso hoje mais vezes do que é humanamente possível aturar.

A terra está fofa debaixo dos pés. O lume de uma tocha brilhando em algum lugar dentro da floresta é a única orientação que tenho no meio da imensidão negra. A trilha me parece traiçoeira e nada parece melhor ou pior agora do que das outras quatro ou cinco vezes que estive aqui.

Não... nada está diferente. Em nenhum centímetro de terra, de ar, de espaço. Tudo é igual, sempre igual.

Não posso acordar, não posso acordar, não posso acordar...

— Alguém está aí? — pergunto, seguindo o roteiro.

E já sabendo o que vem a seguir, me viro, ouvindo sons estranhos pelos arredores; galhos quebrando, folhas farfalhando, pedras sendo chutadas indiscretamente. Algo está vindo.

Eu sei exatamente o que é, mas como o propósito é seguir o roteiro até o ponto chave daquele sonho, eu pergunto com a voz tremendo:

— Quem está aí? Apareça!

E respondendo a minha pergunta, algo começa a surgir da escuridão. Formada de raias negras, de fragmentos de cada ponto de completo escuro, uma forma humanoide e alta — 3 metros, no mínimo — se constrói na minha frente, delineada pela luz fraca da tocha.

O som que aquela coisa produz é um murmúrio rouco e engasgado, como se ela quisesse falar e sua boca estivesse tampada ou costurada. Unhas compridas que lembram garras ou lâminas de algum facão despontam dos dedos. Um vestido rasgado tão negro quanto o centro da floresta esvoaça levemente com o vento congelante que uiva entre os troncos retorcidos.

Uma pilha de folhas é arrastada com a brisa no momento que ela começa a andar. A cada passo, tudo que está ao redor dela murcha e se retorce, o pouco de vida que aquelas coisas ainda pudessem ter são sugadas e se transformam em paisagem morta. Seus movimentos são duros e trêmulos, seus passos cambaleantes, lembrando-os de uma marionete defeituosa ou um zumbi.

Cara... o cenário perfeito para fazer até o homem mais corajoso pintar as calças de marrom.

Sem perder um segundo pensando o que fazer, dou meia volta e corro. Corro pela minha vida, corro por tudo que é mais sagrado nesse mundo. Os músculos da perna estufam com o esforço repentino e violento em correr. Pernadas espaçadas, respiração ofegante, eu corro sem ver para onde estou indo. Galhos duros e pontiagudos machucam meu rosto, trepadeiras e espinheiros rasgam minhas roupas e pernas.

Forço cada fibra muscular das minhas pernas de franguinho a trabalhar 120%, os pulmões ardendo como brasas vivas, o coração galopando como um cavalo desgovernado em uma campina. Mal consigo respirar direito e me esforço para manter o que me resta de oxigênio o suficiente para que eu não desmaie. A camisa e a minha pele já são quase uma coisa só de tão suada que está.

— Droga... ela não para! Por que essa maldita não para?!

Só que o pior acontece em uma perseguição — e imagino que vocês já saibam do que se trata: uma pedra surge do chão como um broto de bambu e eu capoto umas duas vezes até parar no chão, esbagaçado. Fodido. Acabado.

Uma sombra se projeta sobre mim, me cobrindo do banho da lua de sangue que, sempre se faz presente em meu pesadelo, como uma criancinha retardada que assiste ao mesmo filme pela milésima vez. Agora tento rastejar como um verme pelo chão em um último recurso, mas em minha mente, eu sei que vai ser em vão. Não adianta de nada.

Eu sei como esse sonho termina... ou não termina. Eu preciso... preciso...

NÃO! Não acorde! Eu... preciso... tenho que ver o fim desse sonho.

Em vez de me esconder, eu levanto com dificuldade e a encaro. Frente a frente, cara a cara com aquela sombra. Um vórtice sombrio e gelado me cerca, querendo me apagar, me silenciar para sempre. Aos poucos, a medida que nos aproximamos da tocha, seus traços ficam cada vez mais evidentes.

Eu toco no meu peito para ter certeza de que ainda estou respirando, mas som nenhum sai das minhas narinas ou de minha boca. Meus olhos petrificam ao ver cada traço daquela face dantesca, cada detalhe terrível que eu ainda não tinha reparado das outras vezes.

E, como um lampejo de luz incandescente e violeta explodindo perto de mim, Sashi aparece do meu lado, me protegendo daquelas sombras vivas.

— Sashi?! Sashi, o que está fazendo aqui?

Ela não me responde. Aceno para ela, toco nela, mas sem reações. Estou invisível para ela. Enquanto Sashi luta com aquele pesadelo terrível, seu corpo lentamente é fatiado e cortado enquanto ela se esforça para me proteger.

— Sashi!! Para com isso!

É inútil. Ela continua a lutar.

Corte atrás de corte, golpe atrás de golpe e, em poucos instantes, Sashi está completamente derrotada, banhada de sangue. Sua roupa está rasgada, deixando escapar um breve vislumbre de seus peitos e calcinha.

— SAAAAAASHIII!! JÁ CHEEEGAAA!! — Uso de toda a potência da minha garganta. Mesmo que eu fique sem voz, mas eu preciso salvá-la.

— Calebe... — sibila Sashi, sem quase conseguir se mexer.

— Sa-Sashi?

— Eu... vou te proteger. Porque... porque...

— Por que, Sashi? Por que está se matando por mim? Volte para minha cabeça! Volte para a minha consciência logo e não vai mais precisar passar por isso.

E então, como se me ouvisse agora, ela se vira para mim. Aquele lindo rosto... maculado por tantas injurias e tanto sangue. Não!

Mesmo toda machucada, ela abre aquele sorriso lindo que me dá esperança, que consegue me animar até nos dias mais merdas e diz:

 


Porque eu te amo, Calebe.


 

E um prego negro transpassa seu peito, levantando-a do chão. Meu coração se quebra em tantos pedaços nesse momento que seria impossível repará-lo.

— SAAASSHIIIIIIII!! PARAAAAAAAAAAA!!

Todo aquele mundo sofre um tremor repentino. As arvores sacolejam, os paralelepípedos negros no horizonte desabam como peças de dominó. O chão da floresta se parte enquanto eu grito mais e mais alto, arranhando o rosto como se pudesse remover minha própria pele, arrancar meus próprios cabelos.

Eu não posso aceitar isso! Não posso! Não vou! Não vou! Não vou!

Não é assim que tem que acabar! Não vai ser assim que vai acabar! Me recuso a deixar que tudo termine assim!

Uma ordem mental e um gesto de mão; isso é tudo de que precisei para dissipar aquela coisa da minha frente enquanto uma Sashi inerte cai em meus braços, leve como uma folha.

Por isso que não quis ver como o sonho terminava; por isso nunca consegui ver esse final. Porque no final, eu de fato morro, mas é uma morte bem pior que a morte física; a morte da mente, a morte do coração.

A morte de uma parte importante minha. A morte da Sashi.

— Isso seria o futuro ou um simbolismo, Sashi? — Eu mal consigo falar, olhando para o corpo morto de Sashi em meus braços enquanto começa a chover. — Me responda, Sashi. Isso é culpa minha, né? Porque eu sou fraco e agora estou condenado a ter visões do resultado dessa fraqueza todas as noites quando vou dormir? Um símbolo do fraco que eu sou. E por isso, você vai morrer?

O som da chuva é a única coisa que fala comigo. O mundo para de girar.

— Não!! — Aperto os olhos, segurando a Sashi com tanta força que sinto um choque nos ligamentos dos dedos. — Seja qual for o futuro, seja qual for o lado ou parte minha que eu tenha que sacrificar, não vou deixar que você pague pela minha fraqueza! Eu sei que posso não me lembrar, mas esse rosto, esse sorriso, esse amor incondicional que tem por mim vem de algo. Tem um significado e prometemos descobrir juntos. Prometemos um para o outro naquele dia, se lembra?

Eu a abraço forte como eu acho que nunca abracei ninguém em toda a minha vida. A abraço para nunca mais deixa-la ir. Como se pudesse trazê-la de volta a vida apenas com aquele abraço. As sombras daquele sonho vão se iluminando aos poucos até que estivéssemos rodeados por uma campina verdejante em meio a arvores frondosas.

Tanto ela como eu estamos imbuídos daquela chama violeta. Uma chama que não me queima, não machuca. Uma chama que arde e destrói, mas que também cura e protege.

— Se precisar que viremos um, viraremos um. Se precisar que lutemos juntos, lutaremos juntos. Se precisar que morramos juntos, morreremos juntos. — Fecho os olhos lentamente. — Se realmente formos um só ou duas pessoas, não importa. Vamos unir nossas mentes, nossos corações, nossa energia. Um só. Vamos ficar mais fortes, vamos derrotar quem quer que seja. Vamos nos unir até que só exista...

UM! — Duas vozes falam ao mesmo tempo.

 



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