Volume 1

Capítulo 18: Sono REM

 

Vejo apenas silhuetas ao longe, borradas, e nada mais que isso, porém consigo distingui-las bem: é a Sashi. Conheço perfeitamente seu contorno, seus traços... e ela está sendo...

Não! Não, não, não! Ela não pode ter morrido! Não! Não posso crer nisso!

— Saaaashii!!

— Aaaaargh! Droga, caara! Que susto! — Bernardo quica na cadeira com meu grito. — E quem é “Sashi”?

— Calebe, você tá bem? Calma! Já passou, já passou. — A voz gentil e controlada que pede para eu me acalmar pertence a Micaela.

Os dois estão ali comigo aonde que quer seja, Micaela com ares de preocupação assim como Bernardo, só que adicionando o “levemente puto”. Procuro controlar a respiração enquanto cascatas de suor frio escorrem das costas e da testa. À medida que vou me acalmando, olho para os lados, indicando alguma coisa que me... uma gaze? Agulha?

Acho que vou apagar de novo...

— Droga! Onde é que eu tô, hein?

— No hospital. Depois do acidente, mandaram você pra cá — diz Bernardo enquanto limpa o ouvido.

— Acidente?

— Isso, acidente! Qual foi, cara? Não tá lembrado? Perdeu a memória de novo?

Só consigo me lembrar de um belo surrão que levei para não levantar mais. E ainda tem...

— Bernardo! — Faço um esforço para me levantar de uma vez, ou não conseguiria. — Faz quanto tempo que eu tô aqui? Quando...?!

— Relaxa. — Micaela me empurra gentilmente para a cama de novo. — Não se preocupe com isso. O médico diz que ainda vai precisar passar uma ou duas noites aqui, mas está se recuperando bem. Vai ser liberado logo, logo. Então por que não procura descansar? Deve ter sido um evento bem traumático, então tem que ficar deitadinho pra sarar logo.

Tem certeza de que é a mesma Micaela da minha sala que fala comigo agora? Parece outra pessoa; mais doce, educada, jeitosinha... algo embaraçoso começa a querer crescer em algum lugar do meu corpo, enquanto sinto meu rosto derreter de tanto calor. Se ela está dizendo, quem sou eu para teimar?

— Tá bom, ma’am.

— Mas e aí, caaaara. Conta aí como você sobreviveu a um atropelamento de ônibus quase que praticamente ileso, caaara! Sabe... para fins puramente acadêmicos.

Bernardo leva um pedala na nuca da Micaela.

— Aargh!

— Para de ser mala, Bernardo! Não é hora para isso. — Ela o empurra para fora do quarto enquanto o Bernardo geme e resmunga em prostesto. — Ele já passou por muita coisa! Temos que deixar ele descansar.

— Pera aí, Mica, pera aí! Só uma perguntinha ou duas! O cara já passou dois dias dormindo! Só umazinha, vai! Deixa!

Dois dias?! Fiquei apagado por fucking dois dias?!! O coração foge do ritmo ao pensar na imensidão de conteúdo que perdi nesse tempo.

— Vamos dar tchau, Bernardo! Tchaaaau! — Os dois vão embora, passando pelo janelão com vista para o corredor e onde outra pessoa está parada, olhando para dentro da sala como um psicopata.

Ele veste sobretudo marrom que se mistura às sombras e a alça de um grande chapéu redondo cobre seu rosto, deixando visível apenas o bigodão truculento. Nem preciso dizer quem era, né?

Charles entra na sala, atravessando a porta como o Gasparzinho e ficando ao lado da minha cama. Ele me olha com dureza, o músculo do maxilar do detetive se remexendo para falar umas poucas e boas para mim.

— Está bem, jovem Calebe?

— Morri, mas passo bem. A Sashi...

— Não se preocupe com ela — interrompe com a mão levantada, prevendo o que eu ia falar. — Ela está bem e está preocupada com você.

— Ah, certo... — Um suspiro demorado, como uma bolsa de ar presa nos pulmões, foi soprado dos meus lábios rachados. — Que bom.

— Vocês dois passaram por maus bocados. Tiveram sorte que eu consegui chegar a tempo. — Charles se senta na poltrona vaga ao lado, seu olhar ainda como pedra sendo arremessada contra mim. — O que fizeram lá foi muito imprudente!

— Ah, tá. Já entendi. Vai me dar uma bronca agora? Vai nem esperar eu sair do hospital, velho?

— Eu avisei a vocês que tivesse cuidado e ficassem alertas! Não sabiam e ainda não sabem com quem estão lidando e quase foram mortos por isso!

— Para sua informação, fomos atrás de um pesadelo que apareceu no campus. E outra coisa, era um samurai — digo, cortando o sermão dele no meio. — Um persona samurai que se chama Yatsufusa. Ele... era forte demais. Não conseguimos...

— Rapaz... não se diminua com essa derrota. — Os olhos ocultos na sombra do chapéu de Charles se suavizam. — Já considere uma vitória ter saído vivo depois de... você sabe.

— É eu sei. — Concordo movendo a cabeça ao mesmo tempo que Charles murmura. — Mas então qual foi a história que inventaram para eu estar aqui? Que um ônibus me atropelou e que por conta disso tombou?

Charles segura um riso e ele pensa que não vi, mas eu vi. Acho que nem mesmo ele sabia como engoliram uma desculpa tão esfarrapada para eu vir para no hospital, me fazendo questionar o QI de quem tinha acreditado em qualquer história absurda que contaram.

Bernardo é um caso à parte; se eu chegasse e contasse a ele que tinha sido ET’s, ele simplesmente acreditaria e ainda perguntaria a circunferência da nave que bateu no ônibus que supostamente me atropelou.

Só fico pensando na minha mãe. Será que ela recebeu a notícia de que eu estou aqui? Será que ela está bem? Ela deve estar muito nervosa, passando mal pelos cantos da casa. Eu tenho que me recuperar logo para ir em casa acalmar ela. E os outros, e as aulas e...

— Ai! — Uma pontada de dor atinge minha cabeça.

— Não se force muito, jovem Calebe. Por hora, procure apenas se recuperar.

— Entendi...

— Já com relação ao samurai mascarado, temo que mesmo que se recupere, você e Sashi, não conseguirão vencê-lo. — afirma, ríspido e resoluto.

— Hã? O que está falando? Claro que a gente foi lá e lutou contra ele às cegas, mas agora que sabemos mais ou menos como ele luta, podemos elaborar uma estratégia para...

— Não. Não existe estratégia contra esse tipo de persona. Ele irá encontrar vocês dois e irá mata-los assim que tiver a chance — diz Charles em um tom pesado e bastante sério, tanto que me faz arrepiar os cabelos. — Sashi é bastante poderosa por si só, mas afirmo que mesmo que ela use 100% de sua força, no estado atual de vocês, será impossível derrotar Yatsufusa.

Eu soco a lateral da cama com os punhos cerrados, sentindo uma agulhada de dor fininha percorrer os músculos ainda sensíveis e doloridos.

— E o que quer que a gente faça então, porra? Que a gente fique aqui esperando ele vir terminar o serviço?!  

Charles anda de um lado para o outro na sala, alisando seu bigode grisalho que já me tá me dando nos nervos. Se Charles pudesse dormir, eu rasparia esse bigode. Contudo, quando ele anda alisando o bigode, é um sinal claro de que ele está pensando em uma forma de livrar minha cara, então posso aturar isso.

— Há uma forma.

— Sério? Eu sabia...

— Mas isso é uma aposta. — O tom da conversa ficou pesado de repente. — Funcionaria com agentes comuns, mas você não é um agente comum.

— ...?

Esse é um daqueles momentos que o velho embola minha cabeça mais do que uma pilha de roupas jogada sobre minha cama. Mas depois de dois dias inteiro hibernando, acho que minha cabeça está descansada o suficiente para suportar essas explicações.

Charles percebe minha confusa e, lendo meus pensamentos, ele começa:

— Sei que já notou isso faz tempo... — Ele se senta na cama ao lado, como se de fato fosse uma pessoa do mundo real. — Diferente de mim e de todo o resto, você é o único que consegue ver personas e pesadelos, além de manifestar seu persona, sem dormir. Isso sem mencionar que seu persona tem consciência e personalidade própria.

— Ué, mas todos os outros também não tinham?

— Não. — Charles se debruça sobre as pernas, seus olhos me encarando tão intensamente que me obriga a virar o rosto. — Eu, neste momento, tenho minha consciência no corpo de Charles, assumindo essa forma e suas habilidades. Sou Franscisco no corpo de Charles, como alguém que veste uma fantasia. E muitos outros agentes são assim. As vezes, o agente, sem ter a ciência de que está sonhando, acaba por adquirir outra personalidade, uma que... — Ele faz uma pausa, dedilhando um broche pendurado de um bolso do seu sobretudo. — Seja mais condizente com o persona que manifestou.

— Então o Yatsufusa...

— Sim. Ele se encaixa nesse caso... — diz o detetive, antecipando minha próxima fala. —, mas o seu é outro completamente diferente; seu persona pensa, sente, interage... É quase como se você e a Sashi fossem duas pessoas distintas. Um caso extremamente intrigante.

Aquela afirmação causa um desconforto dentro de mim, algo que cria uma sensação de gelo na barriga que só vai crescendo conforme a conversa flui. Charles, talvez percebendo esse incomodo, endireita o corpo e suaviza a voz enquanto continua:

— Talvez esse seja seu dom onírico, jovem Calebe. Não estou dizendo que é um ponto negativo, muito pelo contrário. Em mais de 60 anos trabalhando para a Mandala, nunca vi alguém com um dom igual ao seu. Sequer houve registro anteriores de alguém com um dom parecido. Mesmo para mim, que possuo a habilidade de analisar, categorizar e deduzir cada mínimo detalhe de todos os campos lúdicos, pesadelos e personas, em apenas poucos instantes, você até agora tem se mostrado uma verdadeira incógnita.

— Aaah... é... obrigado, eu acho? — Não sei se me sinto elogiado ou insultado. É quase como se eu fosse um fóssil pré-histórico recém-descoberto. Uma anomalia da natureza.

Não estava preparado para tanta informação assim e depois dessa conversa, já quero dormir mais dois dias. Charles se levanta e eleva a voz, voltando a ser aquele detetive imponente de sempre.

— Então, como não sei se o que estou propondo vai funcionar ou não com essa incógnita, estou dizendo que é uma aposta.

— Tá..., mas afinal, o que seria isso mesmo?

Charles levanta o canto da boca em um meio sorriso.

— Vamos transformar dois em um.

 

*****   *****

 

 

Os dois dias — que na verdade foram apenas um dia e meio — passaram e voltei para minhas atividades rotineiras, levando nada mais, nada menos que dois resumos, um artigo e uma prova para remarcar. Vai faltar aula de universidade pra você ver o que te acontece.

Fico tão atolado de coisa pra fazer que quase me esqueço do encontro com Charles naquela noite. Estou nervoso com o que ele está pensando em fazer, se vai dar certo ou não e, principalmente, se vai ter alguma consequência para mim e para Sashi.

Dois em um, dois em um, dois em um... o que ele quis dizer com isso, porra?! Péssima hora para quer dar uma de mestre Yoda.

No fim do dia, com a coroa de luz desaparecendo no horizonte e dando lugar ao frio e escuro da noite, Charles me espera na frente da porta do meu dormitório como o combinado. Seu sobretudo o faz se misturar perfeitamente às sombras do corredor pouco iluminado, de forma que se eu não forçasse um pouco a visão, eu facilmente poderia perder ele de vista.

Espero que ele não use ou tenha usado isso para fins... questionáveis. Nem quero imaginar uma habilidade dessas na mão do Bernardo.

— Demorou, jovem Calebe.

— Dá um tempo, cara. Ainda são 18:45 e só estou aqui porque implorei pro professor me liberar mais cedo. Tive até que dizer que eu tava me cag...

— Não importa. — Ele me interrompe, erguendo a mão. — Vamos começar logo o treinamento.

— Treinamento?

— Sim.

Sashi, que me acompanha o caminho todo em silêncio, também parece surpresa. Ela passou o dia estranha, calada, pensativa, me acompanhando em todos os lugares como uma sombra silenciosa. A derrota para o mascarado lá deve ter pesado mais para ela que pra mim.

Ou quem sabe ela sinta toda a minha ansiedade e receio e esteja tão tensa quanto eu. Talvez um pouco dos dois.

Já dentro do dormitório, o qual foi desocupado pela Emma um dia atrás, eu teria total liberdade de fazer qualquer coisa que Charles mandasse sem parecer que estou tendo um surto psicótico.

— Certo. — Solto a mochila no pé do beliche com um suspiro. — O que eu tenho que fazer, sensei?

— Deita na cama.

— Hã?

Sashi olha para um Charles de rosto ríspido e impassível.

— Se deite.

Sem coragem para perguntar, eu apenas obedeço e me jogo na cama. Só nesse momento percebo o quão cansado estava.

— Tá. E agora? — pergunto, seguido de um bocejo.

— Agora, relaxe.

— É só isso?

— Só isso.

— E por que não disse antes? Do jeito que eu tô cansado aqui, nem precisaria mandar.

— Mas, senhor Charles... — Sashi fala pela primeira vez em um dia inteiro. — O Calebe já dorme assim normalmente e não muda nada. O que está pensando?

— Claro que se fosse apenas dormir, eu não estaria aqui. Vou lhe ensinar uma meditação para alcançar o sono REM mais rapidamente.

— Sono REM? — pergunto

— Sono REM é o estado do cérebro após alcançar o sono profundo, onde a atividade cerebral se torna tão intensa que se assemelha à quando estamos acordados — explica Charles, de um jeito bem didático. — É nessa fase onde os sonhos ocorrem e, obviamente, os personas e pesadelos entram em ação. Seu dom claramente é capaz de simular um Sono REM mesmo acordado, mas não passa disso: uma simulação. Uma cópia.

— Então, você está dizendo que eu...

— Vamos fazer você chegar ao sono REM e assumir o corpo de Sashi, para que lutem como um só.

— E acha que vai dar certo mesmo? Vamos conseguir vencer o Yatsufusa assim?

Charles aperta os olhos.

— Essa é minha aposta, jovem Calebe. Agora, concentre-se e faça tudo que eu mandar, está bem?

Ao deitar, penso em contar a ele que talvez não fosse adiantar de nada, pois sempre que eu durmo, ao invés de acontecer o que ele espera que aconteça, eu sonho com outra coisa.

A coisa que eu sonho todas as noites. O monstro que me persegue sempre que eu fecho os olhos, que me tira o sono, que faz eu me derreter sobre a cama quase todas as madrugadas. Eu nunca contei sobre esse sonho para ninguém além da Sashi; nem para minha mãe, meus amigos ou para o neurologista.

— Certo. Agora relaxe o corpo totalmente. Respire fundo, prenda o ar um pouco e então solte o ar lentamente, imaginando seu corpo leve como uma pena. Faça isso cada vez mais devagar.

De olhos fechados, sigo os comandos de Charles. Respiro profundamente, inflando os peitos e prendendo por um ou dois segundos o ar e então solto de forma lenta. Sinto formigamentos em certos lugares, arrepios em outros. Busco limpar a mente, afastar todos pensamentos, temores e dúvidas.

— Sinta os músculos relaxarem mais e mais. Relaxar.

Relaxar, relaxar, relaxar... minha mente é uma folha em branco, minha mente é uma folha em branco. Posso sentir essas palavras reverberarem em um espaço grande, aparentemente infinito, ficando cada vez mais longe, quase desaparecendo...

Os formigamentos continuam, a respiração desacelera ao mesmo tempo que os batimentos do coração. Aos poucos, o mundo tangível vai sumindo e me resta apenas o branco vazio da mente. A imensidão. Diminuindo... lentamente... relaxando, parando, adormecendo...

Só há um horizonte e então o branco vai se tornando preto. A claridade desaparece para dar lugar à escuridão. Sinto meu corpo flutuar, cair...

Até que...

— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHH!!

— Calebe?! Está tudo bem?! O que aconteceu?

Eu não consigo respirar ou falar, o mundo parece o balançar de uma sacola ao meu redor. Minha cabeça volta a ser aquele furacão caótico que não consegue concatenar um único pensamento.

Ao toque e com as palavras da Sashi é que consigo ir me acalmando aos poucos, domando um coração desgovernado e doutrinando uma respiração descontrolada. Minha testa brilha de suor e minhas costas parecem a de um atleta de Triathlon.

— Eu... eu... não consegui. Eu...

— Calebe. — Sashi segurou firme minha mão. Sinta seu toque reconfortante me acalmar à medida que a voz voltava. — Aconteceu de novo, não foi? Aquele sonho...

— Sonho? — Charles pergunta.

Aceno positivamente com a cabeça.

— Você não sonhou. Sequer chegou ao sono profundo.

Mesmo parecendo que ia morrer, tanto eu como Sashi — e isso era comicamente visível no seu rosto — não conseguimos esconder o espanto.

— Como... assim? Eu tenho certeza de que...

— Pois eu tenho mais certeza ainda que não sonhou — corta Charles, cruzando os braços. — Sua meditação durou apenas poucos minutos e, pelo fato de estar cansado, seu adormecimento foi mais rápido. Porém, pelo tempo, não teria como ter sequer passado de um sono leve. O sono profundo demoraria mais alguns bons minutos até que se desconectasse totalmente do mundo e, só então, depois de passar do sono profundo, você estaria de fato sonhando.

O que significava isso? Quer dizer que, todas as noites em que acordei por causa desse maldito pesadelo, eu não estava dormindo, mas apenas cochilando? Nada daquilo era um sonho?

Mas a pergunta que fica é: se eu nunca estive sonhando pra começo de conversa, então o que era aquilo que eu via todas as noites? Que eu acabei de ver?

— Quer me contar alguma coisa, jovem Calebe?

— Eu... eu quero tentar de novo!

— Pois muito bem. Já sabe o que fazer, então.

— Calebe. Tem certeza de que quer continuar com isso? — Sashi me questiona, seu rosto transbordando preocupação genuína. — Podemos achar outra forma de...

— Quero. Quero sim. Relaxa, Sashi. Vai dar certo agora.

Ela aperta os lábios em uma linha dura e mexe a cabeça em concordância. Eu sorri para tentar passar o máximo de confiança possível, mas a realidade é que eu estou pálido como um fantasma. Minha voz está rouca e, se eu pudesse me ver agora no espelho, diria estar olhando para um pedrado saído das profundezas da Cracolândia.

Mas não posso me dar ao luxo de parar, de desistir. Em algum lugar lá fora, tem um samurai mascarado nos caçando, querendo terminar uma luta inacabada. Não posso permitir que a Sashi perca de novo.

Não posso me permitir perder a Sashi de novo.

 

 

*****   *****

 

 

Já passa das 21:00h e já é minha terceira ou quarta tentativa frustrada de relaxamento. Isso significa que eu já tinha tido aquele pesadelo sufocante e aterrorizante pelo menos quatro vezes só hoje, quatro vezes mais do que eu conseguia suportar em uma noite só. Dessa vez, já está quase impossível relaxar como na primeira. Está ficando cada vez mais difícil de acalmar a mente, parar o coração que galopa dentro do peito como uma manada de cavalos descontrolados.

— Dro-Droga!

— Respira, Calebe! Já passou, já passou!

— Isso vai ser mais difícil do que imaginei. — Posso ouvir Charles comentando com pesar.

— Eu... eu consigo... só me dá...

Antes de eu terminar minha fala, um som dolorosamente ruidoso de algo ferindo o concreto da parede do corredor nos assombra. Charles e Sashi esbugalham os olhos ao sentirem algo que eu não sei, que eu não posso sentir. Mas não preciso sentir para saber que algo estava vindo e que ia dar merda.

— Essa presença... essa energia onírica...

— Ele está aqui — completou Charles, se virando para a porta. — Maldição! Não contava que ele nos encontraria tão cedo.

— Ele está arranhando as paredes? — Sashi está incrédula.

— Pelo visto, sua energia é tão grande que ele até mesmo consegue interagir com o Mundo Desperto sem precisar de um Campo Lúdico. Impressionante.

O som para de repente. Um clima de tensão se instala dentro do quarto quando o silêncio começa. Sashi segura a bainha em posição de sacar sua espada e Charles também fica atento, cerrando bem os punhos. Tão silencioso que eu consigo os batimentos alucinados do coração, o ar saindo e entrando pelas narinas dilatadas. Ouço a Sashi engolindo em seco várias vezes, os sapatos de couro de Charles roçando o piso de madeira.

Silêncio...

Um TIC invade aquela bolha de silêncio, vindo da porta. A ponta de uma lâmina, a ponta daquela nodachi, aparece da fresta entre a parede a porta, abrindo o trinco com um movimento.

A porta se abre lentamente, revelando uma figura alta e musculosa parada na entrada, coberta por sombras. Um fio luminoso vermelho sangue escapa pelos buracos dos olhos de uma máscara de demônio vermelha com detalhes pretos. Uma pressão gigantesca atinge meu corpo como uma pedrada.

— Merda! — remoí entredentes.

Ele balança a nodachi, colocando-a em frente ao corpo e o rosto de uma forma que os próprios ventos parecem obedecer ao seu comando.

— E então, brava Musashi... — Ele brande o espadão na direção da Sashi. — O que acha de terminamos nossa luta?

 



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