Projeto Corrompido Brasileira

Autor(a): IDK Lyly


Volume 1

Capítulo 3: Matsuda 3

Instalações de Estudo de Corrompidos Yama, VGM

26 de junho de 1052, 02hrs

Rebeca Matsuda

 

Pss, ei, Beca… – Uhm… me deixa dormir. – Acorda, Rebeca… – O que tá acontecendo? – Rebeca, acorda!

 

– Já acordei! – Saltei para a frente por reflexo.

 

– Cacete, pensei que tinha morrido – disse Eloah.

 

– É, eu quase morri.

 

Quando me dei conta notei que estava num lugar escuro. Havia uma cama ali, provavelmente a que eu estava deitada antes de saltar. Eloah estava sentada nela. Havia uma enorme porta de vidro também. Silêncio. 

 

Eh… Eloah, onde a gente tá?

 

– Estamos na sua cela.

 

– Minha cela?

 

– Sim, é um quarto onde presos fic-

 

– Eu sei o que é uma cela, mas como eu vim parar aqui? Eu só lembro de cair no sono.

 

Ah, você desmaiou no fim dos testes, mas relaxa que isso é normal. Além do mais, quantos metros você conseguiu?

 

– Teste? Metros? Quê que cê tá falando, não lembro nem de ter feito um teste, quanto mais um tamanho.

 

Uh, ok. Você deve estar acabada. – Ela deu tapinhas na cama, abrindo espaço para eu me sentar. – Mas então, como estão as coisas? Sente algo?

 

– Além de medo, frio e fome?

 

Ah… bom, isso também.

 

– Eu ainda tô muito confusa com toda essa situação. Ainda não entendo nada do que tá acontecendo aqui. – Fui ao lado de Eloah, me sentando.

 

– Eu já disse, você tá presa e é um objeto de estudo do governo.

 

– Mas por quê?!

 

– Porque somos perigosos, Rebeca.

 

– Não tem sentido! Eu sei, eu tenho um poder faz um tempo e também evitei deixar isso aberto por medo, mas eu não pensava que era assim! O VGM não deveria nos proteger? 

 

– Bom, o VGM protege os humanos normais.

 

– Eu sou uma moradora de Yama, eu sou tão especial para o mundo quanto qualquer outro povo, ou ao menos é assim que é ensinado.

 

Heh, parabéns então, mas você também não é parte de Uncheld?

 

– Por parte de mãe, sim. Mas o que isso tem a ver?

 

– Uncheld protegia Corrompidos, foi por isso que o VGM os derrubou.

 

– Derrubou? 

 

– É, o Incidente da Era do Gelo, saca? Foi o governo de Ayumi que providenciou junto com Bjorn.

 

– Não… cara. Eu não sabia…

 

– Ninguém sabe, é assim que o VGM funciona. E uau, uma Corrompida de Uncheld te faz um animal nada especial pro mundo, e olha que eu sou de Khaoz.

 

– …

 

– Desculpa. – Ela parecia notar o peso das palavras.

 

Não respondi nada.

 

Demorei um pouco pra pensar sobre aquilo.

Eu vivi uma vida tranquila por anos. Eu elogiei tanto a merda da cidade que eu vivia pra no fim ela ser uma fachada pra isso. Naquele momento as dores que senti durante os testes voltaram. Pude me lembrar. É, aquilo doeu muito. O medo de toda aquela situação apenas intensificou mais a dor. Eu tinha o que, 17 anos na época? É, foi algo tenso.

Turbilhão de pensamentos. Uma parte de mim queria que aquilo fosse um sonho, enquanto a outra queria que fosse tudo mentira.

Analisando isso tudo agora, aquela foi a primeira vez que eu realmente parei pra pensar no que estava acontecendo ao meu redor. Talvez seja porque estava acontecendo diretamente comigo?

 

– Eloah.

 

Uhm?

 

Respirei fundo. Precisava achar uma forma de como falar.

 

– Você disse que não tem uma forma de sair daqui. Alguém aqui já tentou alguma vez fugir desse lugar?

 

– Claro que não, ninguém é louco o suficiente. Claro, com exceção de alguns lunáticos que só agem e não pensam.

 

– Então se eu pensasse numa forma de fugir daqui eu teria alguma chance?

 

Ela me encarou com um sorriso idiota como se eu fosse uma palhaça.

 

– Me responde!

 

– Rebeca, você é uma maluca, mas vou te dizer que simpatizei com você. Então ok – disse se levantando da minha cama. – Faça o que quiser, só tome cuidado – então apontou para o canto da sala me mostrando uma câmera.

 

Pus a mão na boca na hora prendendo até minha respiração.

 

– Hoje quando todos acordarem eu vou fazer uns testes, mas vou pedir para alguém te guiar pela instalação e te informar mais.

 

– Tem mais aqui? 

 

– Você acha que somos os únicos Corrompidos na instalação?

 

– Eu não vi ninguém até agora.

 

Ah, é. – Tombou a cabeça para o lado. – Bom, amanhã eu te apresento eles. – Foi até a porta de vidro. – Nos vemos logo mais, tente dormir um pouco.

 

– Como se fosse possível – reclamei cabisbaixa.

 

– Bom, você se acostuma.

 

– O objetivo é não me acostumar.

 

– Haha, assim que é bom! Otimismo, Rebeca! 

 

– …

 

– … Boa noite, Rebeca. 

 

– Noite, Eloah.

 

Ela então saiu da cela. 

 

– Uhm… – Me joguei na cama, encarando o teto escuro. – Me acostumar, huh.

 

Naquela noite não lembro de ter dormido.

 

Instalações de Estudo de Corrompidos Yama, VGM

26 de junho de 1052, 06hrs

Rebeca Matsuda

 

– Vamos, levantem! – Droga, eu não dormi nada.

 

Eu queria tanto ignorar aquele toque infernal, mas eu não queria apanhar dos guardas parrudos e armados que abriram as celas. A madrugada mais terrível da minha vida.

Tive que me levantar, e com o peso de toda uma noite mal-dormida e traumatizada nas costas, andei praticamente me rastejando para fora da cela. 

O lado de fora não era muito diferente do que imaginei, era como uma instalação de ficção-científica mesmo, com diversas plataformas interligando as celas e uma escadaria enorme levando para baixo até uma enorme porta.

 

Uhm… – Olhei ao redor e notei outros com o mesmo jaleco verde de hospital, todos sendo escoltados por guardas.

 

Eles pareciam cansados, se apoiando nas paredes e babando pelo caminho, tendo que ser empurrados pelos guardas. 

 

– Isso vai ser um saco – suspirei.

 

Evitei interagir muito com os outros Corrompidos no caminho que seguimos. Tivemos que descer algumas plataformas e escadarias e nos orientaram por longos corredores brancos e frios. Era possível ouvir os murmúrios e passos de todos ali junto a um ranger nas paredes.

 

– Matsuda! – Uma voz feminina veio por trás, pulando em mim e me abraçando. – Bom dia, fofa! Dormiu bem?

 

Eh? – Olhando para trás notei uma garota loira com um enorme sorriso. – Eu… – A encarei, tentando a reconhecer. – Sim, eu… tive uma noite meio chata e…

 

Pff! Haha! A gente não se conhece, não precisa ficar toda envergonhada – disse me soltando, indo para minha frente. – Prazer, Matsuda. Meu nome é Rachel.

 

– Rachel, ahn… Sou Rebeca, embora eu ache que você já sabe, mas como? 

 

Uhm? Eloah me contou, sou amiga dele.

 

– Sério?

 

– Ele me disse que você faz muitas perguntas. Tá sempre em dúvida, garota?

 

– Eu tô é cansada. – Tombei para os lados por causa do sono e Rachel ofereceu seu ombro como apoio. – Sinto que vou morrer.

 

Oh, que isso. – Ela segurou meus braços e fui praticamente arrastada pelo caminho. – Ainda é seu segundo dia, então dá tempo de se acostumar, ainda mais com seus planos mirabolantes em ação.

 

– Não quero me acostumar. E além do mais, como assim planos mirabolantes?

 

– Eloah me disse que você tem planos de fugir daqui. 

 

Ah, contou, é…?

 

– É, ele passou na minha cela. – Continuou a caminhada cantarolando – Sabe, antes ele até tinha algumas ideias para fugir daqui, mas não se sentia preparado o suficiente para fazer isso, e eu como amiga sabia de tudo que ele queria. Mas aí você apareceu, e parece que você é louca o suficiente pra tentar pôr isso em prática. Ele riu tanto ontem dizendo que a novata tinha uma chance de fazer algo.

 

– Então eu sou tipo, sei lá, a doida daqui?

 

– Em partes, sim. Mas também é como se ele soubesse que você viria. Antes ele parecia mais surpresa com os novatos. Será que ele viaja no tempo e planejou que você fosse capturada ontem?

 

– Vocês daqui não tem muita empatia, né?

 

Haha, foi mal. Quebramos um pouco quando passamos muito tempo aqui.

 

O modo como as pessoas dali falavam era irritante, mas não conseguia julgá-los muito bem, era como se fosse parte de sua natureza.

Seguimos em um enorme grupo por longos cinco minutos, então decidi andar por mim mesma ao invés de ser arrastada quando notei que estávamos perto do nosso destino. Rachel me contou que tínhamos refeições duas vezes ao dia, e agora estávamos indo ao café da manhã. Ela disse também que as refeições dali não eram das melhores, servindo apenas para não morrermos de fome.

 

Um portão enorme, assim como muitos outros por ali.

 

– Por que toda porta desse lugar é tão grande? – perguntei.

 

Rachel apenas deu de ombros com uma expressão idiota. Que estranhos.

Agora estávamos esperando a abertura. Um amontoado de crianças, adolescentes, adultos e até alguns idosos estavam ali. Eles não se importavam em separar as pessoas por idade ou algo parecido, mas éramos apenas ratos de laboratório, então não tinha muito o que desejar. Alguns guardas estavam discutindo algo mais ao canto do portão sobre algo que não pude ouvir, já que estava no meio da multidão.

 

– Ei, Rachel, o que tá conhecendo? – perguntei.

 

– Sei lá, os caras daqui são meio perturbados, então devem estar só brigando com a própria sombra.

 

– Eu não acho que a própria sombra deixaria alguém tão irritado assim. – Tentei me erguer na ponta dos pés para ver melhor a situação, e parecia que um guarda estava gritando com um garoto.

 

– Se afaste! Se afaste agora! – gritou.

 

Havia muitas pessoas na frente, mas eles pareciam assustados, indo cada vez mais para trás. Fui empurrada, quase caí sem equilíbrio e perdi minha visão da confusão, até que ouvi um grito histérico vindo do outro lado e, posteriormente, barulhos de tiro. E o caos generalizado começou a se espalhar.

 

– Parem todos! – gritaram os guardas.

 

 Todos foram para trás e se espremeram o máximo possível enquanto os guardas entraram em formação e nos cercavam com suas armas. Fui prensada contra a parede sem chance de me mover.

 

– Fiquem todos quietos aí no canto! – gritou como um demônio pronto para atacar, não abaixando sua arma para nada.

 

Quando pude notar, lá estava o corpo de um garoto jogado no chão com buracos espalhados em seu peito e pescoço. Sua expressão de terror misturado ao sangue jorrando pelo chão instaurou o pânico em todos. Os fortes gritos  de todos ali me deixavam louca. Calem a boca. Aos poucos senti um aperto no peito e mal pude respirar direito, simplesmente caí de joelhos tentando recuperar o ar e manter a cabeça fria.

 

– Isso é comum, então não fique tão agitada – disse Rachel que se abaixou ao meu lado e acariciou minha cabeça. – Parece que ele se jogou em cima de um guarda na tentativa de ser alvejado, mesmo. Não é culpa sua. – Sua voz era tão calma.

 

– Ver pessoas morrendo… ainda não é normal pra mim – me menbrulhei enquanto forçava os olhos para me concentrar, mas os gritos dos outros eram mais altos do que minha própria mente.

 

– Olha, não aconteceu nada com você, então não precisa se preocupar. – Como ela pode falar assim? – O Eloah costuma dizer que o que acontece com os outros não é problema seu, e a morte daquele garoto não é problema seu.

 

– Não tá ajudando. – Mesmo que eu tenha recuperado um pouco do fôlego perdido, ainda estava assustada, caída no chão com as mãos sobre a cabeça. – Como podem dizer coisas assim? E eu pensava que Eloah não era tão apática a esse ponto.

 

– Ele tem seus propósitos.

 

Ela me ajudou a levantar, mas minhas pernas ainda tremiam. Estava tonta e me mantive de pé sobre os ombros de Rachel.

 

– Vamos de qualquer jeito – disse um guarda. – Sem perder tempo. – E o portão do refeitório foi aberto.

 

– Vamos lá. – Rachel acabou me arrastando até uma das mesas e me pediu para esperar enquanto ela pegava nossa comida.

 

Alguns Corrompidos ali ainda estavam em transe e nem se levantavam da cadeira para pegar sua comida. Isso é triste.

Mas o mais triste foi ver alguns levando isso como uma casualidade e comendo mais um café da manhã de mais uma manhã comum.

 

– Eu realmente quero vomitar...

 

– Não vomite ainda, por favor! Você precisa se manter forte – disse Rachel chegando ao meu lado me entregando um prato. – Coma, você precisa comer para manter seu corpo e mente saudáveis.

 

– É cinza... – Aquilo parecia um mingau estragado, completamente cinza e paposo. – Isso é comida?

 

– Te garanto que sim. – Ela comia com tanta tranquilidade que até me assustava. – Então, Matsuda.

 

– Que foi...?

 

– Já pensou em algo?

 

– Sobre?

 

– Sua fuga.

 

Travei. Foi em alto e bom tom, fiquei assustada. Ela falava em um tom tão natural mesmo com os guardas a poucos metros de distância. Mas eles nem mesmo se importavam em olhar para nós. Mas que merda.

Encarei meu prato de comida por alguns segundos.

 

– Embora tenhamos tratado como piada na madrugada de hoje, o Eloah parecia diferente quando falava de você. Deve ter algo aí, então eu também estou curiosa. Por acaso antes de vir pra cá você era filha de um militar? – perguntou.

 

– Meu pai era médico na verdade.

 

Uhm, entendi – continuou enquanto comia. – Mas, sabe, a última pessoa que tentou fugir daqui morreu, então eu vou te dizer pra desistir e só aceitar que vai ficar aqui pra sempre.

 

– Eu não quero! Por que ninguém aqui faz um esforço?! Eu tô a um dia e já estou enlouquecendo! Não podem só aceitar!

 

Rachel mexia no seu prato como se estivesse separando verduras. Seu olhar penetrante. Me olhava como se estivesse lendo minha mente.

 

– O Eloah já me falou de um cara que tentou fugir… – disse num tom baixo.

 

– O que…? Como?

 

– Ele quase conseguiu, na verdade. Planejou tudo como um louco e causou uma confusão por completo, mas desapareceu para sempre.

 

– Ele só sumiu? Como assim?

 

– Sei lá, teve uma guerra e ninguém sabe sobre ele. Alguns disseram que ele conseguiu fugir, outros dizem que ele só morreu. De toda forma, foi uma loucura quando ele fez tudo aquilo.

 

– Nossa… – Me senti cabisbaixa e derreti na cadeira, encostando o queixo no peito. – Então é assim…

 

– Bom, sim, só tô te dizendo isso pra você pensar direito. Se for fazer alguma loucura, saiba que vai ter que se acostumar a ver gente morrendo.

 

– Não quero me acostumar com mortes...

 

– Não vai precisar se o plano der bom. Sei que vai ser muito difícil pra você planejar fugir daqui, embora eu ainda ache que você só deveria desistir desse plano de novata, mas saiba que iremos te ajudar um pouco se precisar de nós. Quem sabe até você nos leva juntos.

 

– Eu vou conseguir! Isso tudo só me abalou um pouco.

 

– Certo... Come logo.

 

– Que coisa nojenta. – O gosto era bom, mas era tão estranho colocar aquilo na boca. A textura é horrível.

 

Rachel era graciosa mesmo comendo aquela coisa nojenta. Segurando uma colher com tanta elegância. Levantando seus cabelos dourados por cima da orelha. Era difícil não encarar ela.

 

– Se apaixonou? – Ela notou, me encarando com um sorriso de lado.

 

– Não, não! É que... Err – Merda!

 

– Não precisa se explicar com nada, fofa. Mas eu gosto do Eloah, então não tenta dar em cima de mim.

 

– ... Eloah? Espera, você também… gosta de mulher?

 

– Pera, como assim mulher?

 

Hein?

 

Ahn?

 

Nos encaramos por alguns segundos. Fiquei vermelha como um tomate, segurando minha colher com força, quase a quebrando.

Rachel também ficou vermelha, mas por outro motivo.

 

Ahahahaha! Que merda, garota! Como assim "gosta de mulher?"?

 

– Ué, você gosta da Eloah!

 

– Eloah é homem, Matsuda! 

 

Isso não faz sentido. Definitivamente não faz.

 

– Olha, menina, termina de comer isso logo e já já iremos para o banho. Você pode perguntar diretamente para ele quando nos virmos, ok?

 

– Ok… – Continuei comendo, mas encarando Rachel durante todo esse tempo, e durante todo esse tempo ela riu da minha cara. – Como assim homem…

 

Mesmo com o suicídio daquele garoto, os horários se mantinham, sem sair de ritmo. Realmente éramos dispensáveis, e agora o garoto estava livre saindo num saco preto. E parece que o único momento em que podíamos respirar tranquilamente era no tempo livre, mesmo, e que parecia ser bem curto.

O banho era rápido, no máximo 10 minutos. Era separado por sexo, então não era tão desconfortável, mas ainda assim era um incômodo tomar banho com pessoas tão depressivas. Ainda mais com a Rachel, que ficava encarando meu corpo o tempo todo com aquele olhar duvidoso.

No fim, acabamos sendo liberados para circular por algumas áreas limitadas da instalação antes do início dos testes.

 

– Eu não quero passar por aquilo de novo – murmurei.

 

– O quê? Fala dos testes?

 

– Sim, sobre eles. – Só de pensar naquilo meu corpo congelava.

 

– Relaxa, se você se comportar só vai precisar fazer isso mês que vem.

 

– Então eu tenho um mês pra planejar a fuga – cerrei os punhos com certeza e vontade. Com certeza não iria passar por tudo aquilo de novo.

 

– Boa sorte com tudo, garota – riu.

 

Rachel apenas riu de mim e seguimos por algumas áreas. No geral ela apenas me informou de salas e locais que eu poderia circular sem ser morta ou espancada por algum guarda daquele lugar. 

O lugar era totalmente vazio. Nem mesmo a nossa multidão podia preencher os enormes corredores da instalação. Em alguns momentos não viamos nem uma alma viva. Que medo.

 

– Eae. – E surgindo do absoluto nada uma jovem garota veio ao nosso lado. – Quê que cês tão afim de fazer?

 

Ela tinha um vocabulário mais solto, além de uma aparência mais jogada. Sua expressão entediada, mas com um sorriso forçado dava a impressão de ser uma encrenqueira.

E qual é a mania do pessoal daqui de aparecer por trás?

 

– Com você? Nada, ninguém te chamou. – Rachel respondeu de forma fria, me puxando para seu lado.

 

– O que cê falou, sua cacho-...

 

Ahn, com licença – chamei.

 

Ah, me chama de Moni, garota nova. Desculpa agir desse jeito na tua frente. – Ela até que era um pouco educada, acho que era apenas seu modo de falar.

 

– Eu sou Rebeca, mas pode me chamar de Beca. – Estendi minha mão para cumprimentá-la.

 

– Prazer. – E apertamos nossas mãos com força.

 

Sua pele era negra assim como a de Eloah, uma moradora de Khaoz? Tinha um cabelo crespo e bastante cheio. Suas mãos eram bem fortes também, podia dizer até que calejadas.

 

– Além do mais, vocês se conhecem? – perguntei.

 

Ah, sim, nós nos conhecemos sim. Somos amigas do Eloah, e ele me disse para encontrar vocês.

 

– Esse assunto tá ficando chato! Bora aproveitar o pouco tempo que nos resta! – Rachel interrompeu de forma brusca e totalmente desajeitada. – E temos que ver o outro.

 

Ah, tem mais pra a gente ver? – Virei para ela.

 

– O Eloah quer que a gente vá ver o Geki – disse Rachel.

 

– Quem é Geki?

 

– Um dos melhores amigos do Eloah – disse Moni. – Um dos caras mais estranhos da instalação, nerd igual o Eloah.

 

– Acho que vou gostar dele.

 

– Você é estranha, garota. – E Moni mostrou um sorriso de lado, um pouco debochada.

 

Jogamos conversa fora enquanto circulavamos pela instalação à procura do tal Geki. Nisso pude entender um pouco mais das garotas numa conversa tranquila.

 

– Mas ei, tem algo que ainda não sei – comentei durante a caminhada. – Quais são os seus poderes? Sabe, suas Auxiliares…?

 

Uhm… – Moni parecia um pouco incomodada, apenas coçou sua nuca e deu um sorriso sem desajeitado – Sabe, não é algo muito legal de se perguntar pra um Corrompido…

 

Fechei a cara numa expressão triste abaixando a cabeça.

 

– Perdão, eu não entendo muito dessas coisas ainda. Eu só fiquei curiosa.

 

– Bom, se quiser saber da minha, eu posso controlar outras pessoas – disse Rachel.

 

Me animei saltando ao seu lado.

 

– É sério? Quantas pessoas você pode controlar? Qual o seu limite? O Eloah me contou que tem um limite para usarmos!

 

– Ei, ei! Calma aí, garota – pôs a mão no meu ombro e sorriu de canto. – Eu posso controlar algumas pessoas e não é lá grande coisa. Se estiver tão curiosa, na hora de fugir você pode me botar do lado de fora e eu vou te mostrar.

 

Eu sorri. Achei interessante, embora não soubesse de tanta coisa assim. Entender cada vez mais sobre toda essa ideia de Corrompidos e Auxiliares era realmente importante.

 

– Eu imagino qual é a do Eloah – quando disse isso as garotas fizeram um sinal de X com os braços, o que me fez ter uma reação pior que a para a resposta da Moni. 

 

E, no fim, acabei descobrindo muito mais coisas sobre o VGM, como as empresas criadas para vender os frutos dos experimentos por cima do estudo dos poderes dos Corrompidos, a maioria sendo farmácias, e eu até comprava em algumas delas. O mundo não tinha noção de que debaixo do solo aquele governo perfeito era formado por cima dos cadáveres de vários inocentes, acho que alguns apenas ignoram essa hipótese.

 

– Os remédios de asma que eu comprava vinham dessas farmácias – bufei sentindo um peso na consciência.

 

– Ué, e tu tem asma?

 

– Não, a namorada dela que tem – exclamou Rachel.

 

– Como você sabe da minha namorada?

 

– O Eloah me contou que leu algumas coisas na sua ficha. Não esqueça que fofocas sobre você o tempo todo.

 

Oh, entendo. Será que ele falou das minhas coisas pra mais alguém? – reclamei cruzando os braços. – Tipo esse tal de Geki.

 

– Mas vocês gostam tanto de mim, hein? – Um garoto alto de cabelos castanhos instantaneamente apareceu ao nosso lado. – Quanto amor.

 

– Esse é o Geki – disse Rachel o apresentando com um sorriso forçado.

 

– Babaca. – Aparentemente Moni também não gostava dele.

 

– Prazer, Geki – cumprimentei com um sorriso.

 

– Meu nome na verdade é Renan; coloquei Geki no nome pra ficar mais parecido com vocês, povo de Ayumi.

 

Ah, e de onde você vem?

 

– Sou de Uncheld, assim como metade de você, mas provavelmente de outra área.

 

– Sério? Mas Uncheld não é habitável há décadas! Quantos anos você tem?

 

– Eu tenho 19, e o lugar não é tão inabitável assim, tem uma galera vivendo lá de alguma forma. Quer visitar meu iglu algum dia se sairmos daqui?

 

– Foi mal, cara. Eu namoro.

 

– Chame sua namorada também.

 

– Ignora esse otário, garota.  – Moni me puxou para seu lado, me abraçando como uma amiga ciumenta. – Não fique muito perto dele ou vai acabar infectada.

 

– Ele tem alguma doença? 

 

– Eu ficaria impressionada se ele pudesse ficar doente.

 

– Isso magoa.

 

– É o objetivo!

 

Ah, tanto faz, tu é muito chata mesmo. – Geki coçou sua nuca.

 

– O que tu disse, merdinha!

 

– Tanto faz, só vim avisar que parece que algum problema tá acontecendo, então fiquem atentas.

 

– Como assim? – questionamos juntas.

 

E, progressivamente, a temperatura começou a diminuir e o frio já se espalhava por todo meu corpo. Senti um forte arrepio tomar meu corpo e me agarrei aos meus braços com força. Moni não parecia se importar, ficando até com uma expressão de tédio diante da era do gelo que tomava a área. Geki e Rachel demonstraram certo incômodo, mas ainda tomaram frente na situação.

 

– Vamos – disse Geki.

 

E em um único piscar de olhos ele não estava mais ali. Mas o quê!?

 

– Odeio quando ele some assim – exclamou Rachel.

 

– Como ele fez isso? – perguntei.

 

– Alguma coisa sobre uma arte Marcial ou algo assim – disse Moni.

 

– Que rápido… – Minha cabeça estava congelando.

 

As paredes brancas e lisas estavam começando a ficar com uma textura congelante como se fossem de geleiras. Os alto-falantes levaram certo tempo para dar um aviso de recolhimento.

 

Atenção a todos os Corrompidos nas áreas de livre acesso – disse a voz do alto-falante. – Se dirijam imediatamente para uma sala de proteção junto aos guardas até o próximo aviso. Repito…

 

Mas não demorou muito para sermos abordadas por um pequeno grupo de guardas armados nos guiando rudemente para a tal "sala de proteção", e encontramos alguns outros grupos no caminho fazendo o mesmo, todos com tanto frio quanto eu.

 

– Vocês sabem o que tá acontecendo? – perguntei para as meninas.

 

– Na real não – Moni respondeu. – De onde veio isso do nada? Vai causar uma confusão enorme.

 

Uhm

 

– O ar-condicionado deve ter quebrado – Rachel supôs com uma voz aguda.

 

A encaramos.

 

– Qual foi?!

 

E fomos jogados numa pequena sala de luzes vermelhas e temperatura regulada.

Agora estávamos todos ali, com exceção de Geki e Eloah, até muitos outros Corrompidos numa sala com pouca vigia.

 

– Não vejo câmeras aqui… – observei ao redor notando a falta de segurança.

 

– Essa sala é uma loucura, tem tanta gente apertada que nem os microfones poderiam captar algo – informou Rachel.

 

Se eu soubesse que algo assim aconteceria eu teria pensado melhor num plano. Seria um bom momento para trocar informações, mas a confusão era grande demais até para me ouvir.

 

– Que saco! – gritei inconformada.

 

Passei mais de uma hora agindo como um porco assustado que vai para o abate.

Foi esse tempo que levou até que todos os problemas fossem resolvidos. Os guardas pareciam irritados com aquilo. Bom, pelo menos eu não tô sendo torturada numa cadeira ainda. Mas com certeza tinha que acontecer algo pior.

 

– Todos serão levados ao salão principal para um aviso importante – gritou um dos guardas.

 

– Será que nos descobriram? – sussurrei para Rachel.

 

– Espero que não, não fizemos nada.

 

Todos estavam muito apreensivos durante a caminhada até o salão. Aparentemente não é comum que isso aconteça. O mais provável é que aquilo não tenha sido um acidente e descobriram algo. Meu medo era de que as câmeras tivessem me captado falando sobre planejar uma fuga. Droga.

Não consegui ver mais Moni pelo caminho, tendo apenas Rachel do meu lado, segurando minha mão.

Como um batalhão de soldados traumatizados nos organizamos no tal salão: enfileirados e com expressões infelizes, todos ordenados por códigos.

Haviam no mínimo uns 70 guardas posicionados em todos os cantos e prontos para atirar nas nossas cabeças. O salão era enorme, tendo um formato de domo e com luzes fortes do seu topo. Um grande palco se encontra próximo a única entrada do local.

Até que enfim chegaram aqueles que convocaram todos da instalação ali.

 

Ah, não... – disse Rachel ao ver um homem enorme entrando na sala.

 

O ar ficou pesado de um segundo para o outro. A aura que ele transpassava era assustadora, como se uma mão gigante apertasse nossos corações. Ele era alto, barbudo e trajava uma armadura antiga, parecia estar tomado pela raiva, nos olhando com um olhar de desprezo. 

 

– Quem são eles? – sussurrei.

 

– Cala a boca – Rachel reclamou apertando meu pulso, sem piscar, sem mudar a direção dos seus olhos, parecia ainda mais tensa do que eu.

 

E se posicionando na frente de todos, um dos guardas tomou a frente: 

 

– Honda Tadakatsu, um dos Três Grandes Generais, aqui presente exige a presença de todos os Corrompidos da instalação para um comunicado urgente – disse em alto e bom som. – Respondam as perguntas feitas com sabedoria ou sofrerão as consequências.

 

– Fiquem quietos e respondam apenas o que eu disser, seus ratos imundos.

 

Merda! 

 

A voz dele. Tudo. Ele era o demônio. Eu senti que ia morrer a partir do momento que ele começou a falar. Não foi só a força que senti vir daquele animal; ódio era o que transbordava!

 

 – Vocês me fizeram vir aqui porque algum dos animais desregulou o sistema de temperatura da instalação, e eu quero que esse merdinha apareça ago-...

 

– Fui eu que fiz isso, senhor Honda – Eloah? – Eu queria chamar a sua atenção.

 

Eloah surgiu de uma porta aos fundos. Seu jaleco estava totalmente ensanguentado e sua voz estava fraca. Cambaleou lentamente até o palco e sorriu fazendo uma reverência.

 

Oh... – Eu sabia! Eloah tinha feito aquilo, mas expor isso para aquele cara gigante?

 

Ele o encarou, Honda é seu nome? Ele estava tão sério, mais sério que antes. Parecia que pularia no pescoço de Eloah a qualquer momento. Mas o pequeno garoto não recuou, apenas ergueu a cabeça para o homem 7 vezes seu tamanho.

 

– Venha comigo. – Aquele general a todo momento raivoso estava com uma expressão de desprezo e raiva estampados no seu rosto. – Todo o resto está liberado.

 

E seguidos por diversos guardas, Eloah e o general partiram dali como se estivessem indo a um fuzilamento.

Nada daquilo fazia sentido, ou eu não queria enxergar. Que droga tá acontecendo? Com certeza isso tem alguma explicação. Tem que ter!

 

– Vai ficar tudo bem – disse Rachel pondo o braço em volta do meu pescoço.

 

– Você sabe por que ele se expôs desse jeito, loira? – disse Moni surgindo ao nosso lado.

 

– Ele vai contar quando voltar.

 

A sequência de eventos me impediu de formar uma opinião no momento.

 

Instalação de Estudo de Corrompidos de Yama, VGM

26 de junho de 1052, 11hrs

Eloah

 

– Por que você fez isso, seu Corrompido de merda?! – disse Honda ao jogar Eloah contra a parede, pondo seu enorme pé contra o ombro do garoto.

 

Eles ainda estavam em um corredor, apenas se certificaram de estar distantes da multidão.

 

– Isso é óbvio, Honda – disse Eloah. 

 

– Não me chame pelo nome, seu lixo! Qual o seu plano?!

 

– Meu não, Honda… Hehe… 

 

– O que você…!

 

– Logo mais vamos estar fora...

 

– Seu merda!



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