Volume 1
Capítulo 16: A barreira
Antes de atravessarem a porta que dava acesso ao Centro de Armazenamento, Marco perguntou:
— E se o sangue estiver estragado? Quero dizer, por causa da falta de energia?
— Reze para que não tenhamos vindo à toa. Estamos arriscando nosso pescoço aqui. — A mulher empurrou a porta, abrindo-a para um espaço de trevas ainda mais espessas que antes. Um zumbido baixo advinha do interior da repartição.
Correndo a lanterna pelo local, Marco se assustou ao ser confrontado por dois fachos luzidios que flutuavam a centímetros do chão, como um par de olhos sem corpo. As luzes miaram e o gato preto voltou a olhar para frente, prosseguindo em seu caminho ao se embrenhar pela escuridão.
— Que droga, Régulo!
— A barra tá limpa, Marco? — perguntou Jacira.
— Parece que sim.
— Então seguimos — ordenou ela. — Peguem todo o sangue que encontrarem. Deem preferência ao tipo O negativo.
Confrontaram-se, porém, com o cenário que confirmava as suspeitas de Marco. Em verdade, a falta de luz dificultava no processo de busca, mesmo com as lanternas, mas o contratempo mais irritante havia sido a quantidade de sangue estragado que encontraram dentro dos refrigeradores desligados há três dias.
Demandou algum tempo até distinguirem uma pequena geladeira voltada para a parede, ainda piscando suas luzes diminutas em verde e alaranjado. Jacira se aproximou com a lanterna em punho, abrindo o compartimento.
— Demos sorte. Acho que essa daqui funciona à bateria — disse ela, olhando para dentro do refrigerador. — Deve ter umas dez bolsas de sangue, e é do tipo que precisávamos.
Neste momento um grito humano cortou os tímpanos, depois o ruído de algo pesado contra o chão. Régulo guinchou estridente quando o barulho invadiu as trevas, o tiro vindo em seguida, iluminando a escuridão por um instante infinitesimal.
Assustado, Marco correu às cegas; o facho da lanterna na mão servindo apenas para tornar a situação ainda mais delirante. Correu até se chocar contra a parede, colando às costas na alvenaria fria da repartição. Arquejava depressa. A pistola firmemente segura nas mãos. O dedo no gatilho. O que estava acontecendo?
— Por Deus, Nestor! — esbravejou Jacira.
— Mil perdões, tenente! Atirei sem intenção.
— Não consegue prestar mais atenção?
— Senti algo passando entre as minhas pernas, tenente. Acabei me assustando.
A mulher fungou, incapaz de disfarçar a irritação.
— E os culhões entre elas. São de enfeite?
— Não, senhora!
— Molecagem…
Marco iluminou na direção dos dois, constatando que não havia mais nada próximo às pernas de Nestor, apenas o botijão de nitrogênio líquido que o policial derrubou na confusão. Arqueou uma sobrancelha. Marco podia jurar que Régulo não se afastara, sem contar que o gato não tinha costume de roçar pela perna de estranhos (Levi havia sido a única exceção). Um calafrio lhe arrepiou os pelos do corpo como se os dedos gélidos da morte lhe roçassem pela coluna.
— Vamos sair daqui de uma vez — ordenou Jacira.
Marco e Nestor concordaram apressados.
Rapidamente, refizeram os passos e seguiram de volta para a viatura, Nestor carregando o pequeno refrigerador com os braços musculosos.
Quando o sol voltou a brilhar sobre eles, sentiram que finalmente podiam respirar aliviados; a tensão do interior da construção se dissipando quase que de imediato.
Em tempo, Nestor ajeitou o objeto no porta-malas do carro e partiram dali, seguindo outra vez a oeste pela autoestrada. Ainda faltava o combustível.
— Lugarzinho sinistro aquele — disse Nestor, algum tempo depois.
— Acho que serão cada vez mais comuns daqui pra frente — comentou Marco.
O motor ronronava sonolento pela estrada vazia. A solidão os seguia como um quinto companheiro de viagem. Compenetrado, Marco meditava a respeito de tudo que acontecera até então. O que seria de sua vida dali pra frente? Depois que salvasse Levi? Seguiria com seu projeto de vingança?
“Acha que sua mãe gostaria de ver o filho dela se arriscar desse jeito?”, escutou a ralhada de Beatriz se repetir em alto e bom som, lembrando-se que a discussão acontecera ainda na madrugada da véspera, mas já parecia tanto tempo… Uma vida inteira. Na ocasião, fingiu demência frente ao comentário de Beatriz, mas a verdade era uma só: ela estava certa. Oh, céus. E como estava. Colocaria sua vida na linha de frente para se vingar de um mundo que já não existia? Sua carne e seu sangue era, em suma, toda a lembrança que ainda existia de sua mãe.
Então vislumbrou uma cintilação que fez seu coração palpitar.
— Freia! — gritou Marco.
Assustada, Jacira atolou o pé no pedal, obrigando o carro a cantar sob a parada brusca e os ocupantes, guinarem para frente.
— Que aconteceu? — Ela perguntou exasperada, soltando o cinto enquanto acariciava o pescoço.
Marco, porém, já havia deslizado para fora. Régulo pulou de seu colo.
Calado, seguiu numa caminhada cautelosa. Os passos faziam eco contra a estrada inóspita.
— O que foi? — gritou Jacira à distância.
Marco sentia que tanto os olhos da tenente quanto os de Nestor estavam postos sobre suas costas, analisando a estranheza de sua ação, mas sabia que não estava louco, pelo menos não ainda. Tinha certeza que vira alguma coisa.
Esticou o braço.
E, como se fosse um mero detalhe da paisagem, o indicador encostou em alguma coisa — alguma coisa que Marco não era capaz de enxergar, cintilando a partir da ponta do dedo com a mesma iridescência que avistou do carro, subindo pela superfície enquanto adquiria tons de escarlate e açafrão.
Marco se afastou, incapaz de assimilar a teoria insana que borbulhava à mente, mas o que não era insano frente a tudo que havia acontecido até então? Num ímpeto, cerrou o punho e tentou forçá-lo contra a coisa, mas foi como socar um muro de pedra.
Olhou para cima, depois para leste e para oeste. Como era de se esperar, a estrada e o restante da paisagem se esparramavam pelo outro lado, mas Marco não conseguia dar nem mais um passo que fosse. Por mais que empurrasse e insistisse, as mãos invariavelmente batiam em algum tipo de obstáculo.
Sentindo as pernas fraquejarem sob o peso da realidade, cambaleou para trás, engolindo o horror como faria com um copo de bile servido até a boca.
Baía das Rocas fora cercada por uma barreira invisível.