Volume 1

Capítulo 17: Sinfonia

Embora o caminho que levasse à distribuidora estivesse aquém do perímetro delimitado pela barreira, Marco e os outros não conseguiram formular comentário a respeito da descoberta.

Mudos de perplexidade, seguiram por uma estrada lateral até alcançarem o grande portão de entrada da distribuidora.

Desceram todos da viatura e, antes de prosseguirem, Jacira avisou que fumaria um cigarro para se acalmar.

Passado o tempo necessário para reduzir a guimba a quase nada, enfim avançaram por um pátio espaçoso de chão de brita; o lugar pontilhado de reservatórios com grossas mangueiras de abastecimento e de uma frota de caminhões-tanque estacionados sob uma área encoberta.

— Sabe pilotar um daqueles, Nestor? — perguntou Jacira, apontando para a cobertura.

— Sim, senhora.

— Certo, então faremos da seguinte maneira: para adiantar, pegaremos um caminhão que já esteja com combustível e você volta dirigindo. Marco e eu lhe daremos escolta com a viatura. Entendido?

Nestor prestou rápida continência.

— E as chaves dos caminhões, tenente? — perguntou ele.

Jacira apertou os olhos com a mão, repuxando a boca num esgar resignado.

— É obvio que estão guardadas no escritório, não é?

Marco olhou com melancolia para a construção do outro lado, suspirando com mescla de cansaço e desolação ao divisar a porta rebentada do edifício. Aquilo não era bom sinal.

— Você fica vigiando o portão, Nestor. Tem permissão para atirar em qualquer coisa que lhe pareça uma ameaça — disse Jacira. — Marco, você e o gato vêm comigo.

Conferindo a pistola, ele obedeceu, assoviando para Régulo.

— Ele realmente vai atirar se alguém se aproximar? — perguntou a ela.

— Se for necessário…

Jacira chutou a porta do escritório com força, fazendo uma fatia grande de claridade penetrar no local. Algo surgiu à mente de Marco.

— É verdade o que me contou quando chegamos ao hospital…? — quis saber Marco, correndo o olhar pela escuridão restante. — Você realmente matou um viciado a sangue-frio?

Ela bufou com sarcasmo.

— Preocupado com isso, é? Foi tudo muito rápido, Marco.

— O que aconteceu?

— Bem… — Fez uma pausa. — Não sei dizer ao certo. Nestor e eu estávamos em patrulha quando a cidade toda perdeu a energia. Os sinais de rádio também pararam de funcionar sem mais nem menos. Foi quando Nestor se virou para mim e disse que precisávamos ir atrás de Lúcia. Não sabia explicar direito, disse algo sobre um pressentimento ruim, mas insistia que ela corria perigo. Enfim, saquei na hora que Lúcia e Nestor estavam de caso. Se bem que já davam pinta a algum tempo. — Jacira deu ombros, iluminando um vaso de plantas depositado sobre um banquinho, o conjunto assustadoramente semelhante a uma silhueta humana.

— E aí?

— E aí que Nestor me implorou para que eu seguisse na direção de um galpão pelas imediações da nossa viatura. Resolvi aceitar pra ver até onde iria aquela história toda, mas, quando chegamos ao local, qual foi a minha surpresa quando realmente encontramos Lúcia junto a Tobias e o tal viciado. Foi aí que a desgraça aconteceu. De repente, as paredes começaram a arrebentar atrás da gente. Não vi muita coisa na confusão, mas ouvi os tiros. Lúcia me contou que, na noia da droga, o viciado se aproveitou pra tentar roubar a arma de Tobias, atirando contra ele. Por sorte, Nestor revidou, pondo o filho da puta pra dormir de vez. — Jacira sacudiu de ombros, fazendo sinal para que continuassem. — Foi legítima defesa. Nada pra se preocupar.

Marco concordou lentamente, envolvido pelas sombras do edifício.

— E Odair?

— Bem… o galpão tava caindo. Só deu tempo de a gente pegar Tobias e sair correndo dali. A princípio, pensei que fosse o vento, até sair na rua e me deparar com pessoas sendo erguidas no ar e rasgadas no meio. Pensei que estivesse ficando doida, Marco. Então Lúcia sugeriu que fôssemos para o Hospital de São Luque. Não era o mais próximo, mas era o de maior referência. Quando nós chegamos, dei sorte de encontrar Odair por lá. O filho da mãe estava em outra unidade, mas já havia trabalhado comigo. Foi tomar uma injeção por causa do lumbago, mas ficou preso no hospital devido à confusão. Em todo caso, depois que as comunicações e a energia foram cortadas, de repente tínhamos mais um pra proteger o hospital do que acontecia pelo lado de fora.

Sentindo algo enfim se acalmar no espírito, talvez por saber que Jacira não era uma assassina como aquela trupe de nazistas, Marco ainda se sentia nervoso diante do que teria de enfrentar. A luz da lanterna recortava fatias contra a escuridão maciça e de gelar os ossos, mas Marco prosseguiu decidido a liquidar com o assunto de vez.

Não demorou a concluir que, diferentemente do que viu no hemocentro, ali ficava óbvio que os ocupantes saíram aos atropelos e cotoveladas.

Respirou fundo, concentrando a vista no caminhar serpenteante e adiantado de Régulo, que se desviava agilmente dos obstáculos.

Marco concentrava a audição ao menor ruído que fosse. Aquele foco todo transformava os passos de Jacira em barulhos sinistramente elevados, atroando ao lado dele como terremotos em escala diminuta.

Subitamente, ouviu o tilintar de um vidro se quebrando às suas costas. Marco deu um pulinho no lugar e se virou nervosamente.

— Aqui — disse Jacira, atirando um objeto para cima dele.

Marco agarrou o machado de bombeiro ainda no ar, compreendendo que a mulher arrebentara uma proteção de vidro fixada à parede.

— Na falta de balas. Uma lâmina sempre resolve a situação.

— Obrigado… — murmurou Marco, a testa franzida. — Eu acho.

Com ajuda de Jacira, deu um jeito de prendê-lo à mochila, improvisando um dos bolsos laterais como um tipo de guarda para a haste de madeira.

Não podia mentir para si mesmo: sentia os nervos descontrolados, repuxando os músculos do rosto e dos braços, instigando-o a vacilar mesmo com a pistola em punho e o machado que agora trazia às costas.

Independente de qualquer pensamento insensato, principalmente os que martelavam no crânio para que largasse tudo para trás e corresse para o mais distante que as pernas permitissem, Marco sabia que a realidade e o próprio senso do que era imperdoável o perseguiriam para sempre. Era apenas questão de dar um passo depois do outro. A coragem que tinha era toda esperança que restava a Levi.

Com o facho da lanterna, vasculharam ao longo de todas as paredes.

— Não tem porcaria nenhuma de chave por aqui — irritou-se Jacira.

Marco insistiu mais um pouco, percorrendo com a lanterna até divisar algo escuro no canto do escritório: era uma porta.

— Talvez estejam ali — sugeriu ele, ainda que realmente preferisse não descobrir se estava certo.

— Vamos lá.

O tom firme da mulher não deixou margem para contestação. Quando empurraram a porta, porém, o ar rançoso se movimentou, trazendo até ambos o cheiro pútrido de sangue coagulado. Marco estremeceu no lugar, gradualmente distinguindo o familiar odor de enxofre mesclado a algo ferroso. Régulo chiou para a sala escura.

— Acho… que tem um aqui dentro… — sussurrou Marco, uma gota fria de suor lhe cortando pela testa. Mirou a pistola para a escuridão.

Aaaaaah!

O grito tresloucado de Jacira cortou o ar do escritório, acompanhando o eco dos sapatos em direção à sala.

— Pode vir, desgraçado! — berrou ela, avançando impulsivamente. A escopeta atirou sem mirar, iluminando o recinto e o jogando às trevas outra vez.

Jacira era a própria definição da insanidade, disparando pelo interior da repartição enquanto destruía móveis, cadeiras, objetos de decoração e tudo mais que os projéteis encontrassem pela frente.

Durante alguns segundos, Marco sentiu os pés pesarem como blocos de cimento, atônito demais para se movimentar, mas foi rapidamente trazido à realidade quando os ruídos da confusão se tornaram ensurdecedores o suficiente para lhe vibrarem no cérebro. O rosto da mãe lhe surgiu à mente e a fotografia fez mais peso no bolso que o machado nas costas. Que tudo fosse para o inferno!

Fechou a carranca e, num ímpeto súbito, repetiu o gesto da tenente. Avançando, Marco rugiu num ato irrefletido que era pura descarga de adrenalina.

Ele não enxergou mais nada, sentindo o tempo congelar e ao mesmo tempo passar na velocidade de um relâmpago cortando o céu noturno, num delírio de luzes que pulsavam no ritmo do descarregar da Glock em sua mão. Emparelhado à mulher, apertou o gatilho várias e várias vezes, fuzilando a extremidade da sala com a mesma violência de alguém que expurgava algo venenoso de si.

Jacira e Marco improvisavam uma sinfonia de puro caos. Ela no soprano e ele no tenor, atirando no contratempo da música, quando a tenente fazia pausas rápidas para recarregar. O cheiro de enxofre era substituído gradualmente pelo da pólvora até que, num lapso, Marco vislumbrou uma janela de grades. Atirou uma vez e o brilho do sol se espalhou para dentro. Ouviu-se um ganido preencher o ambiente. O vento se deslocou para longe da claridade.

Fora esforço em vão. O último compasso da melodia morreu num grito agudo, penetrando fundo nos tímpanos de Marco. A dupla parou de atirar no mesmo instante para tapar os ouvidos.

Marco arquejava ao lado da tenente; os braços ainda estremecendo em resposta aos disparos.

— Nós… conseguimos?

— Já presenciei a morte algumas vezes — disse ela, ajeitando a escopeta —, e soou igualzinho a um animal agonizando.

— Régulo? — chamou Marco.

O gato, que assistiu à cena sem arredar o pé da porta, sentado com a mesma displicência de uma esfinge de obsidiana, adentrou com o rabo empertigado, emparelhando-se a Marco e Jacira. Cheirou o ar antes de prosseguir e, a passos lentos, cruzou pela escuridão entrecortada pelo feixe da lanterna que Marco religara.

Foi então que distinguiu.

Régulo se sentou e, diante da coisa, começou a farejá-la. Marco se aproximou devagar, Jacira em seu encalço, com uma das sobrancelhas levantadas.

Com uma exclamação, vislumbrou parte de algo ainda invisível estirado no chão. Havia grandes cavidades e perfurações por onde vertia um sangue pútrido, brilhando de um vermelho betumoso à luz pálida da lanterna. Um chamuscado fétido e transparente também subia pelo ar.

Outro tiro cortou o silêncio, assustando Marco e Régulo ao mesmo tempo; o gato correndo para se afastar. Olhou para o lado, distinguindo a mulher com a escopeta mirada para baixo.

O Oculto permaneceu estático, abrindo apenas mais um buraco de projétil através da pele invisível.

— Está morto — decretou a tenente, girando a lanterna na direção de Marco.

Pensou o garoto que Jacira logo tiraria aquele clarão de cima de seu rosto para que enfim pudessem se concentrar em encontrarem as chaves, mas não foi o caso. Ela o cegou, segurando o facho da lanterna por tempo demais.

— Que droga, não tô vendo nada — reclamou Marco.

A mulher baixou um pouco a iluminação. Marco notou que a tenente encarava alguma coisa.

— Marco… seu pingente…

Então entendeu o que ela quis dizer. À luz da lanterna, algo se refletia contra o crucifixo. Algo que era carne e podridão. O reflexo do Oculto estava completamente visível sobre a superfície do objeto, deixando tanto Marco quanto Jacira atônitos demais para expelirem palavra. Régulo miou.

Abismados com a descoberta, mas experimentando um balde renovado de ânimo, a dupla encontrou um molho de chaves pendurado no gancho de um armário de parede.

Apressados, correram de volta para a claridade morna do pátio, avistando Nestor ao longe, que ainda vigiava o portão de entrada com sua pistola e sua careta de quem tentava se passar por ameaçador.

— Conseguimos! — gritou Marco.

Quando alcançaram o policial, o garoto teve de parar um minuto para descansar, segurando os joelhos com as mãos, o corpo arqueado e a respiração tão depressa que doía.

— Encontrou algum caminhão abastecido, Nestor? — perguntou Jacira.

— Aquele dali, tenente — apontou ele. — Como foram lá dentro?

— Matamos um Oculto — confessou Marco, sem conseguir se controlar.

Nestor assoviou impressionado.

— Aqui — disse Jacira, tirando uma chave do molho e entregando-o ao soldado. — Essa deve servir.

— Certo, tenente.

O homem apanhou o objeto e cada qual tomou rumo para o veículo designado. Marco e Jacira se aproximavam da viatura enquanto Nestor, do caminhão.

— Tenente? — chamou o soldado, detendo-se à metade do percurso.

— Que foi? — Ela se virou.

Marco a seguiu no ato, também se virando para o brutamonte. Nestor, contudo, não respondeu à pergunta, limitando-se a erguer a pistola e atirar contra a barriga de Jacira.



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