Volume 1

Capítulo 15: Trajeto desolador

Quando Marco acordou na manhã seguinte, meia hora antes do horário combinado com Jacira, ainda sentia os nervos protestarem sob a musculatura dos braços.

Na tarde do dia anterior, havia acompanhado Beatriz até o estacionamento, encontrando Lúcia e um par de alvos que desenhara sobre dois pilares de concreto com um resto de tinta que encontrou pelo depósito.

— Sabia que também viria — dissera a policial na ocasião, entregando a Glock 35 para Marco. — A tenente me pediu para lhes ensinar o básico.

— Tem certeza de que podemos fazer isso? — perguntara Beatriz.

— Quer sobreviver?

Lúcia havia entregado a Glock 22 para a garota e o trio ficara praticando por quase duas horas a fio. Por sorte, o barulho da chuva fustigando o telhado abafou o ruído dos tiros.

Marco voltou ao presente no momento em que jogou água fria sobre o rosto, encarando o espelho sobre a pia do banheiro. Não via mais ninguém sorrindo de volta a si, lembrando que faria aniversário no dia seguinte, mas sem qualquer motivo para comemorar. O semblante refletia apenas dor, pequenas escoriações e o luto de um olhar quebrantado.

Cutucou a bochecha, sentindo que o corte na parte interna já parara de incomodar. As costas já não doíam também. Por fim, vestiu uma muda nova de roupa que encontrara num dos vestiários, ajeitou a mochila nas costas e sumiu dali.

Meia hora mais tarde, quando o sol despontava pelo horizonte límpido e frio, Marco aguardava à frente do hospital com Régulo se lambendo a seus calcanhares.

Naquele momento, Nestor apareceu do estacionamento encaixando a viatura ao lado da calçada; Jacira e Beatriz surgiram pelas portas de entrada, a policial acendendo um cigarro logo pela manhã.

— Aqui, garoto. Tome — disse Jacira ao se aproximar, entregando a Glock 22 de volta a Marco. — Lúcia te ensinou a travá-la e destravá-la?

— Sim, senhora.

— Já disse que não precisa me chamar de senhora. Em todo caso, coloque nessa tua cabeça que só estou te levando por causa do gato. Você ter dado meia dúzia de tiros ontem à tarde não te ensinou porcaria nenhuma, entendeu? Então não se afaste de mim.

Concordou de pronto.

— Pois bem, partiremos em cinco minutos. Vou esperá-lo na viatura.

Marco fitou as costas de Jacira. A mulher se afastou em direção ao subordinado, deixando-o a sós com Beatriz.

— Dessa vez me esqueci de pegar o extintor de incêndio pra te ameaçar — disse ela sorrindo, mas desviando o olhar de jade. — Então me prometa que, ao fim do dia, você e Régulo estarão de volta, com ou sem extintor.

Marco estendeu a mão.

— Não vou deixá-los pra trás. Nem você, nem Levi.

Beatriz, no entanto, ignorou-o, mordiscando o canto inferior do lábio. Precipitou-se de súbito para cima de Marco, abraçando-o impulsivamente. Pego de surpresa, ficou sem ação, mas logo abrandou as feições e retribuiu o gesto com ternura, espremendo o corpo aquecido de Beatriz contra o seu.

— É pra você voltar, entendeu?

Marco concordou com seriedade. Separaram-se e, decidido a não refletir demais sobre o que estava prestes a fazer, seguiu para a viatura sem olhar para trás.

Jacira aguardava com um cigarro aceso por entre os dedos, apoiando-se contra a porta fechada do carro. Quando Marco se aproximou, adentrando com Régulo pelo lado do carona (Nestor havia migrado para o banco de trás), atirou a guimba à distância e se acomodou ao motorista.

Com as sirenes apagadas, partiram em silêncio.

 

*******

 

Marco contemplava a paisagem correr pelo vidro, acariciando a cabeça de Régulo que dormia em seu colo e ronronava baixinho. A visão de Baía das Rocas era uma coisa desoladora.

Compenetrados durante boa parte do trajeto, prosseguiram sem trocar palavra. Foi Jacira, porém, quem cortou a quietude após se desviarem de uma rua bloqueada por uma árvore tombada de transverso, o tronco grande demais para que pudessem manobrar mesmo pela calçada.

— É um belo crucifixo que tem aí, Marco — soltou ela, fitando-o de esguelha.

Surpreso com o comentário, levou a mão instintivamente ao pescoço, segurando o pingente.

— Era do meu pai. Uma das poucas lembranças que tenho dele.

— Então era um senhor de bom gosto. Dá pra dizer que é prata legítima só de bater os olhos.

— Sério? — surpreendeu-se Marco.

A mulher concordou afável.

— Não sei não, tenente. — A voz de Nestor emergiu do banco de trás, subitamente interessado no assunto. — Já fiz batida no centro. A gente achava dúzias iguais a esse no camelô.

— O que só prova a sua ignorância, soldado — rebateu Jacira, sem emoção. — Na época do convento, as irmãs tinham muita prataria. Ainda sei reconhecer quando vejo alguma coisa. No cristianismo, prata é sinal de redenção e pureza. Gosto do significado.

Marco se remexeu inquieto, a curiosidade fazendo cócegas no estômago para questioná-la.

— Então era mesmo verdade quando disse que já foi freira? — proferiu sem pensar.

Jacira gargalhou tristemente.

— Num passado muito distante.

— E… — A fronte de Marco queimava, com medo de ter ultrapassado alguma espécie de linha invisível, mas como começou, resolveu arriscar até o final. Nestor dava pinta de estar igualmente interessado. — Como a senhora foi de freira à policial? Quero dizer… não tem nada a ver uma coisa com a outra.

A mulher riu mais uma vez, porém, naquele momento, até seu olhar se tornou melancólico. Abriu a boca, confessando em tom nostálgico:

— Eu… não era freira, pelo menos não no sentido literal. Ainda não havia professado meus votos. Na época de noviça, acabei me apaixonando pela minha amiga. Essa é toda a verdade. Éramos companheiras de dormitório, por isso sabia que ela não sentia o mesmo. Ainda me lembro daqueles olhos… havia neles um brilho de pureza, brilho de prata, se me permite a comparação. Melinda fazia tudo com uma sinceridade comovente, então não queria macular aquilo. Foi quem me deu esse crucifixo de presente. — Jacira mostrou o objeto em miniatura que trazia ao pescoço. — Ela realmente levava jeito pra coisa, sabe? Para uma vida de consagração. Agora eu? Bem… não passava de uma pecadora confusa e deslocada. No fim, acabei enterrando o assunto até ficar difícil demais levantar todos os dias e olhar pra ela. Foi quando desisti da vida de convento. Tempos depois, passei no concurso da polícia e cá estamos. Acabei me encontrando na corporação, mas nunca mais vi Melinda.

— Eu… sinto muito.

Mas Jacira se limitou a um gesto breve e negativo, aludindo em silêncio para que Marco não se preocupasse com o assunto. Outra vez a quietude se alastrou pelo carro, e cada qual seguiu ensimesmado às próprias recordações pelo resto do caminho.

Vinte minutos depois de Jacira tomar a rodovia, singrando por entre veículos abandonados, capotados e pedaços de corpos tomados por varejeiras, Marco vislumbrou a silhueta de uma construção esbranquiçada se agigantar no horizonte. A inscrição mostrava se tratar do Hemocentro Regional de Baía das Rocas. Andaram mais um pouco até a mulher manobrar e adentrar por uma estrada vicinal, aproximando-se do edifício até pararem de frente a um portão automático de gradil.

Jacira distribuiu uma minilanterna para cada um deles e desceu da viatura, seguida por Nestor, Marco e Régulo.

O garoto olhou para além do cercado, mas não precisou despender muito esforço para notar que a portaria se encontrava vazia. O lugar todo estava deserto.

— Como faremos para entrar? — perguntou Marco.

A resposta da tenente, em tempo, veio no formato de um tiro de espingarda contra o trinco de entrada. Jacira chutou o gradil e todos passaram.

— Cubra a retaguarda, Nestor. Eu vou flanqueando.

Ela ajeitou a escopeta às costas e puxou o revólver do coldre, mirando à frente do corpo.

O sol brilhava cada vez mais acima, jogando uma claridade amena por sobre o trio. Atravessaram o pátio de pedriscos sem perderem tempo e alcançaram a porta.

O prédio principal não estava trancado, mas sombriamente imerso à escuridão e ao silêncio. Os três ligaram as lanternas ao mesmo tempo.

— Será que o lugar foi atacado? — questionou Nestor, correndo o facho de luz pela recepção.

— Marco? — soou a voz de Jacira.

— Régulo não está agitado. Ainda não avistou nada. — Ele também clareou o perímetro, percebendo que a decoração estava mais ou menos em ordem, como se o lugar tivesse sido apenas desocupado às pressas. — Mas não baixem a guarda.

Avançaram com cautela por um corredor comprido e cheio de portas trancadas.

Com a pistola presa com firmeza na destra, Marco esquadrinhou o local, sentindo algo pesado pairar no próprio ar que respirava. Era uma sensação claustrofóbica, que comprimia seus pulmões como se o perigo estivesse à espreita, no aguardo do momento ideal para se revelar.

— Esse lugar me dá calafrios. Credo — murmurou Nestor, as vistas girando na direção das paredes.

— Continue de olho na retaguarda, soldado — Jacira rebateu secamente.

— Um lugar como esse é perfeito para os Ocultos se esconderem — resmungou Marco.

Houve uma pausa nervosa, mas logo continuaram.

— Me pergunto qual a chance de os encontrarmos — disse Jacira, cruzando os pulsos enquanto firmava o revólver sobre a lanterna. — Passei duas noites em claro assistindo por aquelas portas de vidro… observando vultos desenhados contra a chuva; um bando de assombrações matando e destruindo… pensando que o hospital seria atacado a qualquer segundo.

— Que sorte que não aconteceu — disse Nestor.

Jacira deu de ombros.

— O lugar pode ser abençoado. Por que não?

Sim, o lugar podia ser abençoado. Marco tinha certeza que sua mãe compartilharia da mesma opinião. “Os enfermos e fracos estão mais próximos de Deus”, diria ela. Sorriu brevemente sob a lembrança de Irene, mas não conseguia abandonar a ideia de que algo estava fora do lugar. Respirou fundo. Guardou a opinião para si. Talvez só estivesse pensando demais.

— Espero que as coisas continuem assim. Tenho planos de construir barricadas em torno do hospital — prosseguiu Jacira.

Subitamente, Marco espremeu os olhos em direção a uma porta de metal, jogando um facho de luz por sobre a plaqueta acima do batente. Leu a inscrição descrita como “Centro de Armazenamento”.

— Só pode ser aqui, não? — questionou.

Jacira concordou. Estavam prestes a entrar no local.



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