O Apocalipse de Yohane Brasileira

Autor(a): Enrico Ferr


A1 – Vol.3

Capítulo 54: Olívia

O silêncio do inverno russo era quase uma fortaleza, cruel e absoluta, invadida apenas pelo murmúrio passivo do rio Lenyavka. Suas águas escuras corriam como aço líquido entre as margens dentadas de gelo, uma fronteira sombria que separava a segurança modesta da vila do Bosque Shyopot. Suas árvores eram silhuetas esqueléticas contra o céu acinzentado, um lugar onde o uivo dos lobos era uma promessa tão certa quanto a neve e onde as velhas histórias sopravam entre os galhos, sussurrando sobre os espíritos caprichosos e antigos que não gostavam de ser perturbados.

Então, o espelho negro do rio se partiu.

Com uma golfada de ar que se transformou instantaneamente em uma nuvem de vapor, Olívia emergiu. A água escorria por seu rosto, delineando as maçãs de seu rosto sardento e o arco de suas sobrancelhas claras. Com um movimento fluido e poderoso, ela jogou as longas mechas loiras de seu cabelo, e um arco prateado de gotas congeladas voou pelo ar. Sua pele, vermelha e vívida pelo choque térmico, parecia queimar contra a palidez do mundo.

Cinco minutos.

Cinco minutos submersa no abraço gelado que teria paralisado um coração menos resoluto.

— A água esquentou — ela murmurou para si mesma, e as palavras se materializaram em uma pequena névoa antes de desaparecerem. Era uma observação sutil, um segredo compartilhado apenas com o rio. A primavera se aproximava.

Seus movimentos eram rápidos, eficientes, nascidos do hábito. Ao sair da água, pisando sobre uma crosta de gelo que estalou sob seu peso, ela pegou a toalha de lã áspera pendurada no toco de uma bétula decapitada. O tecido, rígido de frio, era um conforto rústico contra sua pele. Enrolada na toalha, ela não perdeu tempo. Com passos rápidos, seus pés descalços deixando marcas escuras e efêmeras na neve, ela correu os poucos metros que a separavam de sua izba, onde uma fumaça preguiçosa subia da chaminé.

Aquele era seu ritual. Uma âncora de gelo para acalmar a tempestade em sua mente que ansiava por liberdade, um batismo diário na quietude primitiva que forçava as vozes ansiosas a se renderem.

Ao entrar em casa, a porta de madeira pesada se fechou com um ranger incômodo, e o calor abafado da lareira a envolveu como um abraço. O cheiro de pinho queimado pairava no ar. Sem hesitar, ela se livrou da toalha úmida e vestiu-se rapidamente: calças de lã, uma blusa grossa e meias que sua tia havia tricotado, além de seus óculos de grau. O calor começou a se infiltrar em seus membros, o formigamento doloroso da vida retornando às pontas de seus dedos.

Foi então que seu corpo, satisfeito com o retorno ao calor, protestou. Uma pontada oca e insistente em seu estômago a lembrou do café da manhã. O ritual acalmava a mente, mas não alimentava o corpo.

Com um suspiro resignado, Olívia vestiu um casaco pesado de pele de carneiro, o couro já gasto e macio de tantos invernos. Calçou botas e luvas, puxando o couro sobre os dedos ainda sensíveis, e abriu a porta mais uma vez, encarando o mundo branco e silencioso.

A neve caía lenta e silenciosa, cobrindo os telhados das casinhas enquanto as chaminés exalavam uma fumaça fina que se perdia no céu cinzento daquela manhã. Ela caminhava com o casaco fechado até o queixo, com as mãos enluvadas afundadas nos bolsos. Conforme avançava, os moradores apareciam na rua ou nas varandas de suas casas, acenando ou cumprimentando a jovem.

Bom dia, pequena Olívia — disse um senhor de idade, em um russo perfeito, com uma caneca cheia de alguma bebida quente, sentado ao lado da porta de sua casa.

Bom dia, irmã Olívia. — Poucos metros à frente, uma freira que caminhava em direção à catedral a cumprimentou com uma dicção impecável, segurando uma sacola cheia de pães e frutas.

Mas mesmo com tantos cumprimentos educados, algo estava errado — profundamente errado. Os olhos dos moradores eram vazios, como se olhassem através de Olívia, e não para ela. Seus rostos não expressam alegria, cansaço, ou qualquer emoção. As palavras saíam com entonações perfeitas, quase ensaiadas, como bonecas que aprenderam a imitar a cortesia humana, mas sem entendê-la completamente. O estômago da jovem revirou, talvez pelo jejum matinal, talvez pela sensação de estar caminhando por um cenário montado, uma vila que fora pintada sobre uma parede de tijolos. Cada gesto gentil parecia vir de marionetes com cordas invisíveis no controle.

Respondendo os cumprimentos rapidamente, ela apressou o passo, querendo fugir, mesmo sabendo que não poderia por muito tempo. Principalmente por saber exatamente o que estava de errado com aquelas pessoas.

Virando a esquina de uma rua quase inteiramente coberta por neve, seu coração acelerado sentiu uma fisgada de alívio com o aroma dos pães quentes saindo do forno. A placa de madeira balançava com a brisa, e Olívia correu para entrar na mercearia da vila o quanto antes. Um sino tilintou com um som aconchegante assim que ela empurrou a porta.

Olívia, minha querida! — exclamou uma voz cheia de vida, diferente das ouvidas anteriormente. A jovem loira se aproximou do balcão enquanto tirava as luvas.

Um mulher bonita, na faixa dos quarenta, levantou o rosto com um sorriso caloroso ao ver a jovem. Os cabelos avermelhados presos em um coque bagunçado, os olhos cansados preenchidos com gentileza e carinho. Ela pegou as mãos de Olívia suavemente, franzindo a testa ao fazer isso.

Que gelado! Você pulou no rio de novo?

Já virou rotina, tia Natalya. Você deveria experimentar qualquer hora.

Toda a estranheza e desconforto que sentiu antes desapareceu como mágica assim que começou a conversar com sua tia.

Eu jogo todas as minhas garrafas de vodca fora antes de fazer isso. — Natalya riu. — Está com fome, meu bem?

Mentiria se dissesse que não. Se tiver...

Bolo de chocolate e leite? É claro que tem. Ah, você é igual a Yulia.

Todo mundo gosta de bolo de chocolate com leite, tia Natalya. Minha mãe e eu gostarmos não nos torna parecidas.

E você já se olhou no espelho, garota? É idêntica à quando ela se casou com meu irmão.

Bom... ela também não era muito mais velha do que eu sou agora quando... — Olívia hesitou com as lembranças pesadas, deixando seu coração inquieto.

Desculpe, querida, eu não...

Olívia! — Uma voz animada veio do corredor da casa, acompanhada de passos rápidos. — Pensa rápido!

O que... — Antes que pudesse se questionar, uma bola de neve estourou em seu rosto, trazendo o frio externo de volta.

Yelena! Quando você foi lá fora pegar essa neve?! — Natalya gritou, correndo atrás da criança que gargalhava de Olívia.

Assim que eu ouvi a voz da Olívia. Tá congelando lá fora, mas valeu a pena!

Uma hora eu ainda jogo você no rio, garota. — Olívia respondeu, tirando o excesso de neve do rosto e roupas.

Natalya estapeou a nuca de Yelena, que reclamou pela punição.

Vá limpar essa bagunça e pedir desculpas à sua prima, agora!

Argh, tá bom! Desculpa, Olívia. Mas não posso prometer que não farei de novo... Argh!

Olívia deu um peteleco no nariz da menina, que fechou os olhos em reflexo.

Pirralha catarrenta.

Natalya sorriu ao ver a filha e a sobrinha, enquanto entregava uma vassoura e uma pazinha para Yelena.

Ela gosta muito de você. — Natalya disse, voltando para trás do balcão e servindo uma fatia de bolo para Olívia.

Tenho pena de quem ela não gosta, então. — A loira falava após tomar um gole de leite que acabara de sair do fogão. Com uma garfada delicada, ela também pegou um pedaço de bolo e o levou à boca.

Você é como uma irmã mais velha pra ela, então é claro que a pestinha vai tentar fazer de tudo pra chamar sua atenção.

Bom, ela também é o mais próximo que cheguei de ter uma irmãzinha. É estranho. — Olívia sorriu, pegando outro pedaço de bolo com o garfo.

Falando em estranheza, eu tenho evitado deixar a Yelena sair pra brincar na neve ultimamente. Você percebeu algo errado com as pessoas daqui?

Não, por que?

“Você mente com essa cara inocente e ainda tem coragem de me chamar de vilã?” Um voz ecoou em sua mente, como um pontada de enxaqueca. Já estava acostumada com ela, então apenas a ignorou.

O Sr. Yurivich, por exemplo, ele tem me cumprimentado diariamente com muita educação, usando uma linguagem que eu não via ninguém usar fora de reuniões.

A imagem do senhor de idade na varanda lhe cumprimentando surgiu em sua memória. — Talvez ele tenha começado a ler.

— Olívia, o Sr. Yurivich é analfabeto. Você sabe que ele nunca foi à escola.

“Como você consegue agir como se não soubesse de nada? Pior, como se não fizesse parte disso?” A voz ecoou novamente, mais alta. Ela tinha a mania de incomodar Olívia constantemente, principalmente quando era ignorada. Normalmente seria fácil de se lidar, mas viver com uma enxaqueca com personalidade não era uma tarefa fácil.

Bom, talvez a Irmã Katya esteja o ensinando. Ela fazia isso comigo quando eu era criança. — Olívia ainda insistia em se fazer de ignorante, enquanto terminava de beber seu leite.

Talvez. Mas eu sinto que tem algo errado. Não é só ele, todos que encontrei nas últimas semanas tinham olhares tão vazios.

— Tia Natalya, tenho certeza que isso é impressão sua. — Olívia empurrou levemente o copo vazio e se levantou do banco. — Talvez seja aquela tal depressão sazonal que falam no Ocidente. Mas você está certa em evitar que a Yelena saia. Aquela pestinha é imprevisível, e se ela em algum momento decidir ir brincar no Bosque, teremos um problema.

Ah, quanto a isso eu não me preocupo. A Yelena morre de medo do Bosque. Eu sempre conto a história da bruxa que mora lá e devora crianças levadas. As vezes ela até acorda com a cama molhada por causa de pesadelos. — Natalya respondeu tranquila, com um sorriso gentil no rosto.

Isso é mesmo algo que uma mãe deveria fazer? — Olívia sempre ficar surpresa com a facilidade que sua tia tinha em dizer coisas maldosas com um rosto carregado de simpatia e gentileza. Ela era uma parente assustadora. — Vou indo agora, tia Natalya. Obrigada pelo café da manhã.

Eu que agradeço pela visita, querida.

— Tchau, Olívia! — A pequena Yelena correu desajeitada até a porta para se despedir da prima.

A loira acenou enquanto saia da mercearia de Natalya. E assim, o frio e a vastidão daquela vila amaldiçoada engolia todo o sentimento caloroso que se acumulou.

Sempre fico impressionada. Na teoria, eu sou a maldosa e rebelde, a sem salvação. A vilã. Mas é você quem mente pra sua família, e sacrifica toda sua vila de bom grado.”

Eu não vou ter essa discussão com você outra vez — murmurou. Às vezes a voz em sua mente era de tamanho incomodo, que Olívia tinha que responder em voz alta para acalmá-la.

Tudo bem, mas saiba que você não conseguir manter aquele selo de proteção na casa delas pra sempre. E um dia, aquela mulher vai encontrar a Yelena. E você sabe o que acontece depois.”

Os olhos claros se cerraram, e um calafrio percorreu toda a sua espinha. Apenas a ideia de aquela mulher encontra Yelena causa tremores em todo o corpo de Olívia. A voz se calou, mas não trouxe a paz desejada a mente atribulada da jovem.

Em poucos minutos estava de volta em casa, e a primeira que fez após pendurar seu casaco na arara ao lado da porta foi encher uma chaleira com água e coloca-la no fogão. Ela se sentou na mesa da cozinha e deitou sua cabeça na madeira envernizada enquanto soltava um longo suspiro.

Tem alguém chegando.”

A voz ecoou novamente. Não incomoda como de costuma, mas alerta. Estava avisando sobre uma aproximação desconhecida, mesmo que não fosse necessário. Olívia já tinha percebido.

— Três auras. Um homem, uma mulher. E também tem uma… — Ao reconhecer a última e mais poderosa aura mágica dos três visitantes, Olívia colocou as mãos no rosto, incrédula. — Não é possível uma coisa dessas…

Antes de poder reclamar mais, alguém bateu em sua porta. Ela tentou ignorar por um tempo, mas as batidas continuaram.

— Olívia, eu sei que você está aí. Te vi entrando há alguns minutos. — A voz exclamou do lado de fora, mas continuou sendo ignorada. — Eu também sei que essa porta tá destrancada, não me força a entrar sem permissão.

— Argh! Que saco! — Olívia murmurou, levantando da mesa descontente.

Bufando e pisando alto, ela caminhou até a entrada e abriu a porta com força, revelando seus três visitantes indesejados.

Quatro?” A voz parecia tão surpresa quanto a própria Olívia. Diferente do que elas sentiram de antemão, havia um visitante extra na porta. Junto da mulher, do homem e da raposa inconveniente, uma garota de cabelos ruivos cacheados estava ali. Sua expressão de ansiedade era clara, mas isso não abalou Olívia.

Afinal, ela sabia que sempre que encontrava com aquela mulher de cicatriz no rosto, algo de ruim iria acontecer. Então antes que ela pudesse trazer sua tempestade de desventuras para seu lar…

— Não.

…Olivia empurrou a porta com força, com a intenção de deixar seus visitantes plantados na neve. 

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