Volume 2

Capítulo 24: Vogel.

Na manhã seguinte, já com o sol pegando força sobre a Acrópole. Markus e Jeanne já o aguardavam, junto com Morgana, Kinan e Páris. Harkin chegou acompanhado de Adrien, Serafina, Pietro e Okini.

“Onde tá o velho?”

Ele esticou seu senso e tentou procurar a assinatura de mana do pai. Busca inútil.

— Tá faltando gente, não tá? — ele perguntou, sem citar diretamente o imperador.

— Quem precisa estar aqui está — respondeu Jeanne. — Os outros estão tratando de assuntos oficiais. E, bem... você nos chamou seis dias antes do prazo pra apresentar a nave.

— Hoje é teste, não entrega. Mas, se tudo der certo, depois só preciso de ajustes mínimos.

— Ótimo. Bom ver que está confiante — disse Morgana. — Eu só esperava que você tivesse entendido o que “missão secreta” significa.

— Não finje que você não sabia que iria contar pra eles.

— Hunf. — Sua mãe virou o rosto.

Antes que a troca caísse pra pirraça, Sputnik pousou ao lado de Harkin.

— Está tudo pronto, milorde — disse, entregando uma sacola.

— Ótimo.

Harkin se afastou das conversas e voltou a focar na área de teste, montada fora da forja imperial.

Morgana se posicionou ao lado de Serafina e as duas começaram a conversar sobre o cotidiano. Serafina ainda estava longe de se sentir confortável com Morgana, mas graças aos jantares de Jeanne no palácio, ela já não travava ao falar com realeza.

Os outros seguiram o exemplo e foram papeando, enquanto o “cientista louco” preparava o resto do material. Meia hora depois, Sputnik ainda o ajudava quando tudo finalmente estava pronto.

— Bom. Já posso começar. Markus, eu vou precisar de uma barreira. Kinan pode ajudar ele?

— Posso — respondeu Kinan, se posicionando.

— Com todo respeito, Kinan — Markus disse — mas não é necessário.

— É sim. — Harkin foi seco. — Não é questão de poder, maninho. As merdas que eu faço podem escalar muito rápido. O Kinan já tá acostumado com meus protocolos, e isso que eu vou fazer supera de longe tudo que eu já forjei. Eu preciso me focar em criar, não em proteger os arredores.

Markus não gostou do tom, mas cedeu. Kinan começou a estabelecer rituais de proteção. Diferente de Harkin, ele era um feiticeiro, não um arcanista. Seus rituais imitavam a função das barreiras que Harkin costumava erguer.

— Agora, Markus — disse Kinan — comece a infundir sua mana no ambiente.

Markus não entendeu o porquê, mas fez. A mana dele se espalhou e um círculo solar apareceu no céu.

— Orr’za Aneth vel Aruv’nar, shael vorr sa’ta en serav’tar. Anu’ren fael, zaan etha vor’zen, kael’ma ruun Atheren shor’nai. Aru’zan vel éthra, vaen’thra en shal.

Kinan recitou na língua antiga de Nerio. O círculo reagiu. Não era um comando — era quase uma prece. E o círculo não apenas obedecia; ele protegia.

Descendo até o chão, Markus e todos os outros sentiram uma luz envolver o corpo deles. Não havia limite visível. Kinan notou a dúvida e avisou:

— Usem a percepção, não os olhos.

Markus então tentou ajustar o foco de mana para os olhos… e se arrependeu. Toda a área estava coberta por um fluxo estranho, vindo dele e de Kinan. Quando tentou olhar pro céu, a imagem do “sol” acima queimou sua visão.

— Droga, que isso?! — gritou, esfregando os olhos lacrimejando.

— Isso é a luz do Lorde celestial nos cobrindo — disse Kinan, num tom quase devoto — fazendo um gesto devocional, limpando corpo e espírito. Markus enxergou novamente e percebeu a pilastra de luz descendo até Kinan, depois se espalhando pra todos — tirando o peso no ar.

— Vou começar. Se preparem — avisou Harkin.

Ele fechou os olhos e se concentrou.

As mil e vinte e quatro fórmulas base se sobrepuseram e o processo de forja começou. A energia aumentava devagar no início, mas quando a última fórmula se completou, a matriz ativou — e o caos começou.

Mais e mais energia era sugada. Uma onda violenta de mana bruta varreu a lateral da Acrópole. A força das pancadas mágicas só crescia. As 2048 fórmulas seguintes se ergueram sobre eles, expandindo o campo de energia.

Os materiais e círculos posicionados no chão entraram em ressonância. O tarugo de Zaralith e o cristal de Aetherium nas mãos de Harkin ascenderam como um segundo sol, irradiando luz e calor até em Okini, que era a que estava mais distante.

Harkin desapareceu dentro da luz. As fórmulas começaram a se multiplicar.

— Essa é a parte que vai ser linda e assustadora ao mesmo tempo — comentou Morgana.

— Essas matrizes são diferentes das que ele usou contra o Julian — disse Okini, agora envolvida.

— Pelo que ele me explicou, essas aí são pra refinar o processo de forja — respondeu Serafina. — As do Coliseu eram pra amplificar poder destrutivo.

BOOM.

Um estrondo cortou a conversa. O coração de todo mundo pulou, achando que algo tinha dado errado. Mas então a luz começou a diminuir. A silhueta dele apareceu de volta. Ele reapareceu segurando uma esfera perfeita, brilhando com linhas de luz azul cintilante.

— É. Tá pronto.

— Que porra foi essa no final? — perguntou Adrien, correndo até ele.

— NÃO! — Harkin berrou. — Ainda não tá pronto. Fica atrás do perímetro.

Adrien parou e deu um passo pra trás.

Assim que confirmou que o amigo estava fora do alcance, Harkin infundiu sua mana na esfera. Ela brilhou em um roxo intenso e derreteu entre seus dedos, virando metal líquido. Escorreu pelas mãos dele e se espalhou pelo chão.

— É isso? — Morgana perguntou, com uma ponta de decepção.

Os outros compartilhavam o sentimento, mas ninguém falou. Jeanne deu o primeiro passo pra encerrar aquilo.

— É uma pena...

ZYNK.

Um zunido metálico, grave e distorcido, ecoou pela Acrópole. Um círculo mágico de pelo menos sessenta metros de diâmetro se formou no perímetro delimitado por Harkin. Todo o material bruto que estava dentro — toneladas de metal — começou a brilhar com a mesma luz da esfera. As peças se dissolveram, viraram pura energia, e foram absorvidas pelo círculo.

Harkin sorriu. Aquele sorriso específico dele, o sorriso de “funcionou exatamente como eu imaginei”.

Lentamente, o metal líquido começou a subir aos pés dele, erguendo-se numa torre que o levantou acima de todos.

— O que ele tá fazendo? — Jeanne perguntou.

— Ele acredita — respondeu Pietro — que estilo é tão importante quanto...

— Funcionalidade — completaram Okini, Sera e Adrien, juntos.

— A entrada tem que ser triunfal — repetiram, em uníssono.

Ele ouviu isso lá de cima e deu uma risadinha.

— Tá na hora do show.

A torre se fechou ao redor dele, formando uma grande esfera flutuante. Por alguns segundos, nada. Então, o metal começou a se esticar em quatro direções, tomando forma.

Placas facetadas emergiam e se encaixavam como se o próprio material estivesse “crescendo”. Cada parte nova parecia brotar instintivamente do núcleo, como se a nave soubesse como queria nascer. Linhas de circuitos de mana começaram a percorrer a superfície, pulsando como veias. Em dois, três minutos, dava pra ver: era uma nave. Aerodinâmica, agressiva, parecendo um cruzamento entre caça e tanque de guerra suspenso.

— Processo concluído — anunciou uma voz mecânica, reverberando no ar. — Iniciando checagem de sistemas. Sistemas de voo: ok. Núcleo adaptativo: operante. Níveis de energia: máximo. Sistemas adaptativos: prontos para iniciar. Iniciando Protocolo Basilisk.

— Basilisk? — repetiu Markus, baixo. 

— Sistema de controle neural coletivo — murmurou Adrien, quase orgulhoso. — Ele já tava rascunhando isso desde o programa Sentinela.

— Sempre soube que daria certo — disse Páris — só não achei que seria tão cedo.

A nave voltou a acender. As linhas pulsaram. O som dos motores de mana começou grave, e depois sumiu até virar silêncio absoluto.

— Aviso: número mínimo de operadores não atingido.

Todos olharam, confusos, sem entender. A voz de Harkin veio em seguida, firme:

— Protocolo Alfa. Usuário: Administrador. Sobrepor protocolos de segurança. Ativar Basilisk 100%.

— Assinatura de mana confirmada. Iniciando Protocolo Alfa.

O metal, como escamas reptilianas microscópicas, começou a se soltar e reassentar. A superfície mudou de cor para um preto fosco que praticamente não refletia luz.

— Sputnik — disse Harkin. — Liga o monitoramento.

Sputnik não hesitou. Jogou um disco no chão, e dele saíram projeções de luz mapeando toda a nave e os arredores.

— Tudo pronto, milorde.

Sem mais palavras, a nave se moveu — e sumiu. De uma vez. Velocidade absurda. Fora da vista.

Por instinto, Markus endureceu a postura e Kinan abriu mais mana ao redor, tentando rastrear. Jeanne manteve o sorriso diplomático como se aquilo fosse normal. Páris cruzou os braços para esconder o arrepio subindo no braço.

— Então era sobre isso que ele falava? — Jeanne se aproximou.

— Sim, vossa alteza — respondeu Sputnik. — O teste começa agora.

— Que teste? — perguntou Okini.

— Seu tio queria provar que, mesmo em um dia, ele podia concluir a nave e deixá-la 100% operacional.

— E nós discordamos — disse Morgana.

— Então — continuou Markus — eu coloquei os melhores rastreadores da Segunda Divisão pra detectar qualquer mínima presença ou movimento. Estão todos no máximo, e o quartel inteiro está de prontidão, sob comando de Durek. Estamos usando isso como desculpa de “treinamento”, Erik quis brincar também então pode acontecer de vermos uma ou duas patrulhas aéreas.

— Pegou pesado, hein, pai... — murmurou Okini.

— Não, jovem garota — disse Kinan. — A missão é perigosa demais. Eu tenho fé no jovem mestre, mas ainda assim, não podemos correr riscos.

— Ele vai conseguir — disse Páris. — Ele sempre consegue.

Eles desviaram o olhar pros hologramas. Lá no alto, a nave era só um pontinho preto. E então até isso sumiu. Mas o sinal ainda aparecia no holo.

A projeção mostrava que a nave havia descido. A Acrópole apareceu de canto, depois a visão mergulhou no Lago Memoriale. A nave afundou até onde a luz não alcançava. Sob a água, a forma dela mudou para melhor navegação submersa — mas o centro de tripulação permaneceu quase igual.

Ela avançou por vários minutos nas profundezas, depois subiu devagar até uma saída lateral do lago. Já fora d’água, desenvolveu “pernas” articuladas como as de uma aranha. Silenciosa, escalou prédios inteiros sem deixar nenhum arranhão na pedra. Cruzou boa parte da capital sem ninguém notar e parou numa das praias do lago.

Certificando-se de que não havia testemunhas, Harkin fez as pernas dobrarem. A nave saltou de volta para o ar e reassumiu a forma original.

O holograma congelou.

— O que aconteceu? — Serafina perguntou, preocupada.

— A transmissão foi projetada pra durar só até aqui — explicou Sputnik. — Agora o desafio é o seguinte: Markus tenta localizar o jovem mestre só com o senso mágico absurdo que ele tem. Quem mais quiser tentar, fica à vontade.

Seguindo o exemplo de Markus, todos os magos ali começaram a expandir percepção e procurar microflutuações de mana no ar. Tentaram firme. Ninguém — nem mesmo Morgana — conseguiu detectar coisa alguma.

Foi só então que um zunido metálico vibrou logo à frente deles. Como se uma capa de ilusão estivesse sendo puxada, a nave surgiu, materializando-se a poucos centímetros do chão.

Vista de perto, era maior do que parecia no céu: uns sessenta metros de envergadura, trinta de comprimento. As asas se estendiam pela lateral, altas em relação ao corpo central.

O “bico” brilhou. As placas começaram a se retrair, revelando uma abertura frontal e, atrás dela, o interior: uma cabine espaçosa, com bancos e o que parecia ser um posto de comando para oito pessoas.

Harkin saiu.

— E então? O que acharam do meu brinquedo novo?

Jeanne começou a aplaudir, e os outros acompanharam.

— Eu não sei como você pensa nessas coisas, moleque — disse Morgana. — Mas você se superou dessa vez.

— Obrigado, mãe.

— E como isso funciona? — perguntou Markus.

— É uma tecnologia que eu criei chamada Arkan — explicou Harkin. — A ideia é um sistema que opera seguindo os impulsos neurais do usuário. Pra aplicar no protótipo, eu tive que criar uma linha neural artificial que opera dentro do núcleo.

— Tá, tá, tá — cortou Morgana. — Muita coisa técnica. Resume.

Ele respirou fundo, incrédulo, e entregou:

— É tipo um golem vivo. Existem milhões de microgolems imperceptíveis trabalhando juntos em torno do núcleo de Aetherium. Quando alguém infunde mana no núcleo, ele ativa. Esses microgolems começam a usar transmutação pra moldar a mana bruta do Aetherium no formato desejado.

— Isso é... revolucionário — disse Jeanne.

— E isso tem nome? — perguntou Markus, ainda observando a estrutura.

Harkin pousou a mão sobre o casco metálico e sorriu.

— Vogel.

— Vogel? — repetiu Morgana.

— Em homenagem a Hagenvogel — explicou ele, com um leve orgulho no olhar. — O primeiro Yhawari a se tornar mais do que uma montaria. Um companheiro de verdade… e uma lenda entre os céus.

O silêncio que se seguiu foi respeitoso. Mesmo Morgana conteve o sarcasmo. Aquele não era apenas um veículo — era a própria ideia de Harkin sobre liberdade ganhando forma.

Os outros estavam digerindo. Pensando no que aquilo significava pra guerra, pra diplomacia… pro equilíbrio do mundo.

— Bem — disse Jeanne, retomando o tom prático —, seja lá o que for isso, precisamos agora tratar de implementação: tripulação, ajustes que você mencionou, protocolos.

— Isso seria bom — respondeu Harkin.

Eles começaram a deixar a área de teste. Serafina se grudou no braço do namorado e disse baixinho, só pra ele:

— Eu sabia que ia dar certo. Parabéns.

— Obrigado.

Ele beijou a testa dela, e os dois seguiram juntos na retaguarda, caminhando de volta em direção a Eldravel.

Atrás deles, Adrien tocou o próprio peito, na altura do esterno, onde o núcleo sentinela ainda ardia como um grilhão invisível.

— Então é isso — ele murmurou, quase sem som. — Hora de arrancar isso de mim.

Harkin ouviu. Não virou o rosto, só ergueu uma das mãos por cima do ombro e fez um gesto de “vai dar certo”.

Adrien sorriu confiante no amigo.

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