Volume 2

Capítulo 23: Confiança.

O caminho até a mansão de Harkin parecia uma estrada longa e vazia. Nem ele, nem Adrien viam muita coisa, apesar da vasta quantidade de construções vitruvianas ao redor.

— Quão confiante você tá? — perguntou Adrien, puxando o amigo de volta à realidade.

— Difícil dizer... muitas variáveis. Essas anomalias e o fato de haver alguém com conhecimento suficiente para criar uma besta daquelas — e ainda fazer tudo debaixo dos panos, sem ninguém perceber...

— Eu sei. Isso tudo é muito estranho — respondeu Adrien. — Mas você sempre tem um plano, capitão. Qual é o plano agora?

Harkin sorriu de canto, lembrando do tempo em que comandou os Sentinelas.

“É bom saber que ainda tenho a lealdade dos meus homens.”

— Pelo menos um de nós vai ter como voltar vivo.

— Como assim?

— As semanas que pedi foram pra arrumar tudo e, finalmente, te libertar da prisão que eu te coloquei.

Adrien congelou por um segundo. A pergunta veio sincera, com uma mistura de esperança e ansiedade por finalmente quebrar as correntes que o prendiam:

— Tá pronto?

— Tá pronto, Adrien. Você finalmente vai poder abraçar ela sem preocupação. Mas saiba que vai ser o inferno pra tudo dar certo.

— Nah, eu sei que se você trouxe isso à tona, as chances de falha são menores que 1%.

— Sua fé em mim ainda vai te custar caro — disse Harkin, rindo.

Adrien deu de ombros, com a postura corporal dizendo claramente: “Fazer o quê, né?”

Entre risadas contidas, seguiram até a residência.

Harkin cumprimentou vários dos funcionários que agora cuidavam de seu lar no império até chegarem à sala principal.

— Adrien, pode ligar pros outros? Inclusive pro Jeff e pro Sputnik.

— Claro, vou fazer isso.

— Não precisa ser imediato. Diz pra se encontrarem comigo no laboratório depois que Serafina fechar o restaurante. Meia hora deve dar tempo de todos chegarem.

— Ok.

— Eu vou terminar de ajustar o Transmorfo. Vai ser tempo suficiente pra eles chegarem.

— A missão não era secreta?

— Tu vai esconder da tua muié?

Adrien ficou em silêncio. Harkin riu e balançou a cabeça.

— Foi o que pensei. Agora vamos que vamos — pra trás, nem pra pegar impulso.

 

Dentro do laboratório, sozinho, o príncipe pensava em como estruturar tudo. Planos, diagramas e especificações técnicas passavam pela mente dele em turbilhão.

— Eu vou ter que aplicar o princípio da Arkan pra fazer essa nave... — murmurou.

Sentou-se em uma cadeira giratória e começou a rodar nela. Ideias vinham e iam, mas cada uma trazia um novo problema. Ele não conseguia chegar a uma conclusão. Ficou ali, parado, girando, até que olhou para a luz da sala — e uma ideia floresceu.

— E se eu usar a Arkan como núcleo? — pensou alto. — Eu poderia ordenar a matéria ao redor se for compatível. Eu teria que usar uma liga de Zaralith e Aetherium pra construir o núcleo, e a partir daí programar matrizes que reproduzam os comandos dele...

Dando o start inicial, começou a redesenhar os diagramas originais da nave. Na prática, ele estava refazendo todo o projeto do zero.

— Eu não queria sair usando a Arkan assim, mas pra essa missão em específico eu vou precisar. Vai ser o único jeito de conseguir a tempo.

Sabendo que não tinha saída, o príncipe se aprofundou naquilo que precisava para finalizar toda a estrutura ideal do projeto.

Cerca de uma hora e meia se passaram com ele completamente imerso no trabalho. Harkin tinha o hábito de “pensar em voz alta”, e bem no meio de um desses pensamentos, quem precisava chegar… chegou.

— Não vai ser nem perto do que poderia ser com mais estudo, mas o suficiente pra ninguém morrer — murmurava ele, quando uma voz o interrompeu:

— Que merda você tá fazendo agora? — perguntou Pietro, quebrando o raciocínio dele.

Harkin nem percebeu quando os outros entraram. Papéis, fórmulas e diagramas estavam espalhados pela bancada — um deles quase chegou perto demais da forja. Ele o resgatou a tempo.

— Mais um brinquedo novo? — perguntou Gabriela, aconchegando-se no abraço de Adrien, que se encostava numa pilastra.

— Eu aposto que ele vai explicar — disse Okini, cruzando os braços.

— Bem... é algo do tipo — respondeu Harkin, ajeitando tudo. Seus olhos brilharam, a mana percorreu seu corpo, e num piscar de olhos ele se moveu como um borrão. Num instante, o que estava bagunçado parecia nunca ter estado ali.

— Você podia usar essa velocidade quando não te convém também — provocou Serafina, se aproximando.

— Oi, amor — respondeu ele, dando-lhe um beijo rápido como cumprimento.

— O que tem de tão importante pra chamar todo mundo? — perguntou ela, desconfiada.

Harkin desviou o olhar. Ele não disse nada — apenas sorriu. A essa altura, entre os dois, nem tudo precisava ser dito.

“Eu sabia que tinha alguma coisa acontecendo desde ontem”, pensou Serafina.

Apesar da desconfiança, ela guardou as dúvidas para si. Nesse meio tempo, Sputnik e Jeff se acomodaram em silêncio. Harkin observou o grupo e começou:

— Bem, eu não sei por onde começar... mas tenho muita coisa pra dizer, então vai ser pelo começo.

E começou a explicar — tudo que, até pouco tempo, seria considerado informação confidencial. Ao longo da explicação, os amigos faziam perguntas. Algumas ele respondeu com sinceridade; outras, nem ele tinha respostas. Havia ali uma mistura de curiosidade e receio. Jeff e Sputnik, mais quietos, apenas absorviam e processavam o que teriam que fazer.

Quando ele terminou, Gabriela queria matá-lo. Sua voz cortou o ar com raiva contida:

— Sabe… por que você teve que arrastar o Adrien pra isso? Tinha um milhão de pessoas pra ir junto. Por que ele, exatamente?

— Porque, a partir de hoje, ele vai ser livre das amarras de um Sentinela — respondeu Harkin com calma. — E, sendo assim, só existem três pessoas em quem confio minha vida em combate. Uma delas é ele.

— Seu escroto — Gabriela explodiu. — Primeiro você transforma ele nessa máquina que segue ordens, e agora quer fazer dele um fantoche pessoal, seu psicopata do caralho!

Harkin sentiu o ódio dela, mas não rebateu. Entendia o motivo. Foi Adrien quem interveio:

— Calma — disse, segurando-a pelos ombros e virando-a pra ele. — Eu escolhi fazer parte disso no dia em que ele me salvou. Mesmo que ele não fosse me libertar do sistema, eu iria. Porque essa missão não é sobre o Império nem sobre Nerio — não pra mim, nem pra ele. A gente só vai aceitar essa merda porque é pra proteger quem mais importa.

Gabriela engoliu as palavras. Ela sabia que ele tinha razão. A explicação de Harkin não deixara espaço para ilusões. Os outros também começaram a compreender, cada um à sua maneira. Pietro e Okini, em silêncio, sentiram o mesmo peso.

“Eu sou fraco demais... por isso não posso ajudar.”

— Mestre Harkin, em que posso lhe ser útil? — perguntou Sputnik, quebrando o silêncio.

— Apesar de ser razoável em campo, nesse caso específico a melhor ajuda que pode me oferecer é continuar cuidando de tudo. Comece a contratar pessoas de confiança pra te auxiliar. Ao longo desses meses, você provou sua lealdade mesmo sem eu pedir. Eu confio no seu julgamento, Sputnik.

A fala de Harkin soou confusa para os outros, mas o mordomo entendeu perfeitamente o subtexto:

“Obrigado por tudo. Se achar necessário, reporte a Solomon.”

Sputnik ficou em choque. A ficha caiu. Harkin talvez não voltasse.

— Independente de tudo... promete que vai se cuidar e voltar inteiro pra mim? — pediu Serafina.

Harkin a olhou nos olhos. Sabia que não podia prometer isso — seria uma promessa vazia. A chance de não voltar era tão alta quanto a de nada acontecer.

Okini percebeu, e ao notar o olhar dele, virou-se discretamente para Pietro. Ele balançou a cabeça em negativa e, pela leitura labial, ela entendeu:

“Não diga nada. Ela não precisa saber.”

A preocupação de Okini era justificada, mas não cabia a ela dizer. Nada ainda era certo — tudo podia acontecer.

— Eu prometo — disse Harkin, sem conseguir dizer o contrário. — Mesmo que me custe caro, eu vou voltar. E vou trazer ele de volta.

As palavras dele acalmaram Gabriela, que já percebia ter ido longe demais.

— É bom mesmo — respondeu ela, com um meio sorriso. — Você é meu psicopata favorito, afinal de contas.

O clima se suavizou. Risadas leves preencheram o ar.

— Bem, agora que isso tá resolvido — disse Harkin —, por que a gente não janta?

— Excelente ideia — respondeu Serafina. — As circunstâncias estão longe de ideais, mas eu preciso processar essa enxurrada de informação… então eu cozinho.

Ao ouvirem isso, todos se prontificaram para ajudar. A comida de Sera era lendária — o simples pensamento já fazia os estômagos roncarem. Entre risadas e alívio, o grupo subiu junto, prontos para compartilhar aquele que poderia ser o último jantar tranquilo em muito tempo.

O jantar terminou em risadas e pequenas piadas sobre quem cozinhava pior. Todos chegaram a um consenso que Harkin é o mais sortudo por ter a comida de Sera disponível assim que quiser.

Quando os pratos foram recolhidos, ninguém quis se levantar primeiro — todos sabiam, mesmo sem dizer, que aquele seria o último momento leve por um bom tempo.

Harkin observou o grupo.

Serafina encostada na pia, sorrindo cansada; Gabriela rindo com Adrien; Pietro e Okini discutindo sobre algum detalhe técnico qualquer.

Por um instante, ele se permitiu respirar.

— Obrigado — disse, sem olhar pra ninguém em específico.

O silêncio que se seguiu não precisou de explicação.

Ele se levantou, colocou o casaco e apenas disse:

— Tenho que revisar as fórmulas e testar o núcleo antes do nascer do sol.

— Sozinho? — perguntou Serafina.

— Sozinho.

Ele saiu da sala em silêncio.

O som das risadas anteriores desapareceu, substituído pelo eco metálico de seus passos no corredor.

O laboratório o aguardava.

O resto do dia passou como um flash. Todos tentavam seguir a vida como se nada estivesse acontecendo. Harkin deu tudo de si, sozinho em sua forja. Colocou a mente inteira no trabalho, focado em terminar aquilo e conseguir dormir em paz de novo.

Já passava da meia-noite quando ele saiu do laboratório. Para sua surpresa, deu de cara com Serafina, sentada no sofá, lendo um dos livros de medicina e olhando pra ele. Os olhos dela estavam pesados, marcados por olheiras de quem precisava dormir, mas não conseguia.

— Meio tarde pra estudar, não? — ele perguntou.

— Me diz você. — Ela fechou o livro e largou no colo. — Tenho um ódio tão grande de vocês por isso

Ele tirou o casaco, jogou sobre o encosto e se sentou ao lado dela.

— Ódio do quê exatamente? Porque eu sou odiável por muitas coisas.

Ela se aconchegou na curva da clavícula dele, e ele passou o braço por cima dela.

— Você, por exemplo — ela murmurou. — Ficou horas acordado, enfiado naquele laboratório, e não tem um pingo de cansaço estampado no seu rosto.

— Hahahaha. — Ele riu alto. — Era sobre isso? Se serve de consolo, eu tô um trapo.

— É muita coisa... — ela disse, baixinho. — Eu sei que vai ser difícil, e eu te fiz prometer uma coisa que você nem sabe se consegue cumprir. Eu fiquei pensando nisso e cheguei à conclusão que... eu te amo, Harkin. E eu não quero que você vá.

Ele olhou pra ela. Uma lágrima já se formava no canto dos olhos dela e escorreu pela bochecha. Ele passou os dedos e limpou.

— Eu também te amo.

— Mas... você não pode negar essa missão. Eu sei que não.

— Não posso. Foi você quem disse que talvez fosse hora de parar de fugir das minhas responsabilidades.

— É... — Ela suspirou. — Eu só não achei que “responsabilidade” ia significar seus pais te jogando num território desconhecido pra agir como espião.

— Isso é o quanto eu sou bom. Eles até têm outras opções. Mas ninguém que não seja general consegue ir e voltar sem levantar bandeira.

— Pode ser...

— Eu vou voltar — ele disse, com calma. — Talvez não inteiro, mas eu vou voltar. E, bem... você já me pegou faltando um pedaço mesmo.

Serafina lançou um olhar sério pra ele, mas os doi

s acabaram rindo de leve. Ficaram ali mais um pouco, em silêncio, até que ela puxou:

— Vem. Banho e cama.

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