Volume 2

Capítulo 22: Seres Difíceis

— O príncipe matou meu pai.

A afirmação pesou ainda mais o clima. Erik lançou um olhar de canto para Harkin, que mantinha o ódio vivo nos olhos.

— Olha… te admiro pela calma — disse Erik a Páris. — Eu não sei se manteria a mesma paz de espírito nessas circunstâncias.

— Não é tão simples quanto parece — respondeu o senador, sereno. — Apesar do ódio do príncipe por mim, não guardo rancor. As ações de meu pai provocaram a ira dele. Eu não tenho nada a ver com isso.

— Eu devia ter te matado também — rosnou Harkin. — A tua sorte é minha mãe e Kinan estarem aqui pra te proteger.

Nos olhos do príncipe não havia brecha para se ler mentira.

— Estou curioso — disse Orrin, seco. — O que o pai dele fez?

A sede de sangue de Harkin transbordou. Sua aura se elevou, deixando figurões em alerta. Orrin cortou o ímpeto com um toque de dedo na mesa.

Toc!

Nada físico aconteceu, mas, para Harkin e Páris, foi como se uma onda os arrastasse por um milésimo de segundo.

— Mais prudência, meu príncipe — Orrin o fixou com firmeza. — Acalme-se.

— Os assuntos de vocês ficam em Nerio — decretou Eiden. — Páris é amigo e já ajudou tanto Nerio quanto o império em situações difíceis, como agora.

Harkin engoliu em seco e escolheu focar no que importava.

— Já que ele está aqui, posso presumir que é missão secreta — disse.

— Sim. E é bom se acostumar — Morgana sorriu como o diabo oferecendo contrato. — Já que você é tão “inteligente” e bom detetive, vai ser o agente.

— Não vou.

— Vai, sim — retrucou Eiden. — Permiti que ficasse por aqui, negligenciando deveres de príncipe e escondendo a identidade. Agora vai assumir responsabilidades — com Nerio e com o império.

— Por mais que eu goste das suas aulas — completou Jeanne —, seu pai está certo. Você ajuda a população, mas ainda é um príncipe.

— Ah tá. Porque eu “sou príncipe” tenho que conduzir missão secreta? Foda-se. Manda um dos teus outros filhos. A Leona tá doida pra provar valor, dá a chance pra ela. E eu já abdiquei de ambas coroas. Caguei pra essa merda de dever real.

Harkin empurrou a cadeira para se levantar. Eiden se preparou para barrá-lo, mas Morgana pousou a mão no braço do imperador e balançou a cabeça. Antes de Harkin atingir a porta, ela disse:

— Você não faria isso nem pela Gabriela?

Ele travou. Sabia que, diante das pessoas ali, sua intenção assassina não significava nada. Mas ouvir o nome da irmã sempre o arrancava da razão.

Adrien quase se moveu, mas a mana de Harkin, em sobressalto, o conteve.

— Vai descer tão baixo, mãe? — Os olhos de Harkin brilhavam; o púrpura das íris incendiava-se contra o vermelho nas escleras.

— Não me entenda errado — devolveu Morgana, fria. — Não é ameaça à sua irmã. É pergunta: seu orgulho idiota vai permitir que ela se coloque em perigo? Do jeito que vai, a primeira princesa de Nerio pode deixar de estar segura.

— E isso não é ameaça como?

— Não por minha causa, imbecil. Se anomalias estão sendo conduzidas por terceiros — como você e nós suspeitamos —, quem está por trás não é mais fraco que eu ou seu pai. Ou tem meios para se igualar. Agora pensa, seu merdinha: o que aconteceria?

A razão o alcançou. Não importava a origem; havia alguém por trás. Se esse alguém invadiu Nerio, contornou proteções dele e criou marionetes capazes de segurar Kinan, então…

“Ela está certa. Droga.”

Eiden empurrou de leve:

— E quanto à Serafina? Vai arriscar?

A mana de Harkin recolheu-se. Para a maioria ali, não fez diferença — exceto para o senador e Adrien.

— Falem logo em que merda vou me meter. E me prometam que esse merda do Páris não estará envolvido — disse, voltando a sentar e apontando para o jovem senador.

— Não vamos prometer nada — cortou Eiden. — Ele fará parte do time estratégico. Engulam a desavença até resolverem em Nerio.

— Arfff… — resmungou Harkin. — Sem negociação?

— Você acabou com essas chances no seu chilique — disse Morgana, já ajeitando cristais de mana. As imagens trocaram para uma ilha nas fronteiras marítimas do Império, Nierr’Dhalar e o Deserto sem Fim.

— Em nossas investigações — começou Markus — encontramos uma assinatura de mana quase imperceptível para a maioria. — Apontou para os rastros no vulcão onde Erik lutou. — Depois da batalha, a besta demorou dias para decompor. Isso nos deu tempo para analisar a energia, o que nos levou à costa.

A imagem ampliou: uma pequena ilha do império.

— Vila de Oars. Pescadores que se prenderam às tradições, sem magos. Um dos poucos povos que veneram Emvhar.

A imagem seguinte era puro horror: destruição desenfreada, corpos de crianças, idosos e adultos dilacerados; membros espalhados; casas como se um demônio tivesse varrido tudo. Harkin repuxou o maxilar.

“Que porra foi essa?”

As cenas seguintes não ajudaram: camadas de pele seca — de algo em crescimento —, cada uma maior que a anterior, até o tamanho superar o de uma casa.

— O pior já passou — disse Markus. — Descobrimos que essa criatura e a que Erik abateu são a mesma. Alguém a plantou em Oars. Ela devorou tudo até ficar grande o bastante para sair e ir parar no vulcão de Eremis.

Harkin absorvia, montando o mapa na mente.

— Por que o vulcão? — deixou escapar. Pigarreou. — Como vocês saíram de Oars até a ilha das fronteiras?

— Corvath me ajudou — respondeu Markus. — Percebemos um fluxo de mana apontando ao sudeste. Ele e a frota levaram meses decifrando tudo. Há contradições mágicas na região e bestas marítimas que afundam até os maiores navios.

— E isso é problema para um general desde quando?

— O problema não são os generais, jovem mestre — entrou Páris, medido. — É fronteira nacional. Qualquer movimento aciona repercussão global. Daí as amarras.

— Faz sentido — Harkin quis xingá-lo, mas conteve-se.

— Tá. Já entendi a situação — resumiu. — Vocês querem que eu vá. Se enviarem outra pessoa, pode dar merda — politicamente, por causa da fronteira — e, além disso, outros não são confiáveis.

— Exato, filho — disse Morgana. — Seu pai foi contra, mas confio na sua capacidade. Preciso que faça isso.

Ele demorou alguns minutos. Então Erik:

— E então, moleque?

— Não tenho escolha, né, chefe? A pergunta de vocês é o que eu quero em troca.

— Hã? — Eiden arqueou a sobrancelha. — “Em troca”? Garoto, isso é sua responsabilidade.

Jeanne tocou o braço do imperador, negando com a cabeça:

— Não, querido. Ele tem esse direito. — Voltou-se a Harkin. — Diga o que quer.

— Seja razoável — ordenou Morgana.

— Relaxem — os olhos de Harkin, felinos. — Minhas exigências são todas relacionadas à missão.

Eles se inclinaram, atentos.

— Quero pelo menos uma semana para me preparar. O ideal seriam três. Ninguém vai ministrar minhas aulas no meu lugar. Vou deixar conteúdo para três meses; se eu passar disso, Fiör Elenhaar assume minha turma e o Pietro será o auxiliar.

— Você terá duas semanas — cortou Eiden.

— Por que Fiör especificamente? — perguntou Jeanne.

— Porque qualquer outro seria burro demais para entender o resto. O Elenhaar passou tempo suficiente em pesquisa comigo. E o Pietro foi treinado por mim; vai saber como aplicar o material.

— E o que mais? — Morgana.

— Quero garantia de proteção à Gabriela caso algo me aconteça — e que o Projeto Sentinela a inclua nas diretrizes de comando.

Morgana pensou um segundo, levou a mão à testa.

— Páris, dê o comando.

Ele assentiu, abriu uma tela parecida com um tablet e digitou. Olhou para Harkin:

— Pronto.

— Adrien? — perguntou Harkin.

— Protocolos atualizados, vossa majestade.

— Ótimo. Agora, do lado do império: se algo me acontecer, quero que fique claro que Serafina e Okini herdam tudo que estou construindo.

— Por que minha filha? — estranhou Markus.

— Tenho de deixar algo para minha discípulamesmo ela me negando como mestre. E para Serafina… sei que ela não aceitaria; a Okini vai fazê-la aceitar, além disso quero que ela seja reconhecida como nobre do império.

— Eu garanto, como imperatriz, que se o pior acontecer, sua vontade será cumprida — disse Jeanne.

— Certo. Por último, e não menos importante: quero alguém de confiança infiltrado comigo. Adrien é minha escolha, e isso não é negociável. E quero uma força de apoio do império, à espreita, pronta para retirada de emergência.

— Essas condições não podem ser atendidas — disse Eiden. — O sentinela tem as habilidades? Eles são capazes, mas ainda imaturos. E uma frota levantaria bandeira nas fronteiras.

— Isso não é negociável, velho. Eu não quero “frota”, quero a força de Corvath e a Segunda Divisão do Markus. Sei que eles não podem vir — daria merda —, então quero Kinan com os melhores oficiais dos dois. E Adrien comigo.

— Eu já disse… — Eiden começava, mas Harkin cortou:

— Eu tenho um meio. Relaxa. E Adrien será o representante de Nerio em campo.

— Você não vai usar aquilo, vai? — Adrien, tenso.

— Vou. Para os demais: desenvolvi um navio baseado nas lendas da mega embarcação transmorfa de Nierr’Dhalar.

Os olhos de meio mundo arregalaram — principalmente Eiden e Kaius. Na guerra, viram o Zhavarkor em pessoa: estrutura viva, máquina perfeita. É por ele que Nierr’Dhalar mantém-se livre e domina o comércio marítimo.

Morgana cortou o silêncio:

— Você finalizou e não me falou nada?

— Lavem roupa suja em casa — disse Eiden. — Garoto, não brinque: eu vi o Transmorfo. Reproduzir aquilo é impossível.

— Pois me chame de milagroso.

O espanto cresceu. Orrin riu:

— Então, senhor dos milagres, qual a capacidade perto do original?

— Nunca vi o original. Baseei-me nas lendas e nos modelos de Nierr’Dhalar. Estimo atingir de 10% a 30% da capacidade do Zhavarkor.

Eiden e Kaius respiraram aliviados.

— Isso não é pouco? — perguntou Erik.

— Você não tem noção do que o Zhavarkor faz — respondeu Orrin. — Eu era criança quando ele apareceu. Nosso antigo país, Têmera, guerreava contra antiga cidade estado Thyrrgash. O Transmorfo surgiu e, com um disparo, reduziu minha cidade a cinzas. Só eu sobrevivi… por um milagre.

A dor antiga cruzou o rosto de Orrin. Jeanne clareou o ar:

— Você tem uma semana para nos apresentar a embarcação. Se for aprovada por unanimidade entre os presentes, suas condições serão atendidas. Eu, como imperatriz, garanto.

— Já tem meu voto — disse Páris.

— Tentando ganhar favor? — Kaius estreitou os olhos.

— Não entendam errado — retrucou o senador. — A confiança do jovem mestre ainda está longe de ser reconstruída. Mas acompanhei e supervisionei a construção do protótipo. Sei do que ele é capaz.

As veias de mana do braço sintético de Harkin brilharam, pulsantes.

— Sendo assim, começo minhas preparações, eu entregarei meu protótipo o mais rápido possível, e usarei o resto da semana, mais as duas semanas pra me preparar.

— Feito. — Morgana, Eiden e Jeanne em união responderam.

Levantou-se e saiu, batendo a porta.

Avelline — que permanecera calada — levou os cabelos verde-musgo atrás da orelha, com a graça angelical dos olhos esmeralda, e mirou Páris e Morgana.

“Uma elfa… no império”, pensou o senador ao ver sua orelha pontuda.

— Cheio de personalidade, sua cria, Morgana.

— Eu não o fiz sozinha, Avelline — ironizou a rainha escarlate. — A personalidade foi do pai.

— Faz sentido — riu Jeanne.

As três gargalharam. Os generais apenas sorriram.

— É bom nos prepararmos do nosso lado também — disse Eiden, erguendo-se. — Com licença: preciso ir a um lugar.

Antes que alguém respondesse, luz emanou do corpo do imperador; trovões ecoaram acima; num clarão, ele desapareceu.

— Ele ainda vai até lá quando está chateado? — perguntou Morgana.

O rosto de Jeanne, pela primeira vez, trouxe tristeza genuína.

— Sim. Ele não consegue se livrar daquele lugar.

Morgana voltou-se a Páris, Kinan e Adrien:

— Kinan, leve os garotos para conhecerem um pouco mais do império. Preciso falar a sós com velhos amigos.

Markus entendeu e abriu a porta:

— Vamos. Mostro alguns lugares — é caminho do meu escritório.

Os quatro saíram e fecharam. Morgana aguardou alguns instantes.

— Já foram.

Orrin pegou uma garrafa de Uischaim; Erik trouxe taças e vinho da adega no fundo.

— Ótimo — disse Morgana. — Me vejam como velha amiga, não como rainha escarlate. Quão séria é a situação dele?

— Como podemos fazer isso, Morg? — perguntou Kaius, pesaroso.

— Não se preocupem — ela enrijeceu o queixo. — Ele é pai do meu filho. E Harkin já perdeu gente demais. Ele posa de durão, mas está começando a gostar de Eiden. Ele não merece isso. E, se eu puder ajudar, vou.

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