Volume 2

Capítulo 25: Reforjado

No outro dia, bem cedo, um círculo de pessoas se formou dentro do laboratório de Harkin.

— Fiquem atrás do perímetro. Isso aqui não é brincadeira.

— É DA VIDA DO MEU NAMORADO QUE A GENTE TÁ FALANDO, HARKIN!

Gabriela gritava com o irmão enquanto os outros assistiam.

— E é da SUA vida que eu tô falando. Se alguma coisa der errado, vai eu, você e o Adrien pro caralho juntos. Você quer arriscar nossas vidas?

— Isso não é justo — ela rebateu, já com a voz embargada.

— A vida não é justa. Você aprendeu isso cedo quando teve que me criar sozinha. Agora não finge que eu tô tirando ele de você. Eu tô libertando meu melhor amigo. Ou você fica atrás do perímetro, ou eu te ponho pra fora. Isso não é negociável.

— BABACA!

Mesmo xingando, ela recuou pro lado seguro. Harkin tinha delimitado uma área protegida especialmente pros que não podiam lidar com uma explosão de mana na cara.

Ele se virou para Serafina e soltou, num meio pedido, meio desabafo:

— Ela é a pessoa mais racional do mundo. Mas desde que começou a namorar o Adrien, ela virou uma adolescente. Fica com ela, por favor.

Serafina o abraçou de leve, encostando a cabeça no peito dele.

— Nem precisa pedir. Dá um desconto pra ela, vai. Eu sei como ela tá se sentindo. Não é fácil...

— Pra nenhum de nós é. Mas ela só ia atrapalhar. Pietro e Sputnik tão aqui porque são necessários. Jeff e Okini tão lá fora pra proteger vocês duas. Ninguém aqui tá relaxado.

— Eu sei, amor... mas entende ela, tá? E depois pede desculpa. Tudo que ela ouviu foi “eu vou levar a única pessoa que te entende e enfiar ele numa missão suicida”.

— Vou pensar. — Ele a apertou mais forte. — Vai pra lá agora, por favor. Eu não ia me perdoar se te machucasse.

— Tá bom. Toma cuidado, ok?

— Podexá.

No tempo certo, Adrien entrou na sala já esterilizada e adaptada pro procedimento. Sem camisa. Linhas e marcas pelo corpo — cicatrizes do projeto Sentinela. Ele não era alto, mas cada centímetro dele era arma.

Um Sentinela totalmente equipado tinha força equivalente à de um coronel do império, ou de um Hyperion — devotos logo abaixo dos Thaurion de Nerio.

Olhando as marcas do amigo, Harkin lembrou de como idealizou os Sentinelas. No rosto dele veio aquela mistura de orgulho e culpa que Adrien conhecia bem.

— Relaxa, capitão — Adrien disse. — Eu aceitei isso tanto quanto você. Não tem ninguém pra culpar.

— Fala isso pra louca da tua namorada.

— Ela é tua irmã, sabia?

— Exato. Tô no meu direito de falar.

— Ela só tá preocupada. Não liga pros gritos.

— Você vai sair daqui tão forte quanto um Thaurion, quando acabar. Por que caralho ela tá tão puta?

— Porque tem chance de dar errado, seu idiota. Não finge que não sabe agora — Pietro cortou, se aproximando.

— Ah, a chance de 5%? Vai tomar no cu vocês com esse drama. Eu fiz o Adrien virar Sentinela quando ele tinha 33% de chance de sobreviver.

— Ela não conhecia ele naquela época, mestre — disse Sputnik.

— Verdade — Adrien concordou. — Mas eu confio em você, capitão. Sei que vai dar certo. Agora vamo logo que eu não quero ficar desfilando minhas cicatrizes mais do que o necessário.

— Beleza. Seguinte. Pietro: você estabiliza os sinais vitais dele. Sputnik: você controla o fluxo de energia até eu mandar liberar tudo. Ok?

— Ok — os dois responderam.

— Pietro, a anestesia não vai funcionar nele, mas aplica mesmo assim.

Adrien franziu o cenho.

— Se não vai funcionar, pra quê?

— Porque a linha entre “monstro lunático” e “cientista louco” é que eu valorizo a vida do meu paciente. Então nós vamos seguir protocolo.

Adrien só deu de ombros. Isso bastou.

Harkin começou a preparar os materiais. Do lado de fora do perímetro, Gabriela assistia com o coração na boca, apertando o colar que Adrien tinha dado pra ela com tanta força que já tava marcando a mão. Serafina percebeu e a abraçou. As duas não tinham tanto tempo de convivência, mas foi como com Harkin: bateu e encaixou.

Eles observaram Harkin prender Adrien numa mesa vertical. Assim que as travas se fecharam, a mesa levantou e suspendeu o Sentinela no ar. Harkin deu o comando:

— Êxtasis.

Um brilho percorreu os olhos de Adrien, e ele apagou num sono profundo.

— Ótimo. Pietro, começa a monitorar. Quando os batimentos passarem de 190, aplica a anestesia.

— Cento e noventa?!

— Sentinelas têm sistema cardiovascular diferente. Eles podem chegar em trezentos bpm. E antes que você pergunte: sim, o coração deles é diferente, assim como o resto do corpo. Só segue o que eu tô falando.

Pietro assentiu.

O Zaralith bruto e as últimas reservas de Aetherium de Harkin começaram a brilhar. A forja incandesceu. Metal e minério de mana se fundiram — base da liga que formaria a Arkan.

Na cabeça de Harkin, ecoou a voz de Kinan: “Alterar aquilo que foi criado pelo lorde celestial é blasfêmia, garoto.” Ele lembrou da oposição de Kinan quando os Sentinelas nasceram.

“Heh. Esse velho puxa minha orelha até quando nem tá aqui.”

Ele empurrou a memória pra longe e focou. Os olhos brilharam diferente. O foco consumiu tudo.

As fórmulas começaram a se alinhar no ar — cada uma batendo mana contra mana, como martelo em ferro numa bigorna.

Uma bola de metal líquido se formou, flutuando entre ele e Adrien.

— Sinais vitais?

— Estáveis — respondeu Pietro. — Batimentos em 130. Pressão... dezoito por nove. Isso é normal?

— Pra ele, é.

— Iniciando o procedimento. Atenção à mana e nos sinais — disse Harkin.

Sputnik assumiu o controle das fórmulas pré-desenhadas. Quanto menos Harkin precisasse se preocupar em segurar o ambiente, mais ele podia focar na reconstrução.

A torrente de energia foi tão violenta quanto o nó no estômago de todo mundo. Encantamentos despertaram como armas conhecidas. A sala vibrou.

Do lado de fora, Okini perguntou, baixinho, pra Jeff e pra Gabriela:

— Eu não sabia que ele tinha todo esse conhecimento médico. Isso vem de onde?

Gabriela apertou ainda mais o colar. As mãos tremiam. O suor já escorria na testa dela. Vendo que ela mal conseguia falar, Jeff respondeu:

— O Harkin sempre estudou de tudo um pouco. Quando eu conheci ele... vou ser sincero: demorou uns três meses pra gente conseguir conversar sem ele querer me matar. No segundo ano dele no poder da família, ele começou a pesquisar o corpo humano. Um mês depois, já tratavam ele como príncipe. Eu basicamente assumi a família enquanto ele estudava e fazia “outras coisas”.

— Uau! — Okini murmurou.

— Não se engane, senhorita Ander — disse Jeff. — Ele dominou medicina com treze anos. Em menos de seis meses já era, no mínimo, equivalente a um médico de ponta.

— E foi mais ou menos nessa época que ele começou os primeiros rascunhos dos Sentinelas — Gabriela acrescentou, sem tirar os olhos do irmão. — Depois que Edgar... partiu... ele ficou paranoico com segurança.

— Com a SUA segurança — corrigiu Jeff, suave.

— É. Ele queria criar super guarda-costas pra mim. No começo nada funcionava. Ele desistiu porque não achou um método que fosse seguro.

Okini franziu o cenho.

— Pela personalidade dele, eu achei que ele nem se importaria.

— Ele não se importava — Gabriela respondeu. — Eu levei esse tempo todo pra arrancar dele qualquer pedaço de humanidade que tinha sobrado.

A dor nos olhos dela — e nos de Jeff — dizia tudo.

Um grito rasgou o laboratório.

— AAAAAARGH!

Adrien.

O metal líquido estava entrando pelo peito dele, infiltrando nas artérias, como fios vivos. Uma parte subia pelo nariz, invadindo direto o sistema nervoso.

— Sinais vitais? — perguntou Harkin, sem piscar. O foco agora era cirúrgico. Ele desligou o “amigo” e ligou o “cirurgião”.

— Estáveis! — Pietro respondeu.

Harkin continuou.

— Vai ser rápido agora, irmão. A gente já tá quase lá.

— Maldito — Adrien arfou. — Acaba logo com isso... meu Næxum vai explodir...

Harkin ignorou o xingamento e manteve o controle da Arkan. A própria tecnologia do braço direito dele entrou em ressonância com o processo.

A mente dele se expandiu. Por um instante, ele e o sistema viraram uma coisa só. Os milhões de nano-golens que compunham a Arkan não eram vivos — mas pra ele pareciam.

Ele sentia esses microgólems reescrevendo os encantamentos no corpo de Adrien, fundindo-se às células, consertando o Næxum e redefinindo todas as restrições do protocolo Sentinela. Quando alcançou o cérebro, as duas consciências se tocaram — e foram jogadas de volta ao passado.

 

Vento frio do mar. O casco metálico de um navio de guerra de Nerio. Harkin, ainda com o primeiro protótipo de braço mecânico, pendurado no parapeito. Adrien, ensanguentado, quase despencando, chegou por trás dele.

— O mar é lindo daqui, milorde.

— É — Harkin respondeu. — Por que você tá aqui, Ferratus? Você devia estar deitado. Com esses ferimentos, era pra você nem estar andando.

— Milor—...

— Não me chama assim. Harkin tá bom.

— Ma—...

— Se falar de novo, pode voltar pra enfermaria.

— Ha—... Harkin... — Adrien engoliu em seco. — Eu tô de cama há meses desde que você me salvou. Já descansei o suficiente. Eu não vou enrolar: eu quero entrar na divisão que você tá criando.

— Não.

— Mil— Harkin...

— Não. Você ainda tá se recuperando. A natureza da minha divisão ia te matar.

— Eu morri no dia em que você me salvou junto com os meus homens.

— Eu te salvei pra você viver.

— Se é pra apodrecer numa cama... então acaba logo com isso agora.

Harkin sorriu com a audácia. Ele não fazia ideia com quem tava falando.

— Tá bom. Se é isso que você quer.

Com a prótese, ergueu Adrien pelo pescoço, tirando ele do chão. Mesmo despedaçado, sangrando, o homem sustentou o olhar. A expressão dele dizia: “ou eu consigo... ou eu morro aqui”.

Depois de alguns segundos, Harkin o soltou.

Adrien caiu no convés, tossindo, respirando como se tivesse nascido de novo.

— Eu te salvei pra você viver. A vida é preciosa — disse Harkin, encostando outra vez no parapeito. — E eu sou mais novo que você, e não sou lorde de porra nenhuma. A partir de hoje, você me chama de capitão. Descansa. Te dou uma semana. Quando voltar, o inferno começa. Mas, depois, você vai estar acima de quase todo mundo.

 

De volta ao presente.

As duas mentes se separaram com violência. Harkin foi arremessado longe, batendo no chão. A mesa onde Adrien estava amarrou-se em luz, e o ar ficou tão quente que distorceu a visão.

— IAAAAARGHREAAAAAA!

Adrien gritou dentro de um casulo de pura luz azulada, quase branca.

Do lado de fora, Gabriela perdeu o controle.

— ADRIEN!

 

A luz aumentou. Pra qualquer mago sensível na cidade, parecia que uma esfera de mana bruta tinha explodido no quarteirão todo.

Morgana, Kinan e Orrin sentiram a ruptura.

— Essa não é a casa do seu filho? — perguntou Orrin.

— É — respondeu Morgana, na hora.

— Vossa alteza, eu devo...? — Kinan começou.

— Nós devemos — disse Jeanne, entrando na sala junto com Markus, ambos já alertas.

 

No laboratório, o casulo pulsava como um coração. A luz começou a diminuir, tomando contorno humano. Harkin, ainda de joelhos, levantou o rosto pra ver.

Gabriela ignorou completamente o “fica atrás do perímetro” e correu pra dentro.

Harkin tentou gritar pra impedir, mas estava fraco demais.

E então a luz se fechou... abraçando ela.

— Você ficou mais baixa — disse a voz de Adrien, surgindo dentro do brilho.

Ele apareceu.

Antes, Adrien tinha mais ou menos a altura de Gabriela — algo perto de um metro e setenta. Agora, ele passava fácil de um metro e noventa e cinco. Harkin, com quase um e noventa, teve que olhar um pouco de baixo pra cima.

O corpo dele estava limpo. Nenhuma cicatriz de cirurgia. Musculatura densa e definida. A aura... absurda. A mana dele parecia viva. O cabelo, um pouco mais comprido, agora na altura da nuca. E os olhos: o mel de sempre, mas agora com um anel de luz azul cintilando na íris.

Gabriela caiu no peito dele e o apertou, chorando.

— Não me dá outro susto desses.

— Desculpa, amor. Era necessário.

Harkin caiu de costas no chão, rindo.

— Filho da puta... você tá mais forte que eu agora.

Todos estavam esgotados, menos Adrien — que parecia recém-nascido. Harkin, por outro lado, parecia ter pago a conta sozinho.

Adrien olhou pra ele e provocou:

— E agora, seu maldito, vai continuar falando que vai me matar porque eu tô com a sua irmã?

— Vou. — Harkin tentou se levantar, e cambaleou. Serafina correu e segurou ele pela cintura. — Eu só preciso de um tempo... aí eu te mato. Você ainda não é um Thaurion completo.

Adrien riu e estendeu a mão. Harkin segurou.

O toque disparou uma corrente de mana. A energia de Adrien fluiu pra Harkin como um trovão domesticado. Linhas de luz correram entre os dois — quase bonitas demais pra alguém que não sabe o que tá vendo.

Em poucos segundos, Harkin já estava recarregado.

— A energia de semitranscendente é absurda — comentou, ajeitando a respiração. — Se eu não fosse idiota... e eu não sou... eu diria que é hora de pedir pizza.

— Pede várias. Tô morto de fome — disse Pietro.

— Bora — disse Okini, já pegando Harkin pelo braço pra ajudar a levantar. — Anda, mestre-nerd.

— E agora, capitão? — Adrien perguntou.

Harkin deu um meio sorriso cansado.

— Agora a gente dorme. Amanhã é outro dia. E os problemas de amanhã...

Ele deu de ombros.

— ...são problema de amanhã.

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