Volume 2

Capítulo 20: Tente novamente.

O clima alegre e distraído do salão não impediu o que estava prestes a acontecer na roda de pessoas mais próxima à entrada. Quatro jovens conversavam:

— Isso tudo é interessante e tudo mais, mas não acho que seja o caminho que eu vá trilhar.

— Ah, pelo amor de Empera, Serafina! Você vai abrir mão de participar daquilo que vai traçar os passos do futuro pra cuidar de um restaurante? — a indignação de Camila surpreendeu Pietro, que a observava em silêncio.

— Nem todo mundo é consumido pela ganância, Camila — retrucou Okini.

— Isso não é ganância, é querer ser mais do que aquilo que decidem por nós.

— E isso não é exatamente ganância?

— Eu não disse que não sou gananciosa — rebateu Camila. — Só tô perguntando por que isso seria ruim, exatamente?

— Não é — respondeu Sera. — Eu só não me vejo nesse cenário, Camila. Cuidar do Dragão Dourado já dá trabalho demais, sem falar nas outras coisas… Além disso, com que dinheiro eu iria me manter?

— Seu namorado tem grana o suficiente pra segurar as pontas.

— Harkin é meu namorado, não meu cofrinho de emergência.

— Não que ele fosse se importar em pagar e manter seus estudos — constatou Pietro, dando um gole no drink.

— Aí eu não seria diferente do que os outros falam sobre mim.

Cortando a conversa, uma voz se intrometeu atrás deles:

— E você é?

Stein.

Eles se viraram surpresos. A tensão se instalou imediatamente.

— Perdão? — respondeu a jovem chef, confusa.

— Me diga, Serafina… você é? Digo, diferente do que falam?

Okini cruzou os braços.

— Tô vendo que isso não vai acabar bem. Por que você não sai fora, Stein? Isso aqui é um jantar com convidados do mundo inteiro.

— Hahahaha! — Ele riu alto, mas não o bastante para causar uma cena. — Vendo que são outros que respondem por você, já tenho minhas conclusões.

— E seriam? — perguntou Camila, curiosa, levantando uma taça de vinho.

Era o que ele esperava: uma brecha. Um sorriso malicioso surgiu em seu rosto. E então ele destilou seu veneno:

— Uma puta! Da mais barata. Meus amigos sempre estiveram certos: você não passa de uma vagabunda que se vendeu pro cara que tava acima de mim. Só não foi minha antes porque eu te ofereci o coração, não o meu dinheiro e status. Se tivesse feito isso, meu harém teria mais um brinquedo.

As palavras chocaram todos ao redor. O silêncio tomou conta do círculo. Ninguém ousou intervir — não naquele evento.

Do outro lado do salão, Jeanne, Eiden e Morgana observavam atentamente, assim como os irmãos de Harkin. E foi impossível não perceber o príncipe de Nerio se levantando da conversa que tinha, caminhando lentamente com seu smoking preto de detalhes roxos e símbolos vermelhos de Nerio.

Sera, Okini e Pietro arregalaram os olhos ao vê-lo.

“Deu ruim.”

Foi o pensamento coletivo dos três.

Camila percebeu o olhar deles, virou-se — e viu o demônio sorrindo. O sorriso de quem estava prestes a arrastar alguém direto pro inferno.

— Talvez seja melhor… — começou ela, mas Harkin a interrompeu colocando um dedo sobre seus lábios e a outra mão no ombro de Stein.

— Shhh… — sussurrou, aproximando-se da orelha do sobrinho. — Não queremos que o todo-poderoso príncipe perca o fio do discurso.

Virou-se, abraçou Serafina e encarou Stein com um sorriso calmo. A tranquilidade dele chocou Camila — era uma serenidade falsa, mascarando o perigo.

Stein se calou. Procurou o olhar do pai, mas Solomon apenas balançou a cabeça em negativa. Vendo isso, ele perdeu parte da compostura.

— Vamos, garoto. Continue.

“Qual foi, pai? Vai me abandonar agora?”

Sem resposta. Ele procurou a mãe na multidão — também em vão.

Harkin deu uma risada leve.

— Tu não passa de um playboy que não sabe se virar sem o papai e a mamãe. E ainda tem coragem de se chamar de Empera? De apontar o dedo pra alguém só porque te disseram não?

— Você que é um filho da puta asqueroso que só faz o que quer porque sua mãe te protege! — gritou Stein, perdendo o controle.

Harkin soltou a cintura de Serafina. Seu rosto permanecia neutro… mas os olhos queimavam.

— Em primeiro lugar — disse, num tom baixo e gelado —, fale baixo. Tenha consciência de onde você está.

Deu um passo à frente.

— Segundo: eu não sou um dos seus amiguinhos. E não dependo do meu sobrenome pra resolver meus problemas. Não que seja da sua conta, mas vim pra cá sem um puto no bolso e já sou milionário. Então não se compare a mim… você não vai gostar do resultado.

Mais um passo. O sorriso político no rosto de Harkin só fez Stein e Camila suarem frio.

— E em terceiro — continuou —, mas não menos importante: eu já matei uma família inteira por muito menos do que isso. Você devia agradecer por ainda não ter virado estática nas minhas mãos, seu mimado sem um pingo de instinto de autopreservação.

O olhar de Harkin atravessava Stein. A sensação era a de estar diante de um predador prestes a atacar. O jovem sentia o corpo travar, o ar faltar. Atrás de Harkin, começou a ver algo — uma sombra grotesca, um dragão negro que o fitava, faminto, pronto para devorá-lo.

Só não fugiu porque o medo o paralisou.

O pigarro seco de Camila quebrou o transe.

— Hrum… — ela pigarreou — Harkin, acho que ele já entendeu. Eu vou cuidar disso.

Ele não moveu um músculo, mas os olhos roxos se voltaram lentamente pra ela.

— Ah, é?

— É. — Camila sustentou o olhar. — Você mesmo disse: ele é um mimado. Cabe a mim, como irmã mais velha, ensinar o que meus pais falharam em ensinar.

— Pena que você não é mais velha que Drake… — respondeu ele. — E que não agiu antes. Teria evitado muita dor de cabeça.

— É, mas foi graças a isso que você conheceu sua namorada. Vê o infortúnio como uma bênção disfarçada. E, como você mesmo disse, ele tem sorte. Deixa que eu cuido disso. Você sabe que minha família leva a palavra a sério.

Harkin fingiu pensar por alguns segundos.

— Aarf… — suspirou. A pressão em torno dele aliviou. Stein voltou a respirar, abrindo e fechando as mãos pra sentir os dedos. — Você sabe, Camila, que por enquanto eu não posso fazer nada. Todos aqui sabem disso. Mas lembra do que eu disse pro Markus: se ele não conseguir corrigir seu irmão… — ele voltou o olhar para Stein — eu vou. Afinal, é o papel do tio, não?

Um alívio coletivo percorreu o grupo. Camila, esperta, não perdeu tempo — agarrou o braço de Stein e se afastou rapidamente, sem chamar atenção.

— Obrigado, Harkin. Eu vou me certificar de que nada assim volte a acontecer.

Na mesma velocidade em que ele surgiu, ela sumiu com o irmão.

De relance, Harkin viu Jeanne e os outros sorrindo. Eiden ergueu o copo em sua direção, brindando silenciosamente em aprovação.

Serafina o olhou com um misto de amor e medo, embora o rosto mostrasse alívio.

— Eu espero que você não tenha falado sério quando disse que mataria ele e a família.

— Ele não falou — respondeu Pietro. — Não completamente, pelo menos.

— Será que não? — provocou Harkin.

— Não sei, idiota — rebateu Okini. — Porque matar o resto da família incluiria a mim, o Pietro, a Leona, meu pai… e, embora eu tenha minhas dúvidas quanto a Solomon e Gordon, você não teria chances contra eles. Sem falar no vovô.

— Touché. Eu não posso com nenhum deles. Talvez com a Leona? — pensou por um segundo. — Não… nem com ela. E com Markus, então, impossível.

Pietro riu, já sabendo que o amigo tinha resposta pra tudo.

— Mas… e daqui a alguns anos? — completou Harkin. — Eu sou um cara paciente.

— Pfff! — Pietro quase cuspiu o drink. — Paciente? Você? Nem ferrando.

Serafina olhou para eles, confusa.

— Como vocês conseguem falar com tanta calma sobre matar pessoas? Ainda mais da família?

— Porque o mundo é assim, mon cœur — respondeu Harkin, com a taça na mão e deu um gole. — Dragões e abutres dividem o mesmo céu, mas o segundo só se alimenta do primeiro quando ele já está morto.

— E precisa ser assim? Não dá pra conviver em paz?

— Infelizmente, vou ter que concordar com o meio mestre aqui, amiga — disse Okini.

— Tu não vai ficar do lado dela? — Harkin fingiu indignação. — Essa é nova, meio aluna.

Ele sorriu, e Pietro interveio para suavizar o clima.

— O que eles tão tentando dizer, Sera, é que paz só existe quando há força. Principalmente pra caras como o Stein. Em situações assim, um conflito é inevitável — e vence quem for menos piedoso.

— Ainda assim… seria matar alguém.

— Só em último caso — respondeu Harkin. — Não sou hipócrita a ponto de fingir ser o bom moço. Se fosse antigamente, eu teria matado ele na primeira provocação. Mas eu não me orgulho do meu passado. Saiba, Serafina: eu tô mudando. E é por sua causa. Mas, no caso do Stein, ele precisava sentir medo genuíno. Foi por isso que agi assim.

As palavras dele a acalmaram um pouco. Ela sabia que ele não era um príncipe encantado — e nunca seria. Ainda assim, ouvir confissões tão diretas a fez estremecer. Respirando fundo, decidiu encerrar o assunto:

— Mudando ou não, estamos em uma festa e um banquete no palácio. Pra vocês, isso é rotina. Pra mim, é novidade. Vamos aproveitar.

Os outros sorriram, aliviados. Serafina ainda não estava acostumada com o lado cruel do mundo — não como eles. Pietro e Okini tiveram experiências duras, mas o que Harkin viveu tornava às deles simples passeios no parque.

O assunto estava longe de acabar, mas por ora bastava. Todos se contentaram em desfrutar da noite, entre risos, bebidas e as iguarias refinadas do império — todas dignas do paladar de Eiden.

 

 

A música de fundo tocava perfeitamente: violinos, violoncelos e flautas, somados a uma voz doce e um grave harmônico, reproduziam canções do Império sobre as eras antes e pós-fundação. Uma verdadeira orquestra narrando a história de uma nação de cultura rica e diversa.

Harkin e seus amigos dançaram, se divertiram, encontraram alunos da academia e outros nobres. Estavam em uma roda de conversa com Vargas e seu irmão Leopoldo quando a bateria social de Harkin começou a esvaziar. Educadamente, pediu licença:

— Se me dão licença, meus vícios estão tomando o melhor de mim.

Os outros assentiram; já conversavam havia um bom tempo. Serafina não gostou, mas não disse nada — para Okini nem foi preciso: ela notou o desgosto no olhar da amiga.

“Esse maldito cigarro de novo. Vou dar umas belas puxadas de orelha nele.”

Quando Sera ia sair atrás dele, Okini puxou levemente seu braço, apontou discretamente para a figura que o seguia e sussurrou apenas com os lábios:

— Depois. Agora, não.

Ao notar quem o seguia, Sera deixou o assunto de lado — por enquanto.

Encontrando uma sacada vazia, Harkin se acomodou no parapeito e tirou a carteira de cigarros. Uma tragada longa para acender, soltar a fumaça para o alto.

— Ahhh… finalmente um pouco de paz.

Ele olhou para o céu: quatro das doze luas reluziam. A lua de Emvhar era a mais nítida e poderosa, parecendo pairar logo acima de sua cabeça, ao alcance da mão; as outras a seguiam, surgindo lentamente no céu estrelado.

— Já estamos chegando nessa época do ano?

— A época da colheita… Falar só até que combina contigo.

— É meio impossível esconder sua presença, velho.

— He. Verdade.

Eiden se apoiou de lado no parapeito, ao lado do filho. Os cabelos pretos quase azulados, perfeitamente penteados, contrastavam com a barba cheia “na régua” e os olhos azuis. As roupas — meio uniforme militar, meio túnicas imperiais — faziam jus ao posto de imperador.

Harkin esticou o braço:

— Aceita um? — o maço na ponta dos dedos.

— Não. Vou ficar com cheiro.

— E tu liga pra isso?

— Não é só você que tem que manter as aparências, moleque.

Harkin percebeu que ele falava de algo mais do que o cigarro.

— Esses, eu formulei de outra forma — protótipo pra não deixar cheiro.

— Pra quê?

— A Sera odeia essa merda. Se não tem cheiro, não tem reclamação. Mulher feliz, vida feliz.

Eiden riu e pegou o maço.

— Não era mais fácil parar do que inventar um só pra evitar o cheiro?

— Uma porra. Esse veneno é a única coisa que me deixa são — além da sua nora. E eu não posso ficar com ela o tempo todo.

— Se é veneno, você devia parar então.

— E você não para por quê?

— Meu caso é diferente…

— Imortalidade e os carai. Tô sabendo. Mas eu também não sou tão diferente.

— Sem querer te tirar, moleque, mas falta um tempo pra ficar igual.

— Não é sobre o tempo, velho.

— E é sobre o quê?

— Meu corpo.

— Fala de uma vez, Harkin.

Uma tragada longa terminou o cigarro. Ele soltou a fumaça e acendeu outro.

— Eu não deveria te contar isso, mas, nos últimos meses, você tem se provado menos babaca… e até um pai decente.

— E o que isso tem a ver?

— Não conta pra velha?

— Fala logo, porra!

— Depois que eu reconstruí meu braço, comecei a trabalhar e a desenvolver a tecnologia por trás dele.

— A tal da Arkan?

— A própria.

— Enfim, o objetivo da Arkan é reconstruir tecidos orgânicos com Zaralith e Aetherium que, com muita alteração mágica e engenharia, funcionem em conjunto com o corpo. Por exemplo, no caso do meu braço.

Ele acumulou mana na palma. A pele artificial, antes imperceptível, revelou linhas roxas pulsando ao longo do braço, desenhando fibras musculares até o ombro — visível, naquele momento, apenas na mão.

— E isso significa o quê? — perguntou Eiden.

— Que os canais de mana do meu braço artificial estão perfeitamente conectados ao resto do corpo. A assimilação foi um sucesso.

— Então, parabéns. Isso não é bom?

— Seria… se isso não estivesse terminando de alterar a minha genética.

— Como assim?

— Lembra que eu te expliquei que mapeei meu DNA e que você não é humano?

— E eu te disse que é por causa da quantidade de mana e outros fatores de viver muito.

— Suas outras crias podem comprar essa historinha, velho. Mas eu sei que você tem relação com uma espécie dracônica… e outra coisa.

Eiden não respondeu. O silêncio bastou. Harkin não buscava explicação.

— Enfim: o DNA dracônico em mim era muito baixo. O “outro”, menor ainda. Mas, depois da Arkan, isso começou a mudar — pouco, mas num padrão gradativo.

— “Pouco” quanto?

— Zero ponto um por cento.

— Isso não é nada. E o que isso tem a ver com parar de fumar?

— É muito quando falamos de mudanças genéticas e fisiológicas. Eu tô, basicamente, trocando de espécie aos poucos, meu chapa.

Outra tragada.

— E aí entra o cigarro: meus pulmões estão regenerando a ponto de apagar danos de anos de tabagismo.

— Você não tá inventando isso como desculpa pra não parar, né?

Harkin o encarou sério. Os olhos mostravam que não era mentira.

— Com tão pouca porcentagem deu tudo isso de efeito?

— Pois é. Por isso a minha preocupação.

— Quando idealizei a Arkan, restaurar o corpo era uma das funções. Mas isso tá muito além do que eu esperava. Conclusão: o que quer que você seja, está muito além do normal — e isso passou pra mim.

Silêncio. Apenas a música da festa ao fundo e as brasas dos cigarros queimando, distraindo da distância que se formava entre os dois.

— Um dia eu te conto. Por enquanto, temos assuntos mais sérios.

— Do tipo oficial?

— Exatamente. E sua presença não é opcional.

— Ótimo.

Vendo o desgosto nos olhos do filho, Eiden cedeu:

— Relaxa. Te dou cinco minutos pra fumar mais um. A ideia foi boa — quase não dá pra perceber os rastros do cigarro.

— Obrigado.

Eiden, de costas, fez um gesto com a mão — “de nada” — e sumiu pelas portas do salão.

— Vou me foder de novo… Fazer o quê, né.

Ele saltou do parapeito para dentro; quando se preparou para entrar, o vento parou. As faíscas da brasa congelaram no ar, e o som da música se distorceu, como se o tempo prendesse a respiração.

— Você tem escolha, garoto.

Harkin se virou, pronto pra enfrentar o que fosse. Viu apenas um homem alto, de pele negra, tatuagens na língua dos dragões, uma túnica simples na parte inferior e o tronco nu — musculoso. Cabelos laranja, iguais aos dele. Olhar triste.

Ele estava pronto para atacar — mas, ao ver a figura, a vontade simplesmente se esvaiu. Notando isso, o homem sorriu, gentil:

— Ainda não é o tempo certo. Estamos tentando impedi-los, mas eles já estão aqui — e não conseguimos interferir diretamente no mundo como antes. Por isso, cabe a vocês resolver esses problemas.

— Que papo é esse, velhote?

— Você vai entender no tempo certo. Até lá, saiba que foi um prazer te conhecer, Harkin et Abrasax Von Empera.

Ao dizer as últimas palavras, o tempo voltou a fluir — e a figura desapareceu tão misteriosamente quanto surgiu.

Por um instante, achou que o ar ainda estava imóvel. O mundo pareceu hesitar antes de voltar a girar.

— Será que batizaram meu cigarro?… Não. Isso foi real. Mas até que ponto?

Coçando a cabeça, ele decidiu empurrar a inquietação para depois.

— Foda-se. Preciso descobrir o que o velho quer.

Deixando o evento estranho de lado, Harkin retornou ao salão em busca do pai.

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