Volume 2

Capítulo 16: O duelo

O sol do meio-dia queimava o chão do coliseu. Milhares de pessoas se espremiam nas arquibancadas — algumas sentadas, outras em pé — enquanto uma área elevada estava reservada para os funcionários do alto escalão e o corpo docente. A academia não possuía muitos professores, mas contava com milhares de instrutores. Harkin, por sua vez, seria o único professor com uma turma pequena, e esse era um dos motivos por trás do duelo que estava prestes a acontecer.

Julian desprezava o favoritismo. Assim como boa parte da população, ele acreditava apenas no poder — qualquer que fosse sua forma. Ver um garoto recém-saído das fraldas tomando o lugar de alguém mais experiente o deixava furioso.

“Vamos ver, moleque, como será quando a realidade bater à sua porta… com toda essa gente te assistindo cair em vergonha.”

Ele observava, fervendo por dentro, enquanto Harkin atravessava as portas calmamente em direção ao ringue, olhando ao redor, analisando a multidão nas arquibancadas.

— Medo do público, fedelho? Achei que seria interessante trazer alguns espectadores, mas parece que a coisa saiu do controle — comentou Julian, sarcástico.

Harkin sorriu torto, ainda observando as arquibancadas.

— Então... não é gente demais só pra te ver apanhando?

Uma veia saltou na testa e na careca de Julian. A fúria subia, mas ele se controlou com longos suspiros.

— Sua arrogância vai acabar hoje, garoto.

— Eu não diria que sou arrogante... apenas conheço minhas capacidades. E você, senhor Ballistari, não está acima delas.

Julian respirou fundo mais uma vez e respondeu:

— Suba no ringue e prove suas palavras.

Harkin pulou na plataforma circular do centro do coliseu, alguns metros acima da área das saídas, e ficou frente a frente com Julian.

— Velhote... eu não preciso provar nada pra ninguém. Não busco validação de quem eu sou. Isso é coisa de gente de meia-idade querendo se sentir importante. Tipo você. Você quer provar que está acima de mim, que eu sou só um fedelho... eu não quero provar nada. Mas não fujo de um desafio. Ainda mais de velhos fracos como você.

A provocação foi o estopim. Julian explodiu de raiva e lançou um soco carregado de mana e terra elemental. Harkin, com reflexos aguçados, desviou com facilidade.

“Simples demais. Por isso o Império tá em decadência.”

Os golpes começaram a vir em sequência, cada vez mais complexos. Julian passou a lutar como um verdadeiro combatente, e Harkin notou que ele estava começando a levar a luta a sério.

Quando os ataques ficaram mais difíceis de desviar, Harkin adotou uma postura defensiva. Ele aparava o que não valia a pena desviar. A luta se arrastou por alguns minutos com socos, chutes e pequenos feitiços, mas Harkin apenas se defendia ou evitava com eficiência.

Julian recuou e pensou:

“O moleque não é só papo. Melhor levar isso a sério.”

Foi então que ele percebeu: enquanto estava ofegante, Harkin sequer parecia aquecido — exibia apenas tédio.

— Vamos ver se você continua com essa cara depois que eu acabar com você.

“Dane-se isso. Não vou mais tratá-lo como um garoto. Ele é formidável. Tá na hora de apelar.”

Ballistari invocou seu arco. Um pequeno ritual trouxe a arma e a aljava. Sua mana explodiu, atingindo o ápice. O ar ficou denso. Se não fossem as barreiras de proteção em volta da arquibancada, o público mais frágil teria sentido a gravidade aumentar.

— Então é isso? Você é arqueiro? Tá tentando me pressionar com mana? Por que todo mundo acha que isso vai funcionar? — zombou Harkin.

— Você vai ver se vai funcionar.

Julian sacou uma flecha e concentrou toda sua mana nela. A ponta girava em espiral, criando uma tensão no ar. Quando soltou, o disparo virou uma cruz de luz, rápida demais para olhos comuns.

Mas Harkin via claramente. Num milissegundo, sua mente acelerou. Ele calculou o impacto:

“Essa barreira não vai aguentar. Se eu desviar, vai atingir a arquibancada… foda-se. Tava querendo testar a Arkan mesmo.”

Ele se firmou, preparando-se. O ataque tinha uma mana explosiva. Usaria sua Convergência para absorver o máximo e direcionar o restante à barreira.

O impacto foi uma explosão de luz. Sua prótese brilhou — canais de mana artificiais se integraram ao seu corpo. Ele absorveu a energia até o limite, e o restante foi redirecionado. Reduziu em 50%, mas isso ainda foi demais. A barreira se estilhaçou, e parte do impacto quase atingiu o público.

“Chega. Isso foi longe demais.”

— Você não pensou no que aconteceria se eu tivesse desviado? A barreira não foi feita pra esse tipo de ataque. Sua sede de aprovação te cegou, professor Ballistari.

— Você devia agradecer por ter redirecionado. E por não ter saído como deveria.

Julian sacou outra flecha.

— Mas agora nada vai interferir.

— Idiotas como você só aprendem da pior forma.

Os olhos de Harkin brilharam. Julian sentiu a pressão aumentar no coliseu. Harkin havia parado de se conter.

Sirenes soaram. Ele decidiu mostrar quem realmente era.

— Eu poderia desviar de mil flechas suas. Prolongar isso até você entender que não passa de teatro. Mas é melhor dar minha primeira aula agora. Os alunos precisam entender: a primeira guerra neste mundo é não subestimar quem está diante de você.

Como um raio, Harkin rabiscou o chão da arena. Um golpe no estômago de Julian o entortou. Tentou reagir, mas não era rápido o bastante. Foi atingido por uma sequência de socos.

Desesperado, condensou uma barreira que o arremessou para longe.

— Primeiro movimento inteligente que você fez. Pena que já é tarde demais, Julian.

— CALA A BOCA, SEU FILHO DA PUTA!

Julian lançou o arco de lado e concentrou toda sua energia no punho. O ataque estava descontrolado. Sem barreiras, podia matar alguém.

— Evitar essa merda é melhor pra todos.

Acima de Harkin, surgiu um círculo mágico. As 8192 variações da forja começaram a se sobrepor, absorvendo a mana de Julian e até a energia natural do ambiente.

Nem os professores entendiam o que viam. Um dos oficiais se levantou e tocou o ombro de Gordon:

— Vai se importar se eu interferir?

Gordon olhou para ele e balançou a cabeça, permitindo a ação.

Dentro do ringue, Julian estava em choque. Sua mana era sugada.

— Que bruxaria é essa!?

— Eu sou mago, seu otário. Esperava o quê, um buquê de flores?

— Você colocou pessoas em risco. Agora vai receber na mesma moeda.

O círculo condensou toda a energia em um cajado de mana pura. Harkin sumiu no ar e apareceu acima de Julian, pronto para o golpe final.

— Você fez isso com você mesmo.

Ele anunciou:

— Dies Irae.

O golpe destruiu o chão. Não houve explosão. Apenas força bruta — uma onda de choque que derrubou os despreparados nas arquibancadas.

Mas... Julian não foi atingido.

Diante dele, um homem de armadura vermelha com detalhes pretos o protegia. Tinha cerca de vinte e poucos anos, pele bronzeada, cabelo vermelho e olhos vermelho-rubro. Em seu ombro, um pequeno Yhawari.

 “Quem caralhos é esse? Ele segurou aquilo com a mão?”

O único pedaço do chão intacto era o que estava sob Julian e o homem. O impacto havia sido completamente absorvido.

— Acho que já deu pra entender quem ganhou. Melhor eu ter interferido do que você ter aleijado o Julian — disse o homem.

Todos os que estavam acordados reconheceram a armadura. Menos Harkin.

— E quem diabos é você?

O homem riu e se postou com formalidade militar.

— Erik Von Ritter. Ou como me conhecem fora da minha pátria: Der Blutfalken, ao seu dispor.

O coliseu ficou em silêncio. Primeiro pela derrota de Julian, um major respeitado, diante de um jovem desconhecido. Depois, pela aparição inesperada de um dos generais lendários do Império. O nome de Harkin ecoava em murmúrios incrédulos, mas a surpresa maior ainda era a presença de Der Blutfalken em carne e osso — um peso que mudava completamente o rumo da batalha e da academia.

O coliseu permaneceu em silêncio por segundos que pareceram longos demais — até que, como se a tensão precisasse de uma válvula, uma voz estridente estourou das arquibancadas:

— PUTA QUE PARIU, O PROFESSOR NOVO EMPURROU O SALAME NO MESTRE JULIAN!

O comentário espalhou risos nervosos e caras de espanto. Quem ainda recobrava a consciência mirava a cratera no chão. O burburinho cresceu em ondas pela arena e pelos camarotes do alto escalão.

— Arf… — Gordon suspirou, cansado. — Esse moleque me dá mais trabalho que a Camila e o Pietro juntos. Se bem que, dessa vez, a culpa não é dele.

Atrás dele, nobres cochichavam:

— Você viu isso? Ballistari perdeu. Não é o mais poderoso, mas vencer um major, em público… é um feito e tanto.

— E com a vitória reconhecida por Der Blutfalke… se alguém apostou no garoto, ficou rico.

Mais ao fundo, políticos mais reclusos conspiravam em voz baixa:

— Precisamos dele do nosso lado. Vai ser uma força reconhecida nos próximos dias. Ter mais um coronel a nosso favor nos daria o que precisamos.

— Ele não é coronel — retrucou outro —, mas está no nível de um. Melhor ainda.

Fiör se aproximou de Gordon, ouvindo de longe.

— Ratos — murmurou, com desprezo. Depois, ao superior: — Seu irmão atrai atenção onde quer que vá, pelo visto.

— Como descobriu? — perguntou Gordon, frio.

— Vi Vossa Alteza indo até a casa do rapaz. Somado às outras excentricidades em volta dele, só havia duas hipóteses: ou isso… ou Nerio ganhou mais força do que seu pai — o que, convenhamos, é humanamente impossível.

— Ótima dedução.

— Qual é o plano?

— O mesmo de antes. Julian procurou isso. Agora vai ter de lidar com as consequências.

— Vai puni-lo?

— Velho amigo, mais punição do que ser derrotado por um fedelho na frente dos próprios alunos e de meia capital?

— Faz sentido.

De volta ao ringue, Harkin mirou o general à sua frente. Uma ideia lampejou:

“E se…? Não. Ainda não aguento um general. Eu sobreviveria, mas não dá pra encarar… e se eu só tentar?”

Erik, como se lesse seus pensamentos, baixou a mão com que aparara o golpe e respondeu curto:

— Nem pense. Não quero dor de cabeça com seu pai e sua mãe se eu te matar sem querer. Me ouve: abaixa a bola e espera o momento certo.

— O quê?

— Eu sentiria a tua vontade de testar força a um quilômetro. Então me ouve e nem tenta.

Julian, desconfortável, olhou confuso para Blutfalke:

— Milorde, por que interferiu? E… quem é o pai do garoto?

— Porque devo essa ao seu pai. Ele me ajudou no passado. E não pergunte mais do que pode saber. Saia daqui e aceite a derrota.

As veias no pescoço e na testa de Julian saltaram como cordas, mas ele sabia que desrespeitar um general seria estupidez.

— Sim, senhor. Obrigado por intervir. — Virou-se e seguiu para a saída.

— Não tão fácil — provocou Harkin, alto o bastante para ecoar: — Aí, Zé ruela! Da próxima vez, tenta se virar sozinho! Não é todo dia que eu posso dar um pau em quem se acha e não é porra nenhuma!

Julian quase voltou, detido apenas pelo olhar frio de Erik e um leve balançar de cabeça.

— Eu vou te pegar, moleque. Talvez não agora… mas eu não vou esquecer. — Sumiu pelas aberturas do coliseu.

Hagenvogel lançou um olhar de canto para Harkin:

— Precisava disso, jovem? Humanos têm um temperamento desagradável.

Muitos recuam ao ouvir uma besta mágica falar do nada. Harkin, não.

— Claro. Bom mesmo é o seu temperamento. Me diz: qual é a sensação de dilacerar um exército inteiro só porque eles não concordavam com o Império?

— Como é que é? — perguntaram Erik e o Yhawari, em uníssono.

— Não me venham com essa. Eu seria um idiota se não conhecesse Hagenvogel, a maior montaria que já existiu. Décadas — séculos — suprimindo rebeliões e patrulhando os céus não passam despercebidos.

— Nós cumprimos nossos deveres — retrucou Erik. — E você acha que pode nos julgar quando conduziu um massacre por vingança?

— Não, senhor “besta mais poderosa”. Aí que mora a diferença. — Harkin tirou um cigarro das vestes, tragou e o acendeu com um sopro de mana, soltando a fumaça para o alto. — Eu não julguei vocês. Vocês me julgaram. E você acha que Julian, ou qualquer outro, teria empatia comigo?

— Sabemos que não — disse Erik. — Mas você já deu a ele o que merecia. Precisava enfiar o pé na jaca? Ele é um professor respeitado. Torná-lo seu inimigo, humilhando-o, não vai fazer os alunos te respeitarem mais.

— Ele e os outros que se fodam com o “respeito”. E agradeça por você ter aparecido, senhor Von Ritter. Sem isso, eu tinha projetado para ele ficar uns bons três meses no hospital.

— Pra quê? Qual a finalidade?

— O idiota colocou a plateia em risco por causa do ego. Quer questionar alguém, questiona ele. Eu já fiz o que tinha que fazer. Com licença.

Num salto, Harkin foi ao topo do coliseu, onde os seus o aguardavam.

— Você é um monstro escondido. Por que sempre agiu daquele jeito, se podia acabar com tudo num estalar de dedos? — disparou Okini, referindo-se aos dias anteriores — e às vezes em que o azucrinei durante a viagem de Nerio ao Império.

— Isso é jeito de falar com o seu tio? — ele devolveu, só pra quebrar a tensão.

— Quê?!

— “Tio”, vai… — Harkin deu de ombros, sarcástico. — Me trata com respeito.

— Para de falar merda e responde a menina, Harkin — cortou Gabriela. A bronca teria sido mais eficiente sem o sorrisinho de quem, no fundo, gostou de ver normalidade.

— Pro caralho com essa história de tio, eu sou mais velha que você — rosnou Okini.

— Por longos dois anos e meio… uau, amiga! — Serafina entrou na brincadeira.

— Tecnicamente o Harkin é mais velho que todos nós juntos — observou Pietro, seco.

— FODA-SE! — gritou Okini, deixando sair a raiva que misturava medo e alívio.

Harkin começou a rir, e quando os olhares vizinhos começaram a pesar sobre o grupo, ele apontou para os curiosos:

— Por causa deles. As pessoas tentam te usar de todas as formas possíveis. A maioria das relações humanas — e, em alguns casos, cem por cento delas — se baseia na comodidade do que o outro tem a oferecer. Quem tem mais poder pesca primeiro no pote de benefícios. Eu prefiro não usar o meu antes de conhecer quem está tentando me usar… pra usar melhor depois.

Ninguém esperava tamanha sinceridade. Até Pietro — seu melhor amigo — ainda engolia revelações. Em silêncio, o pequeno círculo seguiu Harkin para fora.

No chão da arena, Hagenvogel sussurrou:

— Você queria ver o garoto. E então? Qual a sua opinião?

— Você é um péssimo moralista, sabia? — retrucou Erik, sem humor.

— Fiz a minha parte, Erik. O menino está certo. Por que diabos eu o julgaria quando está fazendo o melhor pra ele? Esse teu teatro sobre moral é uma lástima.

— Eu tinha que testar se ele teria coragem. E tem — de sobra. Seria um bom candidato.

— De fato. A questão é: esse orgulho deixaria ele te aceitar como mestre?

— Veremos. Dessa vez eu vou ganhar do velho monstro.

— A tua disputa idiota com o Kaius chega a ser entediante.

— Procurei por séculos. Agora achei. Aquele velho não vai pegar esse. E, depois que eu treinar o garoto, nem a Leona vai aguentar. — Um sorriso curto. — Hehe.

— Idiotas — resmungou o Yhawari.

Na saída, a notícia corria como fogo por Eld

ravel: um professor recém-chegado esmagara Julian — e Der Blutfalken aparecera no coliseu para segurar o golpe final. Não era só a derrota que assustava. Era o que ela revelava: que um nome desconhecido podia quebrar um major… e obrigar uma lenda do Império a descer até a arena.

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