Volume 2
Capítulo 14: Revelação
Jeanne tomou um gole de chá, observando cada rosto na sala antes de pousar o olhar em Harkin.
— Talvez seja melhor se conversarmos a sós — disse, com um sorriso suave, mas carregado de intenção.
— Não se preocupe, milady, eu confio em todos aqui. Podemos falar abertamente — respondeu Harkin, recostando-se no sofá.
O silêncio que se seguiu não foi de constrangimento, mas de expectativa. Jeanne manteve o sorriso, mas seus olhos — frios e calculistas — mediram a firmeza dele.
— Como quiser. — Ela ajeitou a postura. — Eu sei o que Eiden me contou… mas, francamente, não é o suficiente. Então, por que você não me conta mais sobre você?
Harkin inclinou a cabeça, desconfiado.
— E o que exatamente ele te disse?
— Além das coisas terríveis pelas quais você passou, entramos no assunto da sua concepção.
Um leve murmúrio percorreu a sala, mas ninguém ousou interromper.
— Que sua vinda ao mundo não foi planejada — continuou Jeanne, apoiando a xícara no pires — e que as circunstâncias eram definitivamente anormais.
Harkin tentou se manter sereno, mas o suspiro que soltou foi suficiente para que Gabriela, que o conhecia melhor que ninguém, percebesse que a história não seria simples nem fácil de ouvir.
— Ok… o que vossa alteza sabe que nem mesmo eu sei? — perguntou ela.
— Acredito que isso não seja muito sobre o que sei, e sim sobre o que seu irmão pode e quer falar. Afinal de contas, estou aqui porque também quero entender melhor o que aconteceu. O que me surpreende é você questionar o que sei.
"Gab só sabe o básico. Eu vou ter que falar disso mais cedo ou mais tarde com todo mundo, de qualquer forma."
— Ela só sabe o que meus pais contaram a ela — disse Harkin após concluir o raciocínio — basicamente, que estavam caçando e me encontraram na floresta.
— E tem mais do que isso? — Gabriela o confrontou.
— Se o pai biológico dele não for um mentiroso, tem muito mais. — Jeanne interrompeu. — Diga-me, Harkin, seu pai mentiu sobre alguma coisa?
Um longo suspiro depois, ele simplesmente se levantou, foi até a adega, pegou um copo e serviu Uischaim. Antes de dar um gole, ouviu:
— Uhrum! — Serafina pigarreou alto, encarando-o.
— O que foi?
— Pensei que não ia beber.
— Eu não ia, mas não estava esperando a minha madrasta — ou boadrasta — aparecer do nada e questionar algo que eu odeio conversar abertamente. Então, já que não posso acender meu cigarro, a próxima opção “saudável” é o álcool.
— Engraçadinho… bebê logo sua bebida e responde à droga da pergunta, Psico. — Gabriela se intrometeu, sem pensar, claramente estressada por estar sendo deixada de fora.
— O velho é um filho da puta arrogante, narcisista e egocêntrico.
— Dá pra ver a semelhança entre pai e filho. — Gabriela rebateu.
A resposta dela foi tão inusitada que fez as bochechas de Harkin corarem levemente.
— Enfim… como eu estava dizendo antes dos comentários valiosos da minha irmã — ele deu ênfase às palavras — ele é tudo isso, mas não é mentiroso.
— Muito nobre de sua parte falar isso quando você mal o conhece.
— Não é preciso tempo pra conhecer uma pessoa, vossa alteza, ainda mais quando ela já entrou na sua cabeça.
Okini ouviu Harkin e, com um leve impulso de raiva, rebateu:
— Ele leu suas memórias, não o contrário.
A reação dela foi repentina — menos para Sera e Jeanne, que sabiam que ela ficaria irritada com alguém que criticasse tanto seu avô.
— Graças aos céus que não. — Harkin se sentou novamente com o copo na mão. Serafina, brava com ele, se afastou um pouco. Ele percebeu, mas não falou nada.
— De qualquer forma, ele entrou na minha mente. E, bem… é a minha mente. Meio que se cria uma espécie de laço quando isso acontece, e pode-se dizer que eu ganhei um entendimento melhor sobre o velho.
— Humph! — Okini bufou como uma criança e cruzou os braços.
— Velhos hábitos nunca morrem, minha neta. — A imperatriz riu, olhando para ela.
Um momento breve de leveza tomou conta da sala, até Pietro se levantar, pegar um copo igual ao de Harkin e encará-lo por alguns segundos.
"Vou pegar a garrafa logo?"
Levando a garrafa e se sentando de volta, deu um grande gole.
— Nossa família virou um antro de alcoólatras? — Okini, ainda brava, aproveitou para descarregar um pouco de sua raiva.
— Não… mas, depois de ouvir toda essa merda que ele vai falar, você também vai precisar de uma boa dose.
— Você já sabe sobre o que se trata, meu neto?
— Infelizmente, sim.
— E você acredita?
— Todos os fatos apontam que é verdade. A senhora acha mesmo que o vovô te trairia?
— NÃO! — A voz elevada dela alertou um pouco os outros. As mãos apertaram uma à outra discretamente. — Seu avô nunca me trairia… mas ainda é uma história absurda.
— Tá… se todo mundo já acabou com o drama, dá pra explicar o que tá acontecendo? — Gabriela interrompeu, enquanto Adrien apoiava a mão em seu ombro como apoio.
Jeff se levantou e foi em direção à porta.
— Vou fumar. Já sei dessa história e não preciso ouvi-la de novo. Vou dar uma volta. Depois eu retorno.
— Ok. — A resposta de Harkin foi seca. Ele observou enquanto seu “secretário” desaparecia na luz da rua.
— Bem, como vocês já devem saber a essa altura, meu progenitor é o imperador Eiden Visra Empera. E minha progenitora, a rainha de Nerio, Morgana et Abrasax.
— E… — Gabriela falou — qual a novidade?
— Que, pra maioria das pessoas, tal concepção, considerando a minha idade, seria biologicamente impossível… a menos que tivesse rolado uma pulada de cerca.
Serafina, assim como os outros, olhava fixamente para ele, sem piscar.
— Pra maioria das pessoas? Pra eles não é traição?
— É, só que meu vô e a mãe dele não são como a maioria das pessoas — respondeu Pietro.
— Exatamente. Ambos são transcendentais. Basicamente, eles ultrapassaram todas as limitações humanas.
— Já sabemos o que é um transcendental — Okini rebateu.
— Nota 10 pra vocês então. Agora vão me deixar explicar ou não?
Como ninguém falou nada, ele continuou:
— Ótimo. Bem, seres transcendentais têm diferenças genéticas em relação a humanos comuns. Em outras palavras, são versões aprimoradas da humanidade — falando apenas de genética.
Ele se ajustou no sofá.
— O problema é que, no caso do velho, a coisa é mais séria. E antes que alguém me interrompa novamente — ele olhou diretamente para Okini — é uma questão biológica. Velho e Velha se encontraram, foram pra caverna… e meses depois, um bebê veio ao mundo. O problema é que o papai não segue a estrutura biológica “normal”.
— Quê? — As garotas na sala disseram em uníssono.
— Agora que vocês têm uma pequena noção… Aproximadamente entre 900 e 1.000 anos atrás, os dois tinham um relacionamento. Vocês sabem o que rola entre um casal. Na época, Eiden era de certa forma despreocupado, e ainda não existia um império para ser governado. Ele basicamente ajudou minha mãe a se tornar rainha, e nesse meio tempo ela ficou grávida.
Ele deu um gole no copo.
— Precisava molhar o bico — e continuou — Bem, essa foi a época em que fui concebido. Sei que não faz muito sentido, já que vou fazer 20 anos… mas foi o que aconteceu. Durante a gestação, tudo ocorreu como qualquer outra, só que com muita infusão de mana. Segundo minha mãe, eu era um buraco negro sem fim. E quando chegou o momento do nascimento… a grande surpresa rolou.
— Que grande surpresa? Fala de uma vez! — Gabriela explodiu.
— Tô dando contexto, porra. — Ele rebateu, jogando as mãos pro alto e pegando o copo novamente. — Onde eu tava?
— Grande surpresa — Adrien respondeu.
— Ah, é. Bem… no parto, eu nasci. Mas não como uma criança normal. Saiu literalmente um ovo de dentro da minha mãe.
A fala dele deixou todos — menos Pietro e Jeanne — de boca aberta.
— Não é brincadeira. Os dois fizeram testes, experimentos, tentando entender o que estava acontecendo. O grande ancião de Glaëndir veio para investigar. Depois de dois ou três anos de pesquisas, todos chegaram à conclusão de que um dos dois não era humano. Fizeram mais testes. Concluíram que Eiden era idêntico aos humanos em aparência, mas geneticamente… era outra coisa.
— Mas se o vovô não é humano, ele é o quê? E, vovó, você também pariu ovos?
— Não. — Jeanne respondeu seca, encarando Okini. — Isso foi um fenômeno exclusivo da Morg.
— Morg?
— A Rainha Vermelha. Bruxa Escarlate. Ou o que vocês quiserem chamar. — Esbravejou a imperatriz.
— Bem… — Harkin voltou a falar após notar a paciência da imperatriz se esgotando — o velho não tinha genes compatíveis com nenhuma espécie catalogada por Glaëndir. Mas seu código genético possuía uma pequena fração do que pareciam ser cópias de DNA dracônico.
— Pera… isso tá indo longe demais.
— É verdade. Eu mesmo testei nosso sangue depois que ele me contou — Pietro acrescentou.
— Bem, no seu caso você é 100% humana. Mas no meu, e no dos seus outros primos, temos uma parte de DNA humano, outra dracônica e uma fração desconhecida, irreconhecível por magia ou ciência atual.
— Bem isso mesmo — Harkin completou. — Enfim… depois disso, começaram a investigar o ovo. Nos primeiros dois anos, segundo minha mãe, o ovo absorvia grandes quantidades de mana. No terceiro, isso foi diminuindo… até parar.
— Ué, o que aconteceu? — Serafina perguntou, momentaneamente esquecendo a raiva.
— Segundo todos os envolvidos… eu estava morto. Isso aparentemente foi o que causou a separação dos dois. Mas antes disso, construíram um túmulo na Floresta do Fim, nas bordas de Sinnomun, e colocaram o ovo lá. O que ninguém esperava era que, séculos depois, meus pais — Kian e Beatrice — encontrariam essa tumba tomada pelo tempo… e, por curiosidade, entrariam.
— Nossa… isso tá indo muito, muito longe — disse Gabriela, bebendo mais um gole.
— Pois é. Imagina descobrir isso através de memórias seladas em antigos diários pelos seus pais. — Outro gole. — Bem, segundo eles, encontraram o ovo emitindo um brilho roxo. Minha mãe, destemida como era, se aproximou e o tocou. A luz desapareceu, e ela sentiu mana pela primeira vez. Meu pai, que assistia tudo, relatou que por um segundo ela e o ovo desapareceram.
— E quando ela reapareceu… ela segurava uma criança nos braços. Um menino — este que vos fala — com cabelos laranja brilhantes e olhos púrpura. Quando meu pai se aproximou, meus olhos e cabelos se escureceram como os dele.
— E o resto vocês já sabem. Seja lá o que o velho for… ficou no meu DNA. Como minha mãe também não é 100% humana por causa da transcendência, o resultado foi isso. Diferente dos meus outros irmãos, tenho uma parte de DNA humano… e todo o resto é irrastreável.
O silêncio caiu pesado. Pietro cruzou os braços, como se tentasse conter algo que não queria dizer. Serafina desviou o olhar para a xícara, apertando-a com força. Gabriela e okini mantiveram os olhos fixos em Jeanne e Harkin, como se buscassem confirmar cada palavra. Até Adrien, sempre calmo, ergueu uma sobrancelha — não por dúvida, mas pela dimensão do que ouvia.
— Puta merda. — Okini se levantou e pegou a garrafa da mão de Pietro.
— Ei! Devolve! Você não tava reclamando que a gente tava virando alcoólatra?
Alguns goles generosos depois:
— Ah… ok. Eu te julguei Pi, desculpa. Agora eu entendo o que você quis dizer.
— Ninguém aqui duvida dessa história? — Serafina perguntou, perplexa.
— Sinceramente, de um jeito esquisito… faz sentido. O fato de o imperador ser absurdamente velho e não envelhecer nem um pouco… o poder dele. Tudo isso nunca foi registrado no mundo antes. E, bem… as pessoas começaram a viver mais depois que ele conduziu o império — disse Jeanne, servindo-se de outra xícara de chá.
— Mas a senhora não tava desconfiada até agora há pouco?
— Eu desconfiei que Harkin tivesse sido escondido esse tempo todo por Eiden. Mas não dele. Se eu não tivesse esse mínimo de confiança no meu marido, não estaríamos juntos há meio milênio. Achei que ele tivesse escondido o Harkin para usá-lo em alguma disputa de poder… vocês ficariam impressionados com a paciência dele.
— Ser imortal tem seus benefícios — Harkin comentou. — Enfim… esse é meu último grande segredo.
Ele se virou para Serafina, Okini e Pietro.
— Agora vocês sabem tudo o que dá pra saber. Não tenho mais nada pra esconder sobre mim. Vou tomar um banho e colocar uma roupa decente. Quando eu voltar, espero que já tenham se decidido sobre o que querem.
— Eu não vou pra lugar nenhum. Mas nós vamos conversar — respondeu Sera.
— E eu literalmente já sabia dessa merda, então vai logo se lavar que tu tá fedendo.
— Se fude, Pietro. — O jovem cansado lhe mostrou o dedo, virou-se para a imperatriz, fez um gesto formal. — Com sua licença, milady. Ele tá falando merda, mas eu preciso de um banho.
Ela sorriu para ele e fez um gesto com a mão, como quem diz: “Vai logo.” Seu olhar pacífico dizia claramente: não se preocupe com mais nada.
Depois que ele subiu as escadas em busca de seus aposentos, a neta dela a olhou firme.
— Quem mais sabe disso?
— Acredito que, com exceção de Armim, todo mundo.
— Bom saber que eu não fui a única deixada de fora.
— Não se engane, pequena. Se fosse por mim, vocês ficariam alheios a tudo. É muita informação. Mas Solomon julgou que seria justo contar às suas crianças. E acredito que Dominus descobriu pela boca do Pietro.
— Não. O moleque ouviu eu conversando com o papai meses atrás. E, depois disso, jurou manter segredo.
— Até o Dominus sabia e eu não?
— Do que você tá reclamando? Eu basicamente criei o Harkin… e também não sabia de nada até agora.
A fala de Gabriela calou qualquer possível discussão que surgiria.
— Bem, vamos deixar aquele psicopata de lado. Por que não aproveitamos pra nos conhecer melhor? Pietro e vossa alteza eu já conheço há alguns anos. Agora vocês duas são novidade: Okini e Sera, certo?
E, como se uma bomba não tivesse acabado de explodir na sala, Gabriela forçou sutilmente a conversa a seguir outro rumo. Jeanne entrou no jogo e começou a conversar. Pietro, vendo que aquilo ia se prolongar, chamou Adrien de canto:
— Vem. Deixa elas conversando. Vamos atrás do Jeff. Com o Harkin aqui, ninguém machuca a Gabi.
Adrien hesitou por alguns segundos, até que Gabriela lhe deu um beijo e disse:
— Vai. Você sabe que, com ele por perto, vai tá tudo certo.
Com um pequeno empurrão da amada, os dois saíram pela porta da sala.
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