Volume 2
Capítulo 44: Conexões. A luz e o despertar
Eduardh ergueu o arco num movimento fluido e instintivo. Os músculos, ainda tensos da explosão de raiva anterior, agora canalizavam toda a atenção com precisão aguçada. Uma flecha surgiu entre seus dedos, conjurada no ar, reluzindo brevemente sob a luz turva que filtrava por entre os galhos espessos. O elfo avançava com passos leves e silenciosos, como se a própria floresta pudesse denunciá-lo ao menor estalo de graveto.
O vento sibilava em giros erráticos, arrastando consigo folhas meio secas e úmidas da região onde a neve começava a se dissolver. Um som peculiar emergia dali, semelhante ao amassar de dezenas de folhas de papel encharcado entre as mãos, denso, úmido e irregular. Aquilo não era um ruído natural. Não era o movimento de uma presa fugindo, nem o farfalhar inocente de galhos ao vento. Era algo que se deixava perceber, mas sem se entregar por completo.
“Está me testando?” pensou o elfo, os olhos semicerrados à frente.
Ele se recordava bem das armadilhas que havia espalhado ao redor. Estavam posicionadas com precisão, cada uma para capturar pequenos animais, lebres, talvez uma raposa mais ousada. Mas o som que ouvia não vinha de nenhuma delas. Aquilo era mais denso. Mais intencional.
Eduardh, então, aproximou-se do encontro entre os dois rochedos. De longe, pareciam apenas blocos empilhados por eras. Mas, conforme a luz mágica de seu cristal de mana se espalhava, algo se revelava entre as fendas escuras. Não eram pedras. Ou não somente.
— Cascas?
Fragmentos enormes de cascas, com uma estrutura quebradiça, estavam encrustados no rochedo como se tivessem sido engolidos pela montanha e, agora, lentamente regurgitados pelo tempo. Eram negras, irregulares, brilhantes como pedras preciosas polidas e, embora petrificadas, ainda exalavam algo primitivo. Algumas estavam parcialmente soterradas, outras quebradas ao meio, revelando um interior oco e esbranquiçado, semelhante a ossos fossilizados.
“Isso claramente não deveria estar aqui...”
A percepção era cortante. A distorção da mana estava rompendo as barreiras entre o possível e o impossível. Essas cascas, não importava o quanto parecessem inertes, carregavam um pressentimento. O ar ali era mais denso, mais frio. A mana parecia oscilar ao redor daquele espaço.
— Grynha! — Um som surgiu.
Agudo. Estranho. Quebrado. A flecha já estava pronta, apontada para a direção exata do ruído. Eduardh mantinha os olhos fixos na sombra espremida entre duas das maiores cascas rachadas, onde algo minúsculo e escuro tremia. Seus dedos pressionavam a corda do arco, mas ele não disparou. Não sentia ameaça. Nada pulsava naquela direção com a intenção de ferir. Só medo. Medo puro e contido, com uma leve mistura de curiosidade.
Ele semicerrou os olhos, arqueando uma das sobrancelhas. Entre os fragmentos quebrados e a sombra projetada pelas rochas, uma criaturinha se encolhia. Tremia, prensando os olhos com tanta força que mal se percebia seu contorno. Como se acreditasse que, ao não ver, também não seria vista.
Eduardh baixou lentamente o arco, fazendo a flecha desaparecer em uma luz tênue. O suspiro que escapou de seus lábios trouxe alívio, embora seus batimentos ainda pulsassem forte no peito. O frio do oeste de Mizuyr ardia em seus pulmões a cada respiração, mas, aos poucos, ele se estabilizou. Um passo adiante. Depois outro.
— Vamos, saia daí. — Sua voz foi baixa, firme, mas não agressiva.
Elfos, por natureza, tinham um dom antigo para entender criaturas vivas. Não só com palavras, mas com a própria alma. E o que ele sentia agora, não era a presença de uma presa. Era algo diferente.
A criatura se encolheu por um instante, depois avançou, hesitante. A luz do cristal mágico de Eduardh revelou um vulto do tamanho de um coelho gordo. Um passo mais perto, e a criatura finalmente emergiu da sombra, projetando sobre o chão úmido a forma distorcida de um corpo ainda parcialmente coberto por fragmentos de cascas negras.
— Mas o quê?! — Eduardh caiu sentado com os olhos arregalados em descrença.
À sua frente, com escamas que brilhavam como obsidiana, estava um filhote de dragão. Seus olhos dourados o observavam com intensidade, ao mesmo tempo que tremiam e cintilavam sob a luz fraca da lua. Nas laterais do crânio, pequenas protuberâncias reluzentes se alongavam e outras iam em direção às costas, como delicados chifres de ouro. O brilho dourado também cobria o interior translúcido das asas minúsculas e algumas manchas circulares que pontilhavam seu dorso e pescoço.

A criatura soltou um ronronado rouco, mais felino que reptiliano. Seu corpo se movia de modo reboloso, arrastando-se como uma serpente curiosa, até se aproximar de Eduardh. Este, ainda incrédulo, estendeu uma mão hesitante.
— Filho da...! — murmurou, franzindo o cenho e balançando o dedo mordido.
O elfo levou o dedo à boca, surpreso mais do que machucado, enquanto observava o pequeno dragão se aninhar entre suas pernas. A criatura lambia os beiços com uma língua avermelhada e áspera, como se tivesse acabado de provar algo raro. E então, aconteceu.
A marca mágica na mão de Eduardh começou a brilhar. Era um calor profundo, interno, diferente de qualquer magia que ele já havia sentido. Um som leve, semelhante ao crepitar de chamas contidas, ecoou ao redor deles. A luz dançava na palma de sua mão, subindo pelos dedos em fios dourados que pulsavam no mesmo ritmo da respiração da criatura.
Uma espécie de vínculo havia se formado. Um elo inesperado, estranho, talvez perigoso, mas inegavelmente poderoso. Eduardh sentiu. Algo se entrelaçava dentro dele, e não era apenas magia.
“Será mesmo que o destino...” Eduardh tentava encontrar uma explicação para o que havia acabado de acontecer.
O pequeno dragão ronronou novamente e se aconchegou ainda mais, como se estivesse onde sempre deveria ter estado. A floresta ao redor, antes tensa, parecia agora observar em silêncio. Como se respeitasse ou temesse o que havia acabado de surgir ali.
Ao mesmo tempo, em que sabia estar diante de algo único, Eduardh temia as distorções profundas que aquela criatura representava. O mundo já corria o risco de se despedaçar pelas mãos dos demônios, mas isso era diferente. Parecia que a própria realidade estava sendo moldada por forças que jamais deveriam ter voltado à superfície. Ele se perguntava se ele e os demais tinham alguma parcela de culpa, se a influência da mana acumulada não teria despertado uma fábula que deveria permanecer adormecida.
“Até entre os elfos... quando alguém falava em dragões, era sempre com um sorriso debochado, um comentário cínico. Ninguém levava a sério. Dragões eram mitos. Histórias contadas para fazer crianças dormirem...”
No entanto, ali estava ele. Vivo. Respirando. E de algum modo, ligado a ele.
— Nunca imaginei que viveria para contar: vi um dragão... Tá... ele é um filhote, mas ainda assim é um dragão... — Murmurou, com um sorriso silencioso, o tipo que vem quando já não resta força para lutar contra o inevitável.
Ele hesitava. Levá-lo era uma decisão arriscada, quase insana. O grupo não tinha tempo para desvendar mais segredos milenares, e já enfrentavam ameaças suficientes para se preocuparem com uma criatura cuja essência ninguém conhecia. Ninguém podia garantir que, mesmo pequeno, ele não carregava dentro de si a semente de um cataclismo.
Mas era tarde. O vínculo estava formado. Era tão forte que Eduardh nem sequer notou que sua raiva, sua frustração com as mudanças em seu próprio corpo, haviam desaparecido. A confusão existencial que o consumia havia sido engolida por algo mais intenso. O foco havia mudado, sem esforço, como se toda sua dor fosse agora apenas um eco distante.
— Tenho que voltar... logo vão achar que aconteceu algo... — disse baixo, franzindo o cenho ao olhar para a criatura em seu ombro. — É... e não estariam tão errados assim...
No abrigo, a tensão era palpável. Lenna caminhava de um lado para o outro, próxima à entrada das ruínas, como se cada segundo sem sinal do elfo puxasse o ar dos seus pulmões.
— Relaxa, Lenna...
— Pelos deuses, Vlad! Você me mata do coração! Pra que chegar de mansinho assim?
— Eu? — respondeu o guerreiro, com um sorriso debochado. — Já é a terceira vez que você vem aqui ver se ele voltou... Nem percebeu quem podia estar te observando, de tão distraída.
— Claro que eu te vi... — respondeu quase automaticamente, ainda com os olhos perdidos na mata.
— Certeza?
Ele avançou um passo, entrando na frente dela de forma sutil, mas proposital. O peitoral largo bloqueou completamente sua visão, o que a fez bufar e cruzar os braços, emburrada.
— Acho que ele ficou chateado comigo... — percebendo que não lhe restava outra escolha, ela desabafou.
— Por causa do negócio da barba?
— Não... — interrompeu, suspirando. — Ele não fala sobre si, nem sobre a própria família. E quando finalmente se abriu, eu... eu fui e comentei aquilo em voz alta. Algo que ele me confiou. Fui descuidada.
— Duvido muito que ele tenha se chateado por algo tão besta. Você se preocupa demais com todos... menos com você mesma. — A voz dele soou mais suave. — Vamos. Você precisa entrar, está congelando.
Vladmyr deu meio passo, mas sua frase se perdeu quando Lenna o abraçou com força. Ele sentiu o toque da pele dela, macia e levemente avermelhada pelo frio. O coração disparou, e as palavras sumiram.
— Tenho medo de estragar tudo... de afastar vocês de mim... — as lágrimas escorriam livres agora, manchando o tecido da roupa dele.
— Lenna... eu...
Ele a envolveu com mais firmeza, afagando suas costas e secando o rosto dela com a ponta dos dedos.
— Ainda não me lembro de tudo, mas agora sei a verdade por trás da guerra. Sei que sua raça não teve culpa.
Ele fez uma pausa, os olhos presos nos dela.
— Acredito que, em breve, todos também vão enxergar a verdade por trás da mentira que foi plantada e repetida por tanto tempo. As coisas vão se resolver... e as pessoas vão se aproximar de você pelo que você realmente é. Você me fez enxergar o mundo de outra forma. Arriscou a própria vida por mim. Por isso... pode ter certeza de uma coisa: vou estar ao seu lado sempre que precisar.
Ela fungou, tentando conter o choro, e riu baixinho, com um sorriso tímido e entrecortado.
— Você mudou tanto, Vlad... — Ela enxugava as lágrimas com o punho da blusa, enquanto o observava com uma doçura rara.
Por um instante, o mundo silenciou. Vladmyr via apenas Lenna, seus olhos presos nela com uma intensidade que apagava tudo ao redor. Seus braços a envolveram com ternura, enquanto o coração acelerado contrastava com a calma daquele momento. Com cuidado, ele levou os dedos à nuca dela, puxando-a para mais perto. Os rostos se aproximaram, o calor da respiração misturando-se no espaço entre eles. Lenna não recuou; ao contrário, desviou o olhar brevemente para os lábios entreabertos dele. Quando seus lábios se tocaram, tímidos e carregados de tensão, ela fechou os olhos, entregando-se ao instante. Vladmyr se rendeu por completo: uma mão deslizou até a cintura dela, firmando o abraço, enquanto a outra segurava a nuca, conduzindo-a suavemente ao inevitável.
— Mas que merda é essa?!
A voz de Ector explodiu como um trovão, cortando o ar como uma lâmina.
— Eu queria poder dizer que posso explicar, mas... — Eduardh respondeu, o tom carregado de constrangimento, enquanto surgia por dentro da mata em direção à entrada, com o pequeno dragão já enrolado em seus cabelos, aninhando-se como se aquele fosse o lugar mais seguro do mundo.
Lenna e Vladmyr se afastaram bruscamente um do outro, o susto ainda congelado no olhar de ambos. A tensão que havia se dissipado por um momento voltou com força total.
— Tsc... mas o que o velho está aprontando agora? — Vladmyr resmungou com um longo suspiro, visivelmente incomodado.
— Vamos... — disse Lenna em voz quase apagada, ainda tentando se recompor. — Vamos ver o que está acontecendo...
Vladmyr hesitou. Cada músculo do seu corpo implorava para permanecerem ali, mas estavam à beira de uma guerra iminente. Qualquer anormalidade poderia ser um sinal de perigo.
— Ahhh... droga! Vamos! — esbravejou o guerreiro, pegando Lenna pela mão com firmeza, conduzindo-a de volta até a entrada das ruínas.
— Nossa... — Cázhor mal conseguiu terminar a frase ao se deparar com a cena enquanto se aproximava dos demais. Seus olhos se arregalaram ao observar a criatura sobre o ombro do elfo. — Isso é... inacreditável...
Eduardh apenas franziu o cenho, claramente desconfortável.
— Eu esperava que o senhor pudesse me explicar isso... — disse ele, tentando forçar um sorriso para o mago.
— Bom... — Cázhor pigarreou. — Melhor entrarmos. Todos.
Os olhos de Eduardh passeavam pelos arredores até encontrarem os dois que se aproximavam, ainda de mãos dadas. Seu olhar se fixou. Não disse nada. Mas o suspiro pesado que prendeu no peito era nítido. A expressão endureceu. Ver Lenna, ainda corada, de mãos dadas com Vladmyr, agitava algo em seu peito. Algo que ele não sabia nomear, mas que ardia.
A sensação de presenciar aquela cena trouxe a ele um desconforto incomum, algo que normalmente não o afetaria tanto. Porém, dessa vez, era como se estivesse em transe. Por um breve instante, seus olhos brilharam, refletindo uma luz prateada, semelhante aos olhos de um felino na penumbra da noite. Como se ligados por esse sentimento, o pequeno dragão reagiu imediatamente, deslizando pelo corpo do elfo e indo direto até Lenna.
A movimentação foi tão súbita que ninguém soube como reagir. Os olhos da criatura cintilavam com a mesma luz que os de Eduardh haviam revelado segundos antes. Num piscar, já escalava os cabelos escarlates da maga.
— Ai, que gracinhaaaa! Acho que... ele gostou de mim... — disse Lenna entre risos, enquanto o dragão se enrolava por seus ombros.
No entanto, o dragão não parava de encarar Vladmyr. Arreganhava a boca expondo os afiados dentes, o pequeno focinho franzido. A energia mágica ao seu redor começava a vibrar, ficando visível. Um brilho pulsante e inquieto. A criatura estava em guarda.
— Hahaha! Acho que você ganhou mais um para o seu fã clube, garoto! — Ector gargalhou, cruzando os braços.
A gargalhada do comandante foi como um estalo na mente de Eduardh. Seus olhos voltaram ao normal, e o dragão, num suspiro agudo, relaxou. Voltou a se aninhar nos cabelos de Lenna, e então pulou de volta para o elfo, acomodando-se com leveza.
— O que... o que aconteceu? — Eduardh piscou, confuso, como se os últimos minutos não tivessem existido.
Ninguém respondeu. Também, não era necessário. O silêncio foi preenchido apenas pelo som do vento lá fora, assobiando entre os escombros das antigas ruínas. Todos haviam sentido. Aquilo era real. Uma ligação profunda, estranha, talvez perigosa. Mais intensa do que qualquer um ali ousaria admitir.
Mas havia algo errado. Os olhos de Eduardh transbordavam uma frustração contida, algo que escapava, pouco a pouco, de seu controle. Estava confuso, sem compreender o peso dos olhares lançados sobre ele. A criatura em seus ombros reagia da mesma forma, absorvendo e refletindo cada sentimento, como se ambos compartilhassem algo além da magia. Como se fossem feitos da mesma essência. Ao redor, a mana oscilava de forma sutil e inquietante, se moldando à estranha anomalia que começava a se formar ali.
A dúvida, ainda não dita, se espalhava em silêncio entre o grupo. Até que ponto aquele vínculo poderia afetar Eduardh. Até que ponto ele continuaria sendo apenas ele. E o quanto suas emoções, poderiam comprometer tudo.
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