Volume 2
Capítulo 43: Um passo à frente. O novo destino
Era como se tivessem cruzado para outra realidade. Na câmara protegida, envolta pela barreira de Varbbek, o mundo parecia suspenso. Uma bolha os isolava do caos lá fora, mas os ecos da loucura ainda atravessavam, instáveis. Gritos distorcidos, o rugido colérico de Thorm e o som de explosões mágicas reverberavam como batidas de um coração distante, ora próximos como um trovão sobre a pele, ora abafados, como se o próprio espaço hesitasse em trazê-los por completo.
Do lado de dentro, no entanto, tudo parecia congelado no tempo. As paredes ainda exibiam rachaduras da batalha e da enorme explosão que quase destruiu a sede dos druidas. Mais adiante, corredores permaneciam intactos, marcando o ponto onde a guerra ainda não havia profanado. Eram estruturas preservadas da loucura que se desenrolava a poucos metros dali. Ainda assim, sabiam que essa falsa paz não duraria. A barreira permanecia firme, mas ninguém sabia por quanto tempo mais.
— Se a barreira continua de pé... quer dizer que ele ainda deve estar vivo, não é mesmo? — Lenna indagou em tom quase suplicante, como se cada palavra carregasse a esperança de uma resposta que a salvasse da dor.
— Eu não sei como funciona, Lenna. Somente segui ordens — respondeu Galgard, direto, a voz carregada pela dureza do momento. — Ele confiou a própria vida e a de nosso povo na esperança de que vocês escapassem com segurança... e encontrassem um modo de derrotar esses desgraçados. Então... é nisso que eu acredito.
O silêncio que se seguiu pesou mais do que qualquer resposta poderia trazer. Os olhares se cruzavam, vazios de certezas. Todos estavam exaustos, feridos, tanto no corpo quanto no espírito. Mas algo estranho pairava ali, entre os escombros e a neve que se acumulava no alto das janelas abertas. Mesmo cansados, um sopro de vigor os atravessava, irradiando como a brisa que dança na calmaria do olho de um furacão: tênue, mas real. Trazia um conforto inesperado em meio ao caos. Talvez fosse apenas a sensação de estarem todos reunidos e vivos. Mas não havia tempo para pensar nisso agora.
O grupo seguia atrás de Galgard, por corredores que pareciam ainda mais antigos e desconhecidos. A sede druídica era vasta, uma verdadeira fortaleza de pedra esculpida ao longo de gerações. Nenhum deles a conhecia por completo, e a sensação de se perder ali era real. O cansaço pesava nas pernas. As roupas colavam no corpo com o suor frio. O frio cortava a pele e cada respiração parecia carregar o peso da perda.
Cázhor, apesar de seu orgulho inflamado, aceitava silenciosamente o apoio firme de Vladmyr, que o segurava pelo braço sempre que os joelhos do mago ameaçavam ceder. Uma imagem incomum que deixava claro o quanto a batalha havia cobrado dele.
— Não diga nada — murmurou Cázhor, tentando manter o tom firme mesmo com a voz falha.
— Eu nem ia, senhor — respondeu Vladmyr com um meio sorriso, ajustando o passo para acompanhá-lo.
Lenna vinha logo atrás, com o rosto pálido e os olhos fixos no chão na cena à sua frente. Cázhor era sua base, sua família, vê-lo assim tão vulnerável lhe trazia dúvidas que nunca haviam passado em sua mente antes.
“Eu nunca vi ele dessa forma...” Cada passo era pesado, cada sombra à volta parecia uma ameaça. Mas, mais do que o cansaço físico, era a incerteza que a corroía.
— Não parece certo continuar sem saber se ele... ainda está... — ela sussurrou, mais para si mesma do que para alguém.
Ninguém respondeu. Talvez por não saberem o que dizer, talvez por também temerem a mesma resposta.
Quando Galgard parou diante de uma sala sem saída, os olhares se encheram de confusão. Mas antes mesmo que surgissem perguntas, ele tocou uma das pedras na parede. Um leve tremor percorreu o chão e, em silêncio, uma passagem secreta se abriu, revelando uma escadaria de pedra que descia às entranhas da montanha.
— Mas o quê... — murmurou Vladmyr, arqueando uma das sobrancelhas enquanto observava a entrada.
— O senhor Varbbek me falou sobre esse lugar. Um caminho reservado para o pior dos cenários. Ele acreditava que, se tudo desse errado, o sacrifício dele nos daria uma chance — explicou Galgard, a voz baixa, quase como um sussurro.
— Um selo antigo, de proteção extrema. “Vita ad vitam” — Concluiu Cázhor ao reconhecer alguns traços de mana que ainda flutuavam no ar.
— Ele deu a própria vida... — disse Vladmyr, com um nó na garganta.
— O que é de Gaia, volta para Gaia... Como eu disse, não sei bem como funciona. Só fiz o que ele me pediu. E vou assegurar que cada gota de sangue dele valha a pena. Vocês precisam ir.
— Não vem com a gente? — Lenna soou surpresa, quase ofendida pela ideia.
— Preciso ficar — respondeu Galgard, inexpressivo. Inabalável como uma rocha. — O selo ainda precisa de sustentação. E, se ele falhar... alguém tem que garantir que Thorm não siga vocês.
Sem mais tempo para despedidas, Galgard apontou para o caminho.
— Sigam em frente. Não tem como errar. Este corredor tem a proteção de Gaia. Vocês estarão a salvo. Pelo menos... por um tempo.
O tom de urgência era contido, mas inegável. Soava como o último toque de uma campainha antes que o silêncio absoluto tomasse conta.
— Vamos! — ordenou Ector, firme. A voz carregava o peso de tudo o que haviam deixado para trás. Mas também a força de quem entende que precisa avançar.
Tudo aconteceu rápido. Não havia mais tempo para hesitar. A última imagem foi a de Galgard correndo de volta, às pressas, em direção ao lugar onde o destino o aguardava. Logo em seguida, a passagem se fechou. E, com ela, qualquer chance de retorno.
O silêncio era total. Sem ruídos, sem sons de combate, sem nada. Como se o mundo lá fora houvesse desaparecido. Os ecos da batalha, o cheiro metálico do sangue, os corpos tombados... tudo havia ficado para trás. Tinham de seguir.
O corredor era estreito, escuro e úmido. A umidade escorria pelas pedras, tornando o ar abafado. O caminho parecia não ter fim. Ora ou outra, surgiam pequenas galerias mal construídas, mas o trajeto ainda se mantinha linear. Cázhor, mesmo com a respiração pesada, conjurou uma esfera de chamas fracas, apenas o suficiente para iluminar os passos. As sombras se arrastavam pelas paredes, dançando com os contornos do fogo.
Dessa vez, Lenna vinha por último, ao lado de Ector. Ambos mantinham os olhos atentos à retaguarda. Vladmyr dava suporte ao mago. Eduardh, mais à frente, liderava com seus olhos élficos adaptados à escuridão, guiando o grupo com firmeza, mesmo com o corpo fatigado.
— O druida... será que ele... — Lenna hesitava, a voz ainda embargada pela dúvida e pelo medo.
— Não se preocupe, garota, ele é forte! Tenho certeza de que ele vai sobreviver. Vamos nos encontrar em breve — respondeu Ector, mas nem ele acreditava de fato. Era uma tentativa desesperada de manter a esperança viva.
Horas se passaram. Breves pausas para recuperar o fôlego se tornavam momentos de reflexão silenciosa. Até que, por fim, uma luz fraca surgiu à frente. Não era magia. Era natural. O ar tornava-se mais leve, e uma brisa fria beijava o rosto suado de cada um.
Ao emergirem, um clarão os cegou por instantes. Uma rajada gelada os atingiu como uma lâmina. O vento era forte, quase insuportável. Estavam no alto de um penhasco, cercados por um vasto campo coberto de neve. O céu cinzento brigava com tímidos feixes de luz que escapavam pelas nuvens, lançando reflexos suaves sobre o manto branco abaixo. Ao fundo, revelava-se um novo cenário, mais acolhedor, como uma tímida saudação de outono. Tons acobreados e levemente ásperos se mesclavam na transição delicada entre duas estações.
Nada indicava que haviam estado tão perto de uma guerra. Nenhum som, nenhum cheiro, nenhuma presença. Apenas neve, vento e silêncio. A magia de Varbbek era poderosa. Cada fragmento de vida dele se voltara a garantir que escapassem. E haviam conseguido. Por ora.
Além da sensação de alívio por estarem vivos, algo chamava a atenção: o caminho estava livre. Nenhuma barreira, nenhum bloqueio, nenhum sinal de patrulhas ou vigilância inimiga.
— É estranho... — comentou Ector, franzindo o cenho. — Parece que concentraram todas as forças em Mizuyr e nas conexões diretas com Ancor.
— Será que vamos conseguir alcançar a sede sem sermos notados? — questionou Vladmyr, observando o horizonte. — Talvez devêssemos seguir por uma rota alternativa... Eles provavelmente estão à espreita, esperando que corramos para relatar tudo ao líder do conselho.
— Pode ser... Se escolhermos bem por onde ir, ainda dá para nos manter fora do alcance deles. Essa mudança de rota pode acabar sendo uma vantagem... — Ector estreitou os olhos, analisando o cenário enquanto voltava a andar.
Era um alívio silencioso, mas também um passo incerto. Estavam fora do alcance imediato dos olhos inimigos, mas sabiam que isso não duraria para sempre.
— Será que tudo estava já predestinado e não tínhamos escolha? — Lenna perguntou, olhando o céu, os olhos marejados.
— Eu não creio que tudo seja obra do destino. Às vezes... as coisas só acontecem — respondeu Eduardh, em tom suave. Seus olhos cruzaram os dela com delicadeza.
Mas não era momento para questionamentos. Ainda não. O mundo estava prestes a colapsar e vidas dependiam de suas escolhas. Precisavam correr contra o tempo.
Sem dizer mais nada, os guerreiros seguiram. Uma nova jornada os aguardava. O objetivo era a sede de Ancor. Gregory precisava ser informado de todas as descobertas e do poder de fogo inimigo.
— E as chaves? — questionou Lenna, o cenho franzido, refletindo a dúvida que insistia em pesar sobre sua mente inquieta.
— Também tem o livro. Aquele verme o levou — murmurou Vladmyr, mordendo os lábios com força.
— Não temos o livro, não sabemos nada sobre a chave e muito menos sobre o tal receptáculo... — Ector cruzou os braços, o olhar pesado de decepção.
— Mas não precisamos dele. Fazhar havia comentado onde estavam suas anotações... e a primeira chave — retrucou Lenna, com certa empolgação.
— Kastari! — um coro se formou quando todos pronunciaram o nome ao mesmo tempo.
— Se me lembro bem, senhor Hardro... — Cázhor fez um breve gesto de pausa, sentando-se em uma pedra para recuperar o fôlego — quando o Primeiro Conjurador citou esse nome, o senhor se mostrou bem empolgado e comentou sobre ser...
— O Reino Flutuante — completou Eduardh. — Sim... é uma lenda muito antiga que circula entre os elfos há gerações. Porém, todos os arquivos relevantes estão na biblioteca real, onde apenas o líder do reino, ou melhor dizendo, o autoproclamado Rei, e seus descendentes diretos têm acesso.
— Então temos um novo ponto de partida. Seguiremos para o Reino de Nifhéas — Determinou Ector.
Eduardh, no entanto, não parecia empolgado. Desde que retomaram a caminhada, mostrava-se visivelmente distante do assunto, como se evitasse até mesmo olhar para frente.
— Bom... Fica na direção oposta à Sede do Conselho Mundial. Não devíamos relatar ao senhor Gregory antes de tudo? — disse o elfo, cabisbaixo, mudando claramente o foco da conversa.
— Dada a urgência, elfo, creio que a busca pelas chaves seja mais importante que um relatório neste momento — respondeu Ector, firme. — Quando chegarmos ao reino, poderemos formalizar tudo e enviar as notícias por um mensageiro de confiança do reinado. Precisamos manter a vantagem. Eles têm o livro... e, em breve, darão um jeito de descobrir tudo o que o Conjurador nos adiantou.
— A família real... li sobre eles em um livro que meu mestre trouxe de lá. Os Aranel Fëanor, uma linhagem antiga de elfos da realeza. Dizem que, antes mesmo da união dos reinos, eles já governavam. Devem ter alguém para levar as informações em segurança — Lenna falava como uma enciclopédia ambulante.
— Sim, uma família extremamente reservada... até mesmo entre os seus. Mas, numa situação dessa proporção, acredito que até eles seriam afetados. Recuso-me a acreditar que dificultariam ou negariam nosso acesso às informações — acrescentou Cázhor.
— É uma situação delicada. Eles têm suas próprias leis, mas ainda cooperam com as diretrizes da Sede Geral, a fim de “evitar conflitos”, como eles mesmos dizem. — Ector soltou um breve suspiro, o cenho levemente franzido.
— Olha só, Ed... — Lenna sorria ao se aproximar — você vai visitar sua terra natal! Aliás, você havia comentado sobre seu...
Eduardh a surpreendeu, envolvendo-a com os braços e tampando sua boca com uma das mãos antes que pudesse concluir.
— Vamos deixar isso para depois, tá bom? — a voz dele era séria, embora suave.
A frieza contida em seu gesto foi suficiente para apagar o brilho nos olhos da maga. Lenna entendeu. Ele não estava confortável com o assunto. Nem agora. Nem ali. Seguiram em silêncio. Ainda que as palavras pairassem, pesadas, sobre todos, o clima entre eles impedia qualquer comentário.
— Precisamos nos apressar. Sair desse frio. Alimento e abrigo são nossas prioridades — disse Ector, rompendo o silêncio enquanto avaliava a situação do grupo.
— É... não estamos na melhor forma. Se vamos encontrar a “realeza élfica”, temos ao menos que nos manter vivos até lá — murmurou Vladmyr, com um leve tom sarcástico, enquanto tentava manter o ritmo. O cansaço também o consumia.
Lenna, agora mais recolhida, ouvia cada palavra em silêncio. Ela entendia que, ao adentrarem um novo reino, qualquer detalhe poderia fazer a diferença entre sucesso e desastre.
— Me desculpe, tá? Às vezes me empolgo... sei que não quer falar sobre você, mas uma hora vamos ter que continuar aquela conversa — cochichou ao lado de Eduardh, tentando acompanhar seus passos longos.
Ele soltou um suspiro profundo, sem responder, e seu silêncio parecia carregar mais do que uma simples reprovação.
Estavam exaustos. Ainda havia muito caminho até saírem da zona congelada, mas, a cada passo, o frio diminuía. Deixavam para trás os limites da cidade da Sede de Mizuyr. A transição do dia finalmente se mostrava entre as nuvens, um raro presente. Eduardh havia encontrado abrigo numa antiga construção de pedra, parcialmente soterrada pela neve, onde poderiam passar a noite. Tudo indicava que a estranha tempestade não se estenderia além dali. Como suspeitavam, o clima foi afetado por algum distúrbio na mana.
— Vamos descansar. E continuamos amanhã. Elfo, certifique-se de trazer algo para comermos. Vlad e eu ficamos com o primeiro turno de vigília. Magos, ajeitem uma fogueira — ordenou Ector.
— Certo! — responderam em uníssono.
— Tomem cuidado, vocês três... não quero perder mais ninguém — murmurou Lenna, os olhos marejando com lembranças que insistiam em voltar.
— Você ainda se preocupa demais, não é, Lenna? — Eduardh sorriu brevemente, preparando-se para a caçada.
— Vocês se tornaram especiais para mim e eu... eu não... — Ela se calou, repentinamente.
— O quê? O que foi? — Ele parecia apreensivo diante da pausa longa demais.
Lenna estendeu sua mão pequena e fria até o rosto do elfo. Ele não se afastou, mas ficou sem reação.
— Desde quando você não usa mais a barbicha?
— Do que está falando? — Eduardh franziu o cenho, confuso.
Sem responder, ela o guiou até uma superfície lisa onde a água congelada formava um espelho natural. Eduardh se encarou por longos segundos. Não havia sequer vestígios de pelos no rosto. Seu cabelo estava muito mais longo, o prateado havia desaparecido, dando lugar a um branco natural e puro. Seus traços ainda mais suaves, quase etéreos.
— Está até parecendo um nobre assim... Digno dos famosos descendentes reais élficos...
— Lenna murmurou, quase hipnotizada pela imagem estática no reflexo.
“Mas o que... o que está acontecendo comigo?” Ele ainda encarava a estranha figura no reflexo.
— Eu... preciso ir! — Eduardh pegou seu arco e saiu em direção à mata, sem olhar para trás.
— Mas...
— Deixe-o em paz, senhorita Weins. Precisamos nos concentrar em nos manter vivos — disse Cázhor repreendendo a maga.
Depois do comentário inusitado de Lenna, Cázhor também se deu conta da tal mudança.
“Algo está mudando. É como se a própria essência dele estivesse se ajustando a algo maior.” Apesar de não demonstrar, Cázhor se perdia em hipóteses silenciosas e divagações profundas.
Nem mesmo Eduardh sabia ao certo o que isso significava, mas de alguma forma, o que viu no reflexo o deixou enfurecido. Mesmo depois de muito andar, ainda estava confuso. Perdido. Irritado.
— Mas que droga! Que merda está acontecendo?! — Um estalo ecoou quando, em fúria, ele acertou um soco de lado no tronco de uma árvore gigantesca, agitando suas folhas pesadas. — Será que ele tem alguma coisa a ver com...
Ele se interrompeu ao perceber um movimento estranho entre as sombras, nas frestas formadas pelo encontro de dois rochedos enormes. Algo que já estava ali. Que o observava, paciente, apenas esperando pelo inevitável encontro.
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