Volume 2
Capítulo 44: O novo vale
Kilian subia pelas ruas da cidade, seus passos ecoavam na escadaria de pedra. Uma placa dizia: "Somente pessoas. Veículos pela rampa ao lado."
— Só mais um pouco e chego lá. — Parou no meio das escadas, respirou fundo. — Como os velhos conseguem subir isso todo dia?
Quando alcançou o topo, parou de novo. A vista se abria à sua frente: os telhados irregulares da cidade se espalhavam abaixo, e ao longe, os platôs desérticos vermelhos se erguiam imponentes.
— Pelo menos isso não muda... — murmurou, olhando além dos telhados. Logo, seus olhos captaram o movimento de um aeroplano lixeiro no céu, mas havia algo errado.
Guardas Beyaras ocupavam a área, bloqueavam os pontos onde garotos como ele costumavam saltar para os aeroplanos e seguir rumo ao Vale do Suplício. As armaduras deles brilhavam sob o sol.
— O que está acontecendo? — Kilian apertou os olhos, intrigado, ao se aproximar, observando a movimentação dos guardas.
Um deles levantou a mão, interrompendo sua aproximação.
— Não pode passar. Área restrita.
Kilian arqueou as sobrancelhas.
— Restrita? Desde quando? Eu sempre vim por aqui.
O guarda cruzou os braços, firme.
— Ordens superiores. Ninguém mais pula para o Vale.
Kilian recuou um passo, lançou um último olhar ao aeroplano que sumia no horizonte.
— Certo. Entendido. — Permaneceu em silêncio, avaliando o que fazer em seguida.
Ele se aproximou, tentando passar despercebido, mas um dos guardas o interceptou.
— Para onde pensa que vai? — perguntou o guarda, com voz firme.
— Estou apenas apreciando. Gosto de vir até aqui para contemplar a vista — respondeu Kilian, tentando soar casual.
O guarda balançou a cabeça.
— Esqueça, garoto. O Vale do Suplício está inacessível. Ordem do alto comando.
— Por que essa restrição toda?
— Operações militares — respondeu o guarda, sem dar muitos detalhes. — Agora, vá embora, antes que arranje problemas.
Kilian assentiu e se afastou, enquanto sua mente buscava uma alternativa. As palavras do guarda ecoavam: o Vale do Suplício estava realmente inacessível pelos meios convencionais.
— Droga! Preciso achar um jeito de subir. — Ele desceu as escadas, de volta ao distrito baixo.
Após algum tempo de busca, avistou um grupo de comerciantes reunidos ao redor de um pequeno aeroplano de carga. Kilian se aproximou dos homens que carregavam mercadorias.
— Precisa de algo, garoto? — perguntou o comerciante, com um olhar desconfiado.
— Quero uma passagem para a parte dos Quangras. Vocês vão para lá? — Kilian tentou soar confiante.
O comerciante balançou a cabeça.
— Não, estamos indo para Sam Brehim. Ninguém está indo para os Quangras agora.
Kilian franziu a testa, mas manteve a postura.
— E o portal estabilizado para o Reino da Muralha? Não passa perto do Vale do Suplício?
O comerciante hesitou e trocou olhares com os companheiros antes de responder.
— Sim, passa. Por quê?
Kilian sentiu uma faísca de esperança. — Quanto cobrariam para me levar até lá?
— Até onde? — perguntou um dos comerciantes.
— No Vale.
Os comerciantes se entreolharam, trocando olhares incertos.
— Melhor não, garoto. É arriscado demais.
Kilian puxou uma moeda do bolso e a mostrou. Os olhos dos homens brilharam de interesse.
— Uma moeda de ouro. E nem precisam parar para eu descer. Tenho meus próprios meios. — Kilian falou com firmeza.
Os comerciantes cochicharam entre si. O líder assentiu.
— Está bem. Mas lembre-se, não vamos parar. Você se vira sozinho.
Kilian sorriu, aliviado.
— Combinado. Quando partimos?
— Daqui a pouco. Prepare-se — respondeu o comerciante.
Com o consentimento dos comerciantes, Kilian embarcou no aeroplano junto com a carga. O som das mercadorias e a movimentação dos homens preenchiam o ambiente.
— Achei um canto aqui — disse Kilian, enquanto se acomodava num espaço no compartimento de carga.
Logo, o aeroplano se elevou acima da cidade.
— Não dá pra ver nada daqui — murmurou Kilian, enquanto sentia as vibrações das velas e do casco de madeira. A única coisa que podia fazer era imaginar a mudança da paisagem lá fora.
Depois de um tempo, um dos comerciantes entrou no compartimento.
— Estamos perto da Vila das Grávidas. Vai saltar mesmo?
— Claro — respondeu Kilian, levantando-se. — Me avisa quando estiver no ponto.
Ele conferiu seu equipamento: dinheiro, roupas e seus paus de fogo primo de segunda mão. Seguiu o comerciante até o convés.
O vento forte chicoteava o rosto de Kilian quando ele chegou à borda. Lá embaixo, o Vale do Suplício se espalhava.
— Parece mais sombrio do que antes... — disse, os olhos fixos nos aeroplanos lixeiros. — As coisas mudaram mais do que eu lembrava.
Ele respirou fundo, o coração acelerado. Virou-se para o comerciante.
— Pronto? — perguntou o homem.
— Pronto. — Kilian ajustou a mochila, lançou um último olhar para o vale e se jogou no ar.
O vento rugia nos ouvidos de Kilian enquanto ele despencava em direção ao solo. Lá embaixo, os aeroplanos lixeiros pareciam formigas, descarregando suas cargas e partindo sem parar.
— Está na hora. — Ele murmurou algumas palavras e ativou a magia que havia aprendido recentemente.
Uma luz suave começou a envolver seu corpo. A queda desacelerou aos poucos, e o ar ao seu redor foi envolvido por uma espécie de barreira mágica. Finalmente, seus pés tocaram com leveza uma das passagens nos paredões do vale.
Kilian soltou o ar, aliviado.
— Funcionou. — Um sorriso de satisfação surgiu em seus lábios. — Agora falta pouco.
Ele deu uma olhada ao redor, os olhos atentos às sombras que se moviam nas montanhas de lixo.
— As coisas estão diferentes desde a última vez...
Kilian começou a caminhar. O chão áspero rangia sob seus sapatos, e o ar ali parecia mais pesado. A vastidão desolada das pilhas de entulho formava um cenário caótico à sua frente, enquanto os cheiros de podridão e metal enferrujado invadiam suas narinas.
Ele olhou uma última vez para o céu, o som distante dos aeroplanos lixeiros quase se perdendo no vento.
— Preciso ser rápido. — Depois de ajustar a mochila, ele seguiu em direção às sombras das montanhas de lixo. — Tenho que achar o que vai pros Quangras.
— Caramba. Só tem lixo aqui. — murmurou, enquanto passava pelo caminho estreito do paredão.
A favela dos catadores, onde antes era repleta de vida e movimento, agora era apenas uma enorme montanha de detritos. Ninguém mais vivia ali.
— Tá tudo muito diferente — disse ele, enquanto olhava para cima.
Os aeroplanos lixeiros agora voavam mais alto, sem qualquer contato direto com o vale.
— Esses aeroplanos tão longe demais pra pula. Até isso mudaram — observou, os olhos fixos nos aeroplanos no céu. — Se eu soubesse, tinha pulado direto num deles. Droga! Vou ter que achar um outro jeito.
Quando percebeu que era inútil tentar acessar os aeroplanos por ali, Kilian saltou sobre uma grande montanha de lixo compactado. A distância de onde estava para o solo era imensa.
De longe, era possível enxergar uma das fronteiras do vale. Soldados patrulhavam os limites, suas armaduras brilhavam à luz do sol. Pareciam bloquear as principais saídas do imenso lixão.
Agora o Vale era uma barreira impenetrável.
— Cercaram tudo... Nada entra, nada sai — disse para si, enquanto ainda tentava se acostumar com a grande mudança daquele lugar.
Kilian continuou a caminhar. O vale parecia engoli-lo a cada passo.
As paredes e montanhas de lixo bloqueavam a luz.
Sombras se arrastavam por todo lado. O ambiente estava envolto em escuridão.
O silêncio era quase absoluto. Só o som distante dos aeroplanos e o farfalhar dos detritos quebravam a quietude.
Ele parou.
— E agora? — murmurou, olhando ao redor.
Um ruído ecoou.
Baixo. Gutural.
Os pelos de Kilian se arrepiaram. Ele girou o corpo, tentando localizar a fonte.
De uma pilha de lixo próxima, surgiram quatro figuras.
— Não pode ser... — Seus olhos se arregalaram ao ver os gnolls.
Eram selvagens. Intimidadoras. Os olhos amarelos brilhavam na penumbra. As bocas escancaradas exibiam dentes afiados, sujos de tripas frescas.
— Cachorro... devoraram um cachorro — Kilian sussurrou, com o estômago revirado.
Ele deu um passo para trás.
Os gnolls avançaram. Lentamente. Passos calculados, como predadores cercando uma presa.
— Calma... mantenha a calma. — Kilian tentou respirar fundo, mas sentia o coração disparado.
Os olhos dele não deixavam os gnolls. Estava cercado.
Os gnolls rosnaram. Os corpos musculosos se moviam com agilidade.
Kilian franziu o cenho. Mais movimento ao redor. Três gnolls estavam no topo da pilha de lixo atrás dele, prontos para atacar.
— Preciso de uma saída... — Ele olhou rapidamente de uma pilha de lixo para outra, tentando achar uma rota.
Mas não teve chance.
Os quatro gnolls saltaram de uma vez, cercando-o.
O hálito quente e fétido atingiu o rosto de Kilian. O cheiro de sangue fresco se misturava ao odor nauseante do lixo. Estava encurralado. Sem uma rota clara.
Ele manteve a calma. Fechou os olhos por um segundo.
— Agora. — Sussurrou as palavras da magia que havia aprendido.
Uma energia pulsou em suas pernas. Ele sentiu o poder se acumulando.
Kilian saltou.
Voou acima dos gnolls, que se chocaram uns com os outros em confusão. Aterrissou no topo de uma pilha de lixo. Não perdeu tempo. Lançou-se novamente, saltando para o outro lado da montanha de detritos.
Aterrissou em segurança. Preparava-se para correr quando sacou um pau de fogo primo. Mas então ouviu algo.
Um barulho de batalha. Vindo de onde havia sido cercado.
Rugidos. Gritos. O som de um massacre.
Kilian parou. O olhar fixo na pilha de lixo atrás.
— O que tá acontecendo ali...? — murmurou, o coração acelerando.
Ele balançou a cabeça, afastando os pensamentos.
— Não... foco. — Ele começou a correr novamente, passando por algumas pilhas de lixo com agilidade.
Kilian interrompeu a corrida outra vez, seus olhos fixos em duas figuras à frente. Seu corpo enrijeceu.
Darin estava ali, com Imaniul ao seu lado.
Eles não se moveram, pareciam estar à espera de algo... ou de alguém.
Kilian franziu o cenho. O vento carregava o cheiro pesado do lixo, mas havia algo diferente neles, algo que ele não conseguia identificar de imediato.
— Darin...? Imaniul...? — A voz de Kilian saiu hesitante, baixa.
Nenhuma resposta.
O silêncio entre eles ficou sufocante. Kilian deu um passo à frente, mas parou. Sentiu o peso da situação se intensificar.
Os dois, imóveis, não olhavam para ele. Seus rostos pareciam estranhamente vazios, sem a expressão calorosa de antes. O olhar deles vagava, como se não o reconhecessem mais.
A respiração de Kilian acelerou. Ele apertou o pau de fogo nas mãos.
— O que eles vão fazer? Alguma coisa tá errada. Muito errada.
Nenhuma palavra saiu da boca de Darin ou Imaniul. Kilian observou com horror enquanto algo começava a se mexer por debaixo da pele deles. Raízes escuras emergiram, espalhando-se como teias vivas, antes de traçarem padrões grotescos por seus corpos. Os olhos de ambos ficaram verdes, brilhando com uma fúria estranha e selvagem.
Eles bufavam e rosnavam; seus corpos então se expandiram de maneira antinatural. Músculos pulsavam sob a pele, e o ódio emanava deles como uma força tangível.
— Isso não é bom — disse Kilian, com os olhos fixos neles por um momento. — Se eu ficar e lutar... já era pra mim.
Sem hesitar, Kilian deu um salto encantado para trás e pousou no topo de uma pilha de lixo. O som pesado dos passos de Darin e Imaniul ecoava atrás dele. Os dois, agora transformados, o perseguiam; suas respirações pesadas e rosnados furiosos quebravam todo o silêncio do vale.
Kilian deu outro salto, dessa vez pulando para uma montanha maior. O impacto foi áspero, mas ele manteve o equilíbrio. Suas pernas, agora encantadas, não paravam, dando-lhe o poder de saltar e cobrir grandes distâncias.
Os passos e rugidos de Darin e Imaniul ainda ecoavam ao longe, mas o som começava a diminuir. Ele estava conseguindo se distanciar.
— Mais sorte da próxima vez... — disse Kilian, enquanto saltava daquela montanha para o chão, o efeito da magia amortecia sua queda.
Foi então que, ao aterrissar no cume daquele monte de lixo, algo o fez parar.
Ali, no meio da podridão, uma figura o observava.
Era um humanoide. Coberto de sangue.
Os longos cabelos, tingidos por uma camada de vermelho, revelavam um brilho metálico em tons de verde-oliva, nunca antes cortados. Ele segurava uma espada quebrada em uma mão e, na outra, um coelho de pelúcia surrado, encharcado de sangue.
O olhar do ser era atípico, fixo em Kilian. Seus olhos brilhavam com uma intensidade quase inumana, como se estudasse cada movimento do garoto.
Kilian estacou, o frio na barriga o alertava de algo. O suor tornava-se cada vez mais abundante enquanto ele apertava o pau de fogo primo na mão.
— Quem... quem é você? — murmurou, com a voz trêmula.
Nenhuma resposta. Apenas aquele olhar penetrante e selvagem, enquanto o eco dos rosnados distantes de Darin e Imaniul começava a se aproximar de novo.
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