Intangível Brasileira

Autor(a): Richard P. S.


Volume 1

Capítulo 42: Uma placa vazia

— Lá está ele.

— Então Kilian está num funeral de algum paladino. Esses ritos costumam durar uns dez... vinte dias, certo?

— Acho que sim. Olha! Aquele paladino do lado dele... deve ser Caelinus.

— Será alguma paladina próxima a eles?

— Não, deve ser a tal Melangie. Não esqueça que ela estava bem... doente.

— Uma pena, realmente.

O cortejo avançava pelas ruas de Jillar, e a presença dos paladinos impunha silêncio por onde passava. A multidão abria caminho em respeito, mas também em curiosidade contida. Havia algo solene e inquebrantável naquele ritmo.

No centro da procissão, o corpo de Melangie jazia sobre uma prancha ornamentada com detalhes dourados e símbolos da ordem. A madeira escura contrastava com a armadura cerimonial que ela usava — reluzente e impecável. Apenas seu rosto pálido, esculpido pela doença, permanecia descoberto.

Sobre seu peito, uma espada repousava. Não como arma, mas como símbolo — como se Melangie ainda estivesse em guarda, mesmo na morte. O brilho da lâmina refletia o céu azul de Jillar, como se absorvesse a última luz que o mundo pudesse oferecer a ela.

— Caelinus, nós vamos iniciar o cântico — disse um dos paladinos.

Caelinus apenas acenou com a cabeça.

Os paladinos, tanto os que seguiam o cortejo quanto os que estavam por perto, acompanharam o cântico em uníssono. As pessoas se enfileiravam nas calçadas, silentes em respeito, algumas com lágrimas nos olhos. A marcha fúnebre avançava, e a atmosfera era carregada de reverência solene.

— Estão indo para a torre-cemitério. Devemos ir até lá agora?

— Não. Paladinos e parentes são sepultados no subsolo. Pegamos ele na volta.

Kilian descia as escadas, sentindo o peso dos séculos naquela estrutura. As paredes de pedra, frias e úmidas, carregavam uma reverência silenciosa. Cada passo ecoava fundo.

Embora fosse manhã, o ambiente era tomado pela penumbra. Lanternas mágicas iluminavam suavemente os corredores. As luzes vacilantes criavam sombras que dançavam pelas paredes.

— Não esperava ver tanta... cor — murmurou, surpreso com o que via.

O subsolo era belo de forma inesperada. Contrastava com a superfície estéril e rochosa da cidade. Os túmulos e paredes estavam cobertos por mosaicos coloridos.

Cada desenho formava um padrão intricado. Havia cenas de batalhas, orações, rostos serenos. Era como se cada túmulo guardasse uma história que ainda queria ser contada.

À medida que o cortejo avançava, Kilian se distraía com as lápides. Seus olhos deslizavam por entre as inúmeras gavetas. Algumas placas de bronze, gravadas com palavras, chamaram sua atenção.

"Não viveu para ver a paz que tanto lutou para alcançar."

"Não teve a chance de criar a família que tanto desejava."

"Não viu o mundo além das fronteiras de Jillar."

Kilian observou aquelas palavras, depois olhou para o corpo de Melangie sendo carregado pelos paladinos. Aproximou-se de Caelinus, que seguia logo à frente, ao lado do corpo.

— Caelinus, o que significam esses dizeres nos túmulos?

Caelinus permaneceu impassível, sem sequer o olhar. Seus olhos estavam fixos no corpo de Melangie, a expressão rígida e cheia de dor. Kilian baixou a cabeça, compreendendo o significado não dito do silêncio.

Entretanto, uma voz vinda de trás quebrou o silêncio, enquanto uma mão calejada repousava sobre seu ombro.

— Os dizeres são tudo aquilo que aquelas pessoas desejaram, mas não conseguiram.

— Jessiah — disse Kilian, contido, surpreso ao ver o paladino.

— Dizem que a pessoa mais feliz do mundo terá uma lápide sem palavras. Sinto muito pela sua perda, meu amigo — disse o paladino, enquanto se aproximavam do local onde seria sepultada Melangie.

Ali, a tampa do túmulo aguardava. Uma lápide decorada com um mosaico de flores e estrelas. Uma placa de bronze ainda vazia seria gravada com a última homenagem.

Diante do cortejo, um paladino de orelhas pontudas e cabelo curto cor de pêssego metálico aguardava. Tinha uma placa de bronze nas mãos. Vestia armadura bordô com detalhes amarelos e prateados, e sua presença se destacava.

— Então vamos descobrir qual será a frase gravada no bronze — disse ele, com serenidade.

Mas antes que alguém respondesse, ele ergueu a voz:

— Até tu, pequeno Gorbolg?

O Grão-Mestre da Ordem dos Paladinos surgiu dentre a multidão.

— E por que eu não viria? A garota era filha de Logan, companheiro de grupo da minha antecessora.

O paladino de orelhas pontudas assentiu lentamente.

— Sim, é verdade. Parece até que foi ontem quando aquela jovem de pele morena e cabelos brancos trouxe consigo, do sul, o primeiro rumor sobre o Levante dos druidas.

Kilian deu um passo à frente, a voz firme, mas carregada de emoção.

— Eu sou o filho de Ledígia.

Murmúrios começaram a se espalhar pelo cortejo, enquanto Jessiah pousava a mão sobre o ombro de Kilian.

— Devagar, garoto — advertiu ele em voz baixa. — Não é bem visto interromper o assunto dos graduados.

O paladino de orelhas pontudas lançou a Kilian um olhar que parecia atravessá-lo.

— Então você seria o suposto filho de Ledígia? Intrigante...

Logo voltou-se ao cortejo, elevando a voz para que todos ouvissem.

— Houve uma época em que os deuses eram adorados... — Sua voz reverberava pelas paredes. — Até caminhavam entre nós.

Ele fez uma pausa, o olhar perdido em memórias antigas.

— Hoje, são apenas ecos de um passado longínquo.

Em seguida, voltou-se para Kilian com o semblante grave.

— A fé se foi. O que resta... é apenas o que os olhos podem ver.

— Eu sou Eccanus — continuou ele, agora com o tom mais firme. — O guardião das memórias. Estou aqui para garantir que ninguém que repousa neste lugar seja esquecido.

Ele olhou ao redor por um instante, atento ao grupo que o acompanhava. — Quem, além deste jovem humano, foi próximo de Melangie?

Assim como Kilian, Caelinus se colocou à frente, silencioso.

Eccanus estendeu as mãos sobre os dois. A placa de bronze diante deles começou a se escrever sozinha.

Enquanto isso, outros paladinos içavam o corpo de Melangie em um buraco escuro na forma de uma gaveta.

A cerimônia seguia com ritmo lento, solene.

O ar parecia mais denso, e Kilian sentia a respiração falhar à medida que a tampa da urna se aproximava.

Ele olhou pela última vez para o corpo de Melangie.

Seu rosto sereno, pálido, ainda marcado pelos traços da doença.

As lágrimas em seus olhos já não podiam ser contidas.

Ao lado dele, Caelinus mantinha a postura firme, mas os punhos cerrados e o brilho úmido nos olhos revelavam sua dor.

— Ela era tão jovem... — murmurou um paladino no cortejo. — Não merecia sofrer tanto com aquela maldita doença.

Eccanus orientava dois jovens paladinos sobre como selar a urna. Kilian tentou se aproximar, mas parou. Seus pés pareciam presos ao chão.

Caelinus se adiantou. Não olhou para Kilian. Com uma mão trêmula, tocou a de Melangie uma última vez. Seus lábios se moveram, mas Kilian não conseguiu ouvir o que ele disse.

A tampa foi colocada sobre a urna. Um som surdo reverberou pelas paredes.

— Melangie... — Kilian murmurou, engolindo o choro.

O peso do silêncio desabou sobre os dois.

Lágrimas deslizavam pelos rostos.

Caelinus abaixou a cabeça, soltando um suspiro lento e profundo.

Quando a tampa enfim selou o túmulo, Eccanus observou a inscrição que surgia.

"Não foi Esposa, e por consequência: Mãe."

Kilian tentou dizer algo a Caelinus, mas a voz falhou. O paladino se virou de repente e partiu, sem dizer palavra.

Aos poucos, os demais paladinos também se dispersaram. As capas ondulavam ao vento. Os passos e vozes ecoavam pela catacumba silenciosa.

Kilian permaneceu ali, parado. Seus olhos fixos na sepultura de Melangie. Até que não havia mais ninguém.

Eccanus, há algum tempo, havia retornado aos seus afazeres. Com gestos meticulosos, limpava e organizava o espaço. Parecia alheio à dor dos vivos.

Depois de um tempo, o paladino o observou de longe. A expressão neutra.

— Ainda está aí. O que você quer?

Kilian ergueu o rosto, os olhos ainda marejados.

— Quero ver o túmulo da minha mãe.

— Mãe, é? — Eccanus arqueou uma sobrancelha.

— Sim. Ledígia — respondeu Kilian, a voz trêmula.

— Ah, sim... Ledígia... — murmurou o paladino.

Ele soltou um leve suspiro, quase como quem se lembra de uma antiga canção.

— O corpo de Ledígia está na parede dos mestres paladinos. Siga por aquele caminho e vire à esquerda depois da estátua do fundador.

Kilian assentiu, depois iniciou a caminhada por entre os corredores de pedra. A luz das tochas criava sombras longas sobre os mosaicos das paredes.

Logo à frente, surgiu a estátua do fundador. Ele virou à esquerda, como indicado, e encontrou a parede dos mestres. Era ornamentada, com relevos e inscrições.

Alguns nichos estavam ocupados. Outros ainda aguardavam alguém. Kilian passou os olhos pelas placas de bronze, sentindo o silêncio apertar o peito. Algumas frases chamaram sua atenção.

"Não viveu para ver a filha se casar."

"Trouxe união para a ordem, mas não para sua família."

Ele seguiu adiante, examinando os nomes. Por fim, parou diante do nicho de Ledígia.

A placa permanecia vazia.

Kilian relaxou os ombros. Um sorriso leve se formou em seus lábios ao observar o nicho.

Fora da catacumba, a rua estava banhada pela luz do sol da manhã, enquanto os paladinos se dispersavam lentamente. Suas silhuetas se moviam sob a claridade do dia. Caelinus estava parado, sendo consolado por Jessiah e mais duas paladinas. Até mesmo Gorbolg, o Grão-Mestre, estava presente.

— Quem é aquele meio-orc conversando com Caelinus?

— Essa família do Kilian é importante mesmo dentro da ordem. Aquele meio-orc é o Mestre Paladino Gorbolg. Até ele estava presente no funeral.

— Onde está o garoto?

— Ainda não saiu.

— Devíamos entrar e abordá-lo?

— Não. Melhor esperarmos ele sair. Não seria bom chamar atenção desnecessária.

Quando Kilian saiu das catacumbas, a luz do sol mais uma vez iluminou seu rosto pálido. Ao olhar ao redor, viu pequenos grupos de pessoas reunidas. Conversavam em tons baixos. A praça arenosa tinha poucas árvores, e, sob uma delas, em um banco de pedra, estava Caelinus, agora sozinho e reflexivo.

Kilian se aproximou, hesitante, e sentou-se ao lado dele. A tensão no ar era palpável.

— Caelinus... — começou Kilian, a voz trêmula. — Eu... eu sinto muito. Eu quebrei minha promessa e fui para o Vale do Suplício. Eu só queria…

Caelinus ergueu a cabeça lentamente, enquanto olhava para Kilian. A raiva contida em seu olhar era inconfundível.

— Você tem noção da gravidade do que fez? — perguntou Caelinus, sua voz baixa e controlada, mas carregada de fúria.

— Eu sei que foi errado, mas…

Caelinus interrompeu, e sua voz subiu de tom:

— Não, Kilian, você não sabe! Se soubesse, não teria ido!

Kilian tentou se defender:

— Eu achei que estava fazendo o certo...

— Achou?! — Caelinus cortou, avançando um passo. — Por causa da sua imprudência, meu nome foi usado numa operação no Vale do Suplício!

Kilian abriu a boca para responder, mas Caelinus continuou:

— Muitas pessoas morreram, Kilian. Paladinos... amigos meus. Eles perderam suas vidas por causa da sua decisão.

— Eu não sabia que...

— E a vida dos moradores de lá nunca mais será a mesma! — Caelinus interrompeu de novo, sua expressão ficou ainda mais rígida. — Como eu vou encará-los agora? Como vou encarar a esposa do meu colega morto por um traficante?

Kilian baixou a cabeça, procurando uma resposta, mas Caelinus não lhe deu tempo:

— Como vou encarar o jovem órfão... cuja mãe eu executei por ajudar traficantes?

Kilian tentou falar, mas Caelinus levantou a mão e o silenciou.

— Eu tenho tentado te ensinar o que é certo desde que você era criança. Mas parece que você acha que já é adulto, que pode ir aonde quiser, com quem quiser. Você não entende o preço das suas ações.

Caelinus respirou fundo, controlando a raiva.

— Se você quer ser assim, que seja. A única pessoa a quem eu tinha responsabilidades já se foi. Agora você é adulto. Aproveite sua liberdade e a responsabilidade que vem com isso. Vamos ver onde vai dar.

Ele se levantou do banco, lançou um último olhar para Kilian e se afastou.

— Cansei, Kilian. Você está por sua própria conta agora. — Com essas palavras, ele se virou e foi embora, deixando Kilian sozinho.

— Ele está sozinho agora. É hora de agir!

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