Intangível Brasileira

Autor(a): Richard P. S.


Volume 1

Capítulo 41: Sem arrependimentos

O vento golpeava o rosto de Kilian enquanto ele caía. Seus punhos estavam cerrados contra o ar frio. Seus olhos piscavam com força, enquanto tentava afastar a ardência do vento cortante.

— Caramba, o que eu tinha na cabeça... — Tamanha era a pressão do vento sobre ele que mal conseguiu ouvir sua própria voz.

Seu corpo estava tenso, mas ele precisava focar. O chão se aproximava depressa. As torres da cidade surgiam distantes no horizonte.

Kilian apertou os olhos e tentou mais uma vez.

— Concentra... — murmurou. — Concentra!

O chão se aproximava mais rápido do que esperava. Ele repetiu as palavras, mas nada. A tensão aumentava, e o medo começava a tomar conta.

— Tem que funcionar! Agora! — gritou, a voz sendo engolida pelo vento.

Repetiu com mais urgência. Finalmente, sentiu a magia envolvê-lo. A queda desacelerou bruscamente. Por um momento, flutuou, antes de tocar o chão suavemente.

As pessoas ao redor pararam, espantadas.

— De onde esse garoto caiu? — murmurou alguém.

Kilian levantou-se rápido, aliviado, e ajeitou a mochila nas costas.

— Ainda bem que deu certo... — disse a si mesmo, olhando ao redor. — Quase em casa...

Assim que chegou ao nível térreo da cidade, logo foi engolido pela agitação das ruas. O barulho era ensurdecedor: mercadores gritavam ofertas, carrinhos de carga rangiam, e crianças corriam entre as pernas dos transeuntes.

— Essa hora e já tem esse movimento todo — murmurou ele, desviando de um grupo de crianças que quase trombou em seu braço.

Caminhou com calma, os olhos atentos, até parar ao lado de um grupo de soldados que descansavam à sombra de um toldo remendado. Disfarçadamente, agachou-se próximo aos fardos que carregavam, fingindo interesse por algo no chão.

— Tá tudo aqui ainda? — sussurrou, enquanto abria a bolsa com cuidado.

Dentro, encontrou o que esperava — roupas de pele cuidadosamente dobradas, moedas embrulhadas num pano e o frasco com a poção dourada de Maya.

Ainda tá aqui... Nada foi perdido. Obrigado, Maya.

Fechou a bolsa e a ajustou nas costas.

Tirou o frasco de Tritângeno e o observou por alguns segundos.

— Um dia, você ainda vai ser um lingote, garanto. — Guardou o frasco com cuidado e seguiu adiante.

O aroma dos chás misturado à poeira do distrito chegava até ele. Um grupo de jovens conversava em uma esquina. Ele passou, mas parou e os observou por um instante.

— Tão jovens... e nem fazem ideia do que eu fiz lá fora... — disse, balançando a cabeça.

Assim que cruzou a fronteira do distrito, as ruas ficaram mais familiares. Árvores mirradas e casas desgastadas surgiram ao redor. Ele estava perto de casa.

— Finalmente...

Quando avistou a casa de Melangie, diminuiu o passo. O lugar estava quieto, contrastando com a inquietação dentro dele. Parou diante da porta, a mão hesitando na maçaneta.

A imagem de Melangie doente veio à sua mente. Ele fechou os olhos e respirou fundo.

— Que ela esteja bem... — sussurrou, antes de empurrar a porta e entrar.

O rangido da madeira ecoou pela casa silenciosa. A luz suave da tarde iluminava o espaço simples. O cheiro de ervas se misturava ao amargor dos medicamentos.

Kilian parou por um momento e respirou fundo.

— Melangie? — chamou, quase num sussurro.

Nenhuma resposta.

O som de seus passos ecoou pelo chão de madeira enquanto se aproximava do quarto dela. Abriu a porta devagar.

Melangie estava deitada na cama, os olhos fechados, o corpo magro afundado nos lençóis. Ao lado, uma tigela de sopa esquecida.

Ele parou à beira da cama. Ela parecia tão frágil. Sentou-se e pegou a mão dela.

— Voltei.

A voz saiu baixa, mas ela ouviu. Seus olhos se abriram lentamente, o brilho fraco refletido nas lágrimas que surgiam. Um sorriso débil apareceu em seus lábios.

— Kilian... Você voltou... — Sua voz era apenas um sussurro. — Achei... que nunca mais...

Kilian apertou a mão dela com mais força, contendo a emoção que ameaçava escapar.

— Eu jamais te deixaria. Eu... eu fui ao Vale do Suplício... Depois, na parte dos Quangras... eu consegui o dinheiro. — Ele falou rápido, como se as palavras pudessem aliviar o peso da situação. — Agora, vamos realizar o seu sonho.

Melangie fechou os olhos por um instante. Lágrimas escorriam pelo rosto pálido.

— Não precisava... — A respiração saía fraca. — Só queria... ver você... antes de ir.

Kilian engoliu em seco, o nó na garganta apertando. A dor tomava conta.

— Você está com dor?

Ela assentiu levemente, sem abrir os olhos.

— Muita dor... não passa. Mas... não tenho forças pra gritar...

Kilian baixou a cabeça. A culpa pesava sobre seus ombros como chumbo.

— E o Caelinus? Ele já veio aqui?

— E-ele... está magoado... — a voz dela era um sopro, entrecortada pelo esforço de respirar. — D-disse... que você quebrou... sua promessa...

Ela fez uma pausa longa. Seu peito subia e descia lentamente, como se cada respiração exigisse tudo o que lhe restava.

— M-mas isso... já não importa...

Um suspiro trêmulo escapou por seus lábios. Ela apertou a mão de Kilian com uma delicadeza desesperada.

— E-estes... são meus... últimos momentos, Kilian...

Seus olhos se moveram com esforço até encontrarem os dele. Suaves, porém carregados de significado.

— Q-quero... aproveitar... o que restou...

Kilian, com os olhos marejados, segurou a mão dela com mais firmeza.

— Eu prometi que ia cuidar de você. E eu vou cumprir. Vamos ver a cidade... do jeito que você sempre quis.

Ela tossiu. O som era fraco, mas cruel em sua fragilidade.

— Não precisa... só queria... te ver.

Kilian passou os dedos pelo cabelo dela, tentando disfarçar as lágrimas.

— Então vamos nos apressar. Eu consegui uma poção... Vai nos fazer voar. Vamos voar, Melangie. Você vai ver a cidade de cima.

Os olhos dela brilharam, mesmo na fraqueza. E com um leve aperto na mão dele, sussurrou:

— Você sempre foi teimoso... tudo bem... vamos ver a cidade juntos.

Ele se levantou. Começou a liberar o caminho pela casa com passos rápidos, porém cuidadosos. Abriu portas, afastou objetos — queria que tudo estivesse livre para carregá-la com segurança.

Logo voltou ao quarto, o frasco dourado na mão. Destampou-o e tomou o conteúdo de uma só vez.

Quase imediatamente, sentiu os músculos ficarem leves. Era como se o próprio ar o impulsionasse.

Com todo o cuidado, pegou Melangie no colo. Era como segurar um sopro — tão leve, tão frágil.

Eles se entreolharam. Não disseram nada. Não precisavam.

— Pronta pra voar? — Kilian perguntou, tentando manter a voz firme.

— Nunca imaginei... que faria isso... — disse ela, os olhos se fechando devagar, o rosto encostado no ombro dele.

Kilian saiu da casa. O céu azul se abria sobre eles como uma promessa. Ele inspirou fundo, sentindo o vento da tarde. Com um leve impulso, seus pés começaram a deixar o chão.

Subiam devagar. A cidade se revelava abaixo deles, com seus telhados, ruas e torres formando um emaranhado grandioso. O vento acariciava seus rostos; a sensação de liberdade preenchia o momento.

Melangie abriu os olhos. Ao ver o horizonte, uma única lágrima desceu por sua bochecha. Ali, não havia mais dor — só paz.

Kilian sussurrava palavras baixas, e uma barreira mágica os envolveu. O ar ao redor brilhou sutilmente, protegendo-os do frio. Dentro daquela redoma invisível, havia calor e silêncio.

— É lindo... — murmurou Melangie, emocionada.

Kilian sorriu. Os olhos estavam cheios de lágrimas, mas o sorriso era real.

— Você merece ver isso. Sempre mereceu.

O céu alaranjado tingia Jillar com tons dourados. Era como se o mundo se despedisse com ternura. As ruas encolhiam lá embaixo, reduzidas a linhas sem importância.

O vento cortante era suavizado pela barreira mágica. Dentro dela, havia apenas o bater de dois corações.

— Consegue... ver? — Kilian perguntou, com a voz trêmula, ainda segurando firme.

Melangie, com os olhos entreabertos, assentiu. O rosto pálido, mas sereno.

— Lindo... — disse com um sussurro. — Melhor... do que pensei.

Kilian desviou os olhos para baixo, tentando afastar a sensação de aperto no peito.

— Ali... ali é a camada dos Quangras... — disse ele, apontando com o queixo. A primeira camada da cidade fervilhava de movimento, com pessoas apressadas no solo e aeroplanos riscando o céu. — Foi ali que eu estive esse tempo todo...

Eles subiram mais alto. A vista revelou as duas camadas intermediárias — quase gêmeas — com suas construções robustas, erguidas em materiais diversos que refletiam os tons quentes do entardecer.

Cada camada deixada para trás parecia contar uma história. Uma versão possível da vida que Melangie jamais teve. Kilian a apertou contra o peito, como se com isso pudesse reescrever o passado.

— As camadas gêmeas... — continuou Kilian, com a voz mais suave, como se narrasse um sonho antigo. — Lembra que sonhávamos em morar ali?

Os olhos de Melangie permaneciam abertos, mas já não focavam bem. Apesar disso, ele continuou a subir.

— E finalmente, o topo... — murmurou, apontando para a última camada, agora abaixo deles. Uma faixa da cidade iluminada em dourado pelos últimos raios de sol. — A camada dos Letnicianos...

— Letnicianos... — repetiu ela, com a voz rarefeita. — Sempre... tão... distantes...

Kilian a apertou contra o peito. Queria segurá-la ali. Queria parar o tempo.

— Eu devia ter feito isso antes... — disse, num sopro de culpa.

Melangie tentou mover os lábios, mas a voz quase não veio.

— Não... se culpe...

Ela respirava com esforço, os intervalos entre cada fôlego mais longos, mais arrastados.

— Você sempre... foi bom... pra mim...

Kilian sentiu a garganta apertar. Evitou chorar. Evitou se despedir.

Ele ergueu os olhos para o céu, agora manchado de laranja escuro, e lutou para encontrar palavras.

— Você... foi como uma mãe pra mim... — A voz saiu fraca, tênue como a luz do dia que se apagava.

Melangie abriu um sorriso frágil. O olhar ainda fixo no céu.

— E você... meu irmãozinho...

Ela pausou, antes de sussurrar:

— Eu não me arrependo... de nada...

O silêncio caiu entre eles, denso e sagrado. A mão dela, antes agarrada ao braço dele, deslizou devagar, inerte. Sua respiração vacilou uma última vez... e cessou. O último suspiro escapou tão leve que se dissolveu no ar.

— Melangie? — Kilian chamou, sua voz reduzida a quase nada. — Melangie...

Ela não respondeu. O rosto permanecia sereno. Havia um sorriso de paz nos lábios.

Kilian a segurava com força. Não queria soltá-la. Não podia.

O vento soprava suave, mas a magia de proteção impedia o frio de tocar sua pele. Lágrimas caíam, silenciosas, levadas pelo vento.

— Eu... eu trouxe você pra ver a cidade... — murmurou, a voz se desfazendo junto com a luz do dia.

As cores do céu começavam a esmaecer, como se o mundo também compreendesse a perda. Kilian permaneceu ali, suspenso no ar, os braços envoltos no corpo sem vida de Melangie.

Então, começou a descer. Devagar, quase com relutância. Como se o chão fosse o fim.

Quando seus pés tocaram o solo, o peso de tudo desabou sobre ele. O mundo ficou mais escuro, mais pesado, mais quieto.

— Kilian? — chamou uma voz distante. Era Caelinus. — Melangie? O que aconteceu?

Kilian não respondeu. Não precisava. O vazio em seu olhar dizia tudo.

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