Volume 1
Capítulo 38: De volta para casa: Parte 2
Kilian observou a casa por mais alguns segundos. Era uma construção de pedra, assim como as outras ao redor, com o mesmo estilo arquitetônico simples.
Mas esta parecia a mais desgastada de todas. As paredes estavam manchadas, e algumas rachaduras se destacavam.
O ar de abandono destoava das casas vizinhas, que, embora também modestas, estavam em melhores condições.
O garoto franziu o cenho ao encarar a casa por mais tempo do que o necessário. Quando Maya percebeu, esboçou um sorriso meio irônico.
— Está desapontado? — comentou, sem perder o tom provocativo. — O que esperava? Um castelo?
Kilian desviou os olhos da casa para encará-la.
— Não que eu esperasse um castelo... — respondeu, hesitante. — Só... achei que fosse... diferente...
Maya deu uma risada curta, sem qualquer amargura aparente.
— Pois é... mas essa é a realidade. — Seus olhos voltaram brevemente para a casa, e o sorriso desapareceu. — Nem tudo que parece grande e brilhante é, afinal.
Eles continuaram a caminhada em direção à porta. Os passos cansados ecoavam pelas ruas de pedra sob o calor crescente do sol.
Kilian, ainda intrigado, observava Maya de soslaio. Ela mantinha a postura firme, mas a forma como seus olhos evitavam os dele sugeria mais do que suas palavras diziam.
— Mas você ganha bem, né? — Kilian perguntou, com um toque de incerteza na voz. — O Cara de Prancha me falou do Albastrógeno.
Maya encolheu os ombros. Os dedos tamborilavam levemente contra a lateral do corpo.
— O dinheiro vai embora rápido quando se tem outras prioridades. E... nem sempre ele resolve o que importa de verdade.
O silêncio pairou entre eles, pesado e desconfortável, enquanto Kilian tentava processar o que ela havia dito, sem saber como responder.
Maya olhou para frente, o rosto sem expressão, como se quisesse encerrar o assunto ali.
— Parece complicado...
Maya apenas assentiu, com um suspiro leve, antes de apontar para a porta de casa.
Kilian mal teve tempo de processar o que viu ao entrar. Os móveis eram velhos e simples, mas o que mais o surpreendeu foi a mudança em Maya.
Ela, que sempre parecia segura e cheia de atitude, agora mantinha os ombros tensos e a postura rígida.
— Maya, quem é esse aí? — Uma voz cortante veio de uma das salas.
Kilian olhou em direção ao som e viu uma senhora de pele morena, com feições fortes, sentada em uma cadeira de rodas.
Seus olhos duros o analisavam de cima a baixo com desconfiança.
— Então, finalmente chegou o dia: você trouxe para casa um namorado? — perguntou, sem rodeios. — Sinceramente, Maya. Eu esperava coisa melhor.
Kilian arregalou os olhos, e seu rosto esquentou.
— Eu... não... nós só somos...
— Não sou boba, garotinho! — cortou a mulher, estreitando os olhos. — Não pense que me engana.
Maya se aproximou da mãe com um sorriso leve e ajeitou a manta sobre as pernas amputadas da mulher.
— Mãe, este é o Kilian. Ele estava com a gente quando o portal se desfez.
A velha senhora bufou, mostrando pouco convencimento.
— “Só me acompanhando”. Já ouvi essa antes. Cadê os outros?
Kilian desviou o olhar, sem saber como responder, mas a mulher não tirava os olhos dele.
— E você, rapaz? De onde veio? O que faz da vida?
— Eu sou da superfície e estou aprendendo magia com o Garrik e...
— Magia? — a velha interrompeu com um riso seco. — Arcana ou divina? Já é mais talentoso do que a Maya?
Kilian tentou responder, mas ela continuou, sem dar atenção a qualquer tentativa de explicação.
— Um rapaz da sua idade já deveria ser um mago completo. Tem que trabalhar! Olha pra Maya o quanto ela já é talentosa. Já viu ela usando magia?
Maya, enquanto isso, acariciava os ombros da mãe e balançava a cabeça de leve. Parecia acostumada com aquele interrogatório.
— Tudo bem, mãe. Kilian talvez nem siga com a vida de aventureiro. Ele só está de passagem.
— Só de passagem... claro. — A mãe cruzou os braços e franziu a testa. — Já vi muitos "de passagem" nessa vida. Todos morreram. Mas nenhum deles me enganou, não. Tenho faro para a falta de talento.
Kilian abriu a boca para falar, mas apenas soltou o ar de leve, resignado.
Maya levantou-se de repente.
— Vou trazer o que prometi. Fique aqui, Kilian.
Ele acenou com a cabeça, apesar do desconforto com a ideia de ficar sozinho com a mãe de Maya.
Assim que Maya saiu, a mulher o encarou com ainda mais desconfiança.
— Então, rapaz... o que você realmente quer com a minha filha?
— Eu não entendi a pergunta — disse ele, a voz vacilante.
— Além de ter talento duvidoso, ainda se faz de desentendido?
— Eu não sei o que a senhora está sugerindo. Somos só amigos.
— “Amigos” ... — a velha repetiu com desdém e passou os dedos pelas rodas da cadeira. — Já conheço essa história. Eu também já fui jovem como vocês.
Kilian olhou para o chão e bateu o pé, tentando dissipar o nervosismo.
Finalmente, Maya apareceu com uma pequena bolsa de veludo. Ela olhou para Kilian e depois para a mãe.
— Vamos, Kilian.
A mãe franziu o cenho ao ver a bolsa.
— Onde você vai com isso, menina?
Maya não respondeu. Apenas lançou um último olhar à mãe antes de sair.
— Até mais, senhora — disse Kilian.
— Maya! Vai sair sem me dizer onde, de novo? Vai me abandonar? — A mulher bateu nas rodas da cadeira. — Filhos mal-agradecidos, esses. Um dia ainda me atiro da borda da cidade! Vou desaparecer, e nunca mais você vai ouvir falar de mim, dona Maya!
Maya suspirou, sem se virar.
— Mãe, por favor, você diz isso toda vez. Vem, Kilian.
Ele seguiu Maya, com a sensação do olhar da velha mulher cravado em suas costas até a porta se fechar.
Quando chegaram à frente da casa, ela parou de forma abrupta. Kilian notou que seu rosto estava mais sério.
— Vou te dar isso, mas depois você me paga — disse ela, enquanto retirava da bolsa pendurada no ombro uma pequena poção de líquido dourado que cintilava levemente à luz fraca. — É uma poção de levitação. O efeito faz você flutuar por um tempo e, depois, se cair, será com uma queda suave. Assim, você não corre risco de se espatifar.
Kilian pegou o frasco, surpreso.
— Isso resolve... praticamente todos os meus problemas.
Ele olhou para o líquido brilhante, absorvendo a ideia de finalmente realizar o sonho de Melangie.
Maya suspirou e ajeitou a bolsa no ombro.
— Sabe, Kilian, Melangie não foi a única a ter o sonho de ver a cidade de cima...
Ele levantou os olhos para ela, curioso.
— E por que não fez isso?
Maya deu de ombros antes de desviar o olhar. — Melhor deixar pra lá. Não vale a pena.
Kilian ficou em silêncio por um momento, mas então sorriu levemente.
— Obrigado, Maya. Isso significa muito para mim.
Ela deu um passo para trás, parecendo relutante em se afastar, mas depois disse:
— Melhor eu entrar. Estou muito cansada, e também não quero deixar minha mãe esperando por muito tempo.
— Entendo. — Kilian guardou o frasco no bolso e deu um passo adiante. — Eu vou indo.
— Kilian, espera!
Ele parou e virou-se para encará-la.
— Me desculpa pela minha mãe — disse Maya, com uma expressão de quem carregava mais peso do que deveria.
Kilian balançou a cabeça, num gesto simples que parecia dizer “não foi nada”. Ele olhou para ela uma última vez antes de se virar para seguir seu caminho.
— Quando o pessoal voltar, me visitem na superfície... se até lá o Caelinus não tiver me matado.
Maya soltou uma risada abafada enquanto cruzava os braços.
— Vou estar torcendo para que isso aconteça.
Kilian também riu, depois acenou uma última vez antes de seguir adiante pela rua.
Com a poção de levitação guardada com cuidado no bolso, avançava pelas ruas.
Acima, enormes aeroplanos cargueiros sobrevoavam a massa flutuante de terra. Eles pousavam em um ancoradouro na camada superior.
Kilian seguia por uma via elevada, de onde observava o movimento das pessoas nas ruas mais baixas.
Ao longe, um pequeno grupo se reunia ao redor de um homem ajoelhado no chão, cercado por paladinos.
— Mais um ladrão? — Kilian murmurou, parando por um instante.
Um dos paladinos ergueu a voz para a multidão e anunciou o veredicto:
— Roubo recorrente. Arrombamento de casa. A pena é clara.
Ao lado de Kilian, dois mercadores que passavam conversavam entre si.
— Olha, pegaram ele. Até que enfim.
— Será que ele vai gritar? — perguntou o outro, escorando-se na proteção da borda da rua e esticando o pescoço para tentar ver melhor.
— Sempre gritam — respondeu o primeiro, com um meio sorriso.
Lá embaixo, o paladino mais alto, com uma espada embainhada, virou-se para outro que segurava um pequeno machado.
O ladrão, com o rosto encharcado de suor, murmurava algo inaudível, mas ninguém prestava atenção. O machado brilhou sob a luz do sol.
— Por favor... — o homem suplicou, olhando ao redor com desespero.
O som da lâmina cortando foi abafado pelo barulho da cidade, mas Kilian não precisou ouvir para saber o que havia acontecido.
A mão do homem caiu no chão, e os paladinos, antes de curarem o braço para cessar o sangramento, afastaram-se, deixando o corpo contorcido enquanto a multidão murmurava.
— Ainda teve sorte — comentou um dos mercadores ao lado de Kilian. — Se uma coisa dessas ia acontecer em Sam Brehim...
Kilian desviou o olhar e retomou o caminho.
Quando a tarde caía, ele finalmente alcançou a borda da massa de terra flutuante. Dali, uma visão clara da área dos Beyaras se abria abaixo, com uma queda que parecia interminável.
Logo à frente, a enorme massa vegetal subia da superfície até tocar a camada dos Quangras. Kilian respirou fundo, tentando reunir coragem.
Foi nesse momento que uma voz familiar interrompeu seus pensamentos.
— Vai mesmo pular assim? — Maya emergiu das sombras com um sorriso desafiador.
Kilian se virou, surpreso.
— O que você está fazendo aqui?
— Só queria saber se vai voltar — disse ela, com as mãos para trás.
— Acho que não vou — respondeu Kilian, tentando manter a confiança na voz. — Preciso cuidar da Melangie. Tenho que admitir: Ela precisa mais de mim do que o Cara de Prancha.
— E como pretende saltar? Magia é uma coisa complexa. Até os mais experientes às vezes falham — disse Maya, arqueando uma sobrancelha.
Kilian deu de ombros.
— Não faz mal, vou arriscar. Vou usar a magia que aprendi com Garrik.
— Magos em treinamento geralmente começam praticando essa magia com distâncias menores antes de se arriscarem tanto — retrucou Maya, com o tom mais preocupado.
Kilian sorriu, tentando disfarçar a própria ansiedade.
— Estou bem. Garrik me ensinou bem. E um pouco de risco faz parte da aventura.
Ele se preparou para pular, mas Maya o deteve com um gesto.
— Espera!
Kilian parou, confuso.
— O que foi agora?
— Você não me disse onde mora. Caso você se espatife no chão e morra, precisamos saber a quem avisar sobre a sua morte — disse Maya, com um olhar sério.
Kilian suspirou, olhando por um tempo nos olhos dela.
— Moro no distrito ao lado do evacuado, a oeste. Quando chegar lá, pergunte pela casa de Caelinus, o Paladino.
— Mas a parte térrea de Jillar é enorme — disse Maya, aproximando-se da borda ao lado de Kilian. — Como vou encontrar esse distrito evacuado?
— É o mais fácil de identificar — disse Kilian, apontando para a massa vegetal. — Ali.
Maya assentiu, como se gravasse a informação.
— Tome cuidado...
— Sempre tomo. — Kilian deu um sorriso final antes de se virar para o abismo.
Com um último olhar para Maya, ele respirou fundo e saltou.
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