Volume 1
Capítulo 37: De volta para casa: Parte 1
Kilian sentiu um arrepio percorrer sua espinha ao ouvir o nome do lendário ser. Maya, ainda sonolenta, levantou-se ao notar o movimento atípico na cabana.
— O que está acontecendo? — perguntou ela, enrolada em seu cobertor enquanto caminhava até a janela.
Ao ver a imensa sombra movendo-se lentamente do lado de fora, seus olhos se arregalaram.
— Isso... isso é real? — murmurou, quase incapaz de acreditar no que via.
Nariz de Batata, ainda sonolento, reclamou:
— Mas o que foi agora? Não posso nem dormir mais um pouco? — Ele se levantou, irritado, e foi até a janela. Quando avistou a figura monstruosa, seu rosto se transformou.
— Pelos deuses anões... é... é o Xinjenhal!
Todos ficaram paralisados, observando o gigante que parecia se fundir com a tempestade, como se até a própria natureza o temesse. O vento gelado assobiava nas rochas ao redor da cabana, mas, dentro do abrigo, o ar estava pesado, carregado de tensão e medo.
— Deuses? — perguntou Kilian.
— Ele está indo embora — disse Garrik, aliviado, seus ombros relaxando enquanto a silhueta colossal desaparecia lentamente no horizonte nevado.
— O que você perguntou, Kilian?
— Deuses. O Nariz de Batata falou.
Maya, ainda olhando assustada para a neve, dirigiu um olhar incerto a Garrik.
— Você acha que ele é um deus? Quero dizer, uma criatura dessa magnitude...
Garrik balançou a cabeça.
— Não. Os deuses que eram adorados antigamente morreram há séculos. O Xinjenhal é uma força primordial, mas não exatamente um deus. Ainda assim, ele é uma entidade muito antiga e poderosa. Não deveríamos brincar com nossa sorte.
— Sorte? — perguntou Kilian.
— Sorte — respondeu Garrik, com o semblante sério. — Muito provavelmente sorte. Mas não devemos ficar por aqui para testar isso. O Xinjenhal é o pai dos gigantes do gelo. Talvez matar um deles tenha despertado sua fúria.
Nariz de Batata se aproximou, coçando o bigode enquanto olhava para o lugar onde o gigante desaparecera.
— Então, o que fazemos agora? Ficamos até o amanhecer?
Garrik olhou para a luz fraca da madrugada, que já começava a surgir no horizonte, refletida na neve.
— Não. Partimos agora, enquanto temos a chance. Se o Xinjenhal estava apenas de passagem, não queremos estar aqui caso ele decida voltar.
O grupo se apressou. Recolheram os pertences em silêncio. A tensão ainda estava no ar.
A cada instante, lançavam olhares inquietos para a vastidão branca.
Com a magia de proteção contra o frio ainda ativa, adentraram a tundra. Suas pegadas logo desapareceram na neve.
— Vamos seguir rápido — disse Garrik. — Com sorte, em breve estaremos longe do perigo.
O grupo assentiu e, em silêncio, começou sua marcha pela imensidão branca.
O vento cortava o rosto de todos enquanto avançavam pela neve. Kilian, sem conseguir conter a curiosidade, falou em tom baixo:
— Então, os deuses... Você acha que eles existem de verdade?
Maya, irritada, virou-se para ele com um olhar exasperado.
— Você nunca estudou? Nos reinos dos anões, ainda cultuam deuses.
— É verdade, garoto — resmungou Nariz de Batata. — Embora seja uma grande besteira, ainda cultuam.
Cara de Prancha grunhiu em concordância.
— Bando de supersticiosos, presos ao passado.
Garrik, enquanto lutava contra o vento e segurava o chapéu, perguntou:
— Cara de Prancha, pegou o Zig Resil?
Cara de Prancha bateu na bolsa com um sorriso.
— Sou idiota, por acaso?
Depois de um longo tempo de caminhada pela madrugada tempestuosa, o grupo avistou os paredões à frente. O portal oscilava; sua energia tremeluzia no ar frio e instável.
— O portal está começando a enfraquecer — disse Garrik, a expressão séria. — Vamos atravessar rápido. Maya primeiro, depois Kilian. Os anões seguem, eu por último.
Todos concordaram, sem questionar.
Maya foi a primeira a atravessar. O portal brilhou, e uma rajada de vento os atingiu com força, quase os derrubando.
— Depressa! — gritou Garrik, e Kilian a seguiu logo atrás.
Nariz de Batata hesitou ao ver o portal vacilar. E, naquele instante, tudo desmoronou. O portal desapareceu num flash ofuscante, restando apenas o silêncio.
Kilian e Maya caíram de joelhos no palco empoeirado do teatro abandonado, suas respirações entrecortadas ecoavam pelo vazio. O ar estava frio, mas não tanto quanto do outro lado.
— Eles... ficaram lá? — sussurrou Maya, olhos arregalados, ainda encarando o ponto onde o portal estivera.
Kilian olhou para o espaço vazio, o peito apertado.
— E agora? — murmurou, a voz quase inaudível.
Após um breve silêncio, apenas o som das respirações entrecortadas quebrava a quietude. Maya cruzou os braços e deu um passo à frente, com desdém.
— A gente espera — disse ela. — Não percebeu que eles ficaram do lado de lá?
Kilian olhou para o chão e apertou os lábios. Sua testa se franziu, e ele cruzou os braços como se quisesse se proteger da pressão.
— Sim, eu percebi. Não sou idiota. Mas e eles? Como vão ficar?
Maya soltou uma risada seca, quase como se zombasse dele.
— Tá preocupado com eles, é? Como se eles não soubessem se virar sozinhos. Francamente, Kilian...
Ele ergueu a cabeça, os ombros enrijecidos. O tom dela o incomodava, mas ele segurou a resposta na ponta da língua. Evitou encará-la diretamente.
— Não é só isso. Agora, sem o portal, como eles vão voltar?
Maya bufou, balançando a cabeça como se fosse óbvio.
— O Garrik traz eles de volta. Daqui a algum tempo, estão por aí, bebendo na taverna como sempre.
Kilian olhou para ela, os olhos estreitos, claramente incomodado com a indiferença.
— Algum tempo?
Ela ergueu as mãos, exasperada.
— Sim, a Planície do Xinjenhal é longe daqui. Não sabia? Devem levar algumas semanas pra voltar.
A expressão de Kilian endureceu, os lábios trêmulos ao processar a ideia. Ele apertou o punho ao lado do corpo.
— Tudo isso? Caramba... e agora?
Maya avançou mais um passo, enquanto o fitava com uma mistura de impaciência e frieza.
— Sim. Você não presta atenção ou o Garrik não te ensinou direito? Sem portal, eles vão ter que se teletransportar. E isso vai depender da energia mágica dele.
Kilian passou a mão pela testa e respirou fundo. A irritação crescia dentro dele, mas ele ainda tentava manter a calma.
— Que droga... mas pelo menos eles vão ficar bem, né?
Maya o encarou por um instante, o rosto sem expressão, antes de erguer uma sobrancelha, como se enxergasse algo além das palavras dele.
— Tá, fala de uma vez. Qual é o teu problema? — sua voz carregava uma nota de desconfiança.
Kilian hesitou e desviou o olhar. Mais uma vez, respirou fundo enquanto se preparava para o que sabia que seria uma conversa difícil.
— O meu problema é que... eu precisava, bem, eu preciso do dinheiro do Zig Resil — disse, finalmente, com a voz baixa.
Maya cruzou os braços e o olhou de cima a baixo, como se avaliasse a sinceridade dele.
— Dinheiro? Ah, por favor. Quando você partiu com a gente, nem sabia que haveria Zig Resil. O que você tá escondendo?
Kilian cerrou os punhos. Sabia que ela não o deixaria em paz até ele explicar.
— Eu sei que não tinha a promessa, mas o Cara de Prancha prometeu que me daria o dinheiro...
Maya piscou, surpresa. Seu rosto suavizou por um segundo, mas logo voltou a se fechar numa expressão cínica.
— Pois é, você falou antes. Mas que tipo de pessoa manda um garoto sair por aí atrás de dinheiro pra realizar o próprio sonho? Que absurdo é esse?
— Não é assim — Kilian respondeu, de braços cruzados, os ombros tensos. — Fugi justamente para fazer isso. Eles nunca permitiriam.
Ela estreitou os olhos e mordeu o lábio.
— Caramba, Kilian... Quando eles souberem, você vai estar...
Kilian ergueu os olhos. O aperto no peito ficava cada vez mais intenso enquanto falava.
— E como você vai fazer isso? E o dinheiro, quanto é? — perguntou, voltando ao seu tom mais prático.
— Dez peças de ouro.
Maya soltou um longo suspiro e bateu o pé no chão com leveza, o olhar distante enquanto calculava as possibilidades.
— Dez peças é muito dinheiro, eu não tenho isso pra te emprestar. Mas, sabe... eu tenho a solução. Você vai ficar me devendo. E eu cobro caro. Vamos até minha casa.
Kilian e Maya se levantaram do palco e caminharam até as portas de madeira do teatro. Elas rangiam quando Maya as empurrou. Ele puxou o capuz e seguiu em silêncio. As ruas desertas dos Quangras estavam envoltas em penumbra, com apenas algumas luzes dispersas iluminando o caminho.
— Vamos por aqui. Daqui a pouco a carruagem vai passar — disse Maya, enquanto apontava o caminho com um aceno de cabeça.
— Carruagem? — Kilian franziu o cenho, curioso.
— Sim, a carruagem que os Quangras fizeram. Só passa aqui. Bem diferente da superfície, onde o pessoal usa animais.
— Eu vi uma dessas quando cheguei. Elas são como os aeroplanos lixeiros, né? Autoguiadas.
— Isso mesmo — Maya confirmou, enquanto caminhavam em direção a uma plataforma de pedra simples. O chão possuía inscrições que brilhavam na forma de um círculo azul.
Ela retirou duas moedas de cobre do bolso e as colocou numa ranhura na plataforma.
— Cada moeda vale oito ciclos de viagem. Vamos precisar de cinco para chegar em casa.
Assim que Maya terminou de falar, o som metálico de engrenagens apareceu. Da escuridão, uma estrutura de madeira e metal surgiu. Era maior do que Kilian esperava, com pelo menos cinquenta lugares. As portas se abriram ao lado de Maya.
Kilian deu um passo para trás, surpreso.
— Uau! De perto essa coisa é assustadora.
— Não me faça passar vergonha, matuto da superfície — Maya bufou, debochada, enquanto embarcava. Kilian a seguiu, e a porta se fechou com um rangido peculiar.
O interior era espaçoso, com assentos de couro bem distribuídos, enquanto luzes suaves iluminavam o ambiente. Ele se acomodou ao lado de Maya, ainda fascinado pela máquina.
— Admita, Kilian, isso é incrível, né? Aposto que na superfície vocês não têm nada parecido com isso — Maya falou com um leve sorriso de canto ao perceber o fascínio dele.
— É... — Kilian desviou o olhar para a janela, onde as engrenagens externas se moviam como se a carruagem tivesse vida própria.
Maya cruzou os braços, satisfeita com a reação dele, e ajeitou-se no assento.
A carruagem começou a se mover suavemente, quase imperceptível. Kilian observava cada detalhe.
— No fim, você não me falou sobre ela — disse Maya, quebrando o silêncio.
Ele ficou quieto por um instante, antes de se ajustar no assento.
— Da Melangie? Ah, sim. Ela me criou desde pequeno.
— Você não tem pais, né? — Maya perguntou, enquanto inclinava-se um pouco na direção dele.
— Não... Minha mãe era a Mestra Ledígia, da Ordem dos Paladinos. Ela morreu no meu parto.
Maya arqueou uma sobrancelha, enquanto um sorriso irônico surgia em seus lábios.
— Vejam só, parece que temos uma figura importante dentro da carruagem.
— Está duvidando?
— Eu? Capaz. Mas é meio estranho, não acha? Um filho de uma Mestra Paladina não ser iniciado no palatinato e viver na miséria, igual a você.
— Bem, não sei explicar direito, mas Caelinus me disse uma vez que era por causa do voto de pobreza dela.
— É mesmo? Se for assim, está explicado — Maya riu, balançando a cabeça. — E a Melangie? Onde ela entra nisso?
— Quando minha mãe morreu, o pai de Melangie me adotou, mas ele morreu alguns anos depois, quando eu ainda era pequeno. Então, como ela é mais velha, me criou. Ela e Caelinus.
— Entendo... — Maya bocejou.
Ela o observou por um momento em silêncio, antes de se inclinar para trás, seus olhos cada vez mais pesados. Seus ombros relaxaram, até sua cabeça tombar suavemente para o lado, repousando no ombro de Kilian.
Ele permaneceu imóvel, sem querer acordá-la, enquanto a carruagem continuava seu trajeto pelas ruas, agora menos silenciosas com o início do amanhecer.
Kilian tocou no ombro de Maya.
— Chegamos.
Ela acordou, e os dois desceram. A carruagem desapareceu no círculo azul. Eles então caminharam em silêncio até Maya apontar para uma pequena casa desgastada.
— É aqui? — Kilian perguntou, surpreso, enquanto olhava para a garota.
— O que foi? Esperava um palácio? — ela respondeu, com um sorriso de canto.
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