Intangível Brasileira

Autor(a): Richard P. S.


Volume 1

Capítulo 36: A planície do Xinjenhal

A neve caía intensamente do lado de fora, uma barreira branca e intransponível. Dentro da cabana, o calor e a luz do fogareiro ofereciam um refúgio aconchegante e vital.

Ao redor daquela fonte de calor, cada um se envolvia em suas atividades. Garrik folheava um livro, enquanto Nariz de Batata, como de costume, preparava a refeição. O cheiro de ervas e especiarias se espalhava pelo ar.

— Espero que dessa vez a comida fique melhor — provocou Cara de Prancha, talhando um dos fêmures do gigante com uma adaga.

— Não me leve a mal, Nariz de Batata, mas já estou cansado de sopa — resmungou Kilian, concentrado no trabalho ao lado do anão.

— Sopa é o que temos de melhor no momento, meu filho — retrucou Nariz de Batata, sem levantar os olhos do caldeirão.

— Ah, claro. E quem poderia esquecer o toque gourmet de Nariz de Batata? — Cara de Prancha zombou, fazendo um gesto com as mãos. — Sempre adicionando aquele tempero especial, né?

— Não sou que nem você, que coa o chá preto com as mesmas meias que limpa o cu — retrucou Nariz de Batata, apontando a colher de pau.

Kilian tentou segurar a risada, mas deixou escapar um riso baixo. Cara de Prancha deu um tapinha nas costas do garoto.

— Viu, garoto? — disse Cara de Prancha. — Nariz de Batata não entende nada de sutileza. E lembra: o Zig Resil está na parte compacta do osso. Concentre-se nisso.

— Sim, sim... — Kilian respondeu ainda sorrindo, enquanto lascas de osso voavam a cada movimento preciso das adagas. A pilha ao lado deles crescia.

Sentada perto do fogareiro, Maya conjurou uma pequena bola de água que flutuava acima de suas mãos. Ela olhou para Kilian e percebeu que ele já tinha uma esfera de água também, maior do que a dela.

— Kilian, essa bola não está grande demais? — disse Maya, com uma pontada de irritação.

Kilian ergueu uma sobrancelha, dando de ombros. — Garrik disse que está tudo bem.

— E está — disse Garrik, sem levantar os olhos do livro. — O corpo de Kilian já suportou uma carga alta de Etherdoorium. Talvez ainda haja resquícios disso alterando o poder mágico dele.

Maya bufou e deixou a bola de água cair no chão, apagando-se. Voltou ao seu lugar com um olhar insatisfeito, mas não disse mais nada.

O silêncio foi quebrado por Kilian:

— Quanto tempo mais a gente vai ficar preso aqui?

— Pouco tempo — respondeu Garrik, virando mais uma página. — E pensar que já se passaram três semanas desde que chegamos. Depois que o Zig Resil estiver pronto, só precisamos esperar a tempestade acalmar... se tivermos sorte.

— Sorte? — resmungou Cara de Prancha. — Com essa comida aqui, vamos precisar é de um milagre.

Nariz de Batata olhou desafiador.

— Milagre? Não aguento mais ouvir você falando de chá de meia cagada, isso sim.

Cara de Prancha gargalhou, apontando para ele.

— Acha que consegue fazer melhor? Vai lá fora caçar um mamute de neve e vamos ver você transformar isso num assado ranhoso.

Maya balançou a cabeça, mas havia um leve sorriso nos lábios.

— Vocês dois nunca se cansam disso, não é?

— Faz parte do charme deles — comentou Garrik, finalmente desviando os olhos do livro. — Estão nessa briga amistosa há tanto tempo que ninguém mais dá bola.

— Quando eu vejo eles assim, me lembro dos amigos do Caelinus — comentou Kilian, ainda focado no trabalho. As lascas de osso já formavam uma pilha considerável. — Na Ordem dos Paladinos também tem muitos anões. Eles tão sempre contando piadas engraçadas.

Cara de Prancha juntou as últimas lascas e inspecionou a pilha antes de assentir com satisfação.

— Pronto! Agora, garoto, temos que ferver até desmanchar. Paciência é a chave — disse ele, levantando a panela cheia de lascas e colocando-a próxima à panela de sopa. — Fique mexendo até as lascas virarem uma pasta.

Kilian assentiu, pegou uma longa colher de pau e começou a mexer com cuidado, observando o calor fazer seu trabalho. Ao lado dele, Cara de Prancha fez uma pausa, olhando para o jovem com um meio sorriso.

— Tá se saindo bem, garoto. Continua assim e talvez aprenda mais do que só como mexer uma panela — disse o anão, com um tom mais sério.

Kilian sorriu levemente, satisfeito com o elogio.

Maya olhou pela janela.

— A tempestade está violenta hoje.

Garrik, sem tirar os olhos do livro, murmurou:

— Não é à toa que chamam esse lugar de Planície do Xinjenhal.

Kilian levantou a cabeça, curioso com o nome. Maya sorriu de leve.

— Será que você consegue contar hoje? Sempre que começa, algo te interrompe.

Garrik fechou o livro com um estalo e ajeitou-se na cadeira.

— Não é má ideia. Temos tempo de sobra para uma história.

Ele respirou fundo e assumiu um tom narrativo. — Xinjenhal... uma montanha ambulante. A personificação pura do frio, devastando tudo ao redor.

Nariz de Batata arqueou as sobrancelhas. — O bom e velho Xinjenhal. Uma boa fábula.

— É o que alguns dizem — continuou Garrik —, uma lenda. Mas eu discordo. A tempestade ao redor dele é tão forte que apaga qualquer vestígio de sua passagem.

Maya voltou a olhar para a tempestade lá fora. — Será que é ele?

Garrik deu de ombros. — Pode ser. Os nômades dessas planícies acreditam firmemente em sua existência. As rotas de migração deles são baseadas na suposta trajetória do Xinjenhal.

Enquanto mexia a panela, Kilian perguntou: — E você, acredita?

— Não sei. Mas onde há fumaça, há fogo — disse Garrik, pensativo.

— Ou, nesse caso, gelo. Nada é impossível — acrescentou Kilian.

Nariz de Batata fez uma careta. — Existe e ninguém nunca viu?

Garrik inclinou a cabeça. — Talvez porque os que veem não vivem para contar a história.

Cara de Prancha balançou a cabeça. — Só ficaria triste por ainda não saber como extrair Tritângeno dele.

— Não se preocupe com isso — respondeu Garrik. — Não há como matar algo como o Xinjenhal. Mas, se fosse possível, provavelmente ele seria uma mina de Tritângeno.

Nariz de Batata resmungou: — Um ser de gelo que nunca deixa rastros... parece mais um fantasma.

— Não exatamente — corrigiu Garrik. — Dizem que está além da vida e da morte. É o próprio inverno encarnado. Onde passa, tudo perece. Não por maldade, mas somente por existir.

Maya franziu a testa. — Ele destrói porque essas coisas para ele devem ser tão pequenas como são as formigas para nós.

— Sim. O frio que traz é tão forte que, segundo os anciãos, pode congelar até o tempo. As estrelas tremem, o som se distorce, e até os ventos se curvam. O que ele toca vira gelo eterno.

Kilian parou de mexer a panela. — Mas isso já é exagero, certo?

— Existem alguns relatos — disse Garrik. — Árvores congeladas no meio de uma queda, animais petrificados em gelo, cidades soterradas. Mas o Xinjenhal não caça. Ele vaga. E quem cruza seu caminho... é engolido pelo inverno.

Cara de Prancha riu. — Se tivermos sorte, podemos esbarrar nele.

Garrik balançou a cabeça. — Não há sorte ao enfrentar o Xinjenhal. Seu corpo é gelo inquebrável e se regenera. Não é uma criatura para lutar, mas algo de que você tenta escapar. Ao menos, é o que dizem.

Maya deu um passo para trás. — E se a tempestade lá fora for ele?

— É impossível saber — suspirou Garrik. — A tempestade dele é tão densa que é difícil distinguir o vento de sua presença. Se for, nossa melhor esperança é que ele não nos note.

Nariz de Batata cruzou os braços. — Já enfrentei tempestades piores.

— Mesmo? — Garrik arqueou uma sobrancelha.

Cara de Prancha sorriu. — Claro, humano. Não esqueça que essas planícies ficam perto da nossa terra. Aqui é o nosso quintal.

O silêncio se instaurou aos poucos, enquanto cada um voltava às suas atividades. Kilian mexia a panela, concentrado no líquido denso que borbulhava lentamente. O osso começava a se dissolver em algo parecido com uma substância brilhante.

Cara de Prancha se aproximou e examinou o conteúdo com atenção. — Está pronto — disse ele, acrescentando alguns ingredientes à mistura.

Kilian manteve o ritmo constante da colher, enquanto os outros se aproximavam. A curiosidade pairava no ar, refletida nos olhares atentos e nos sorrisos de satisfação.

— Onde está o Zig Resil? — perguntou Kilian, franzindo a testa.

Cara de Prancha fez um gesto com a mão. — Vai demorar um pouco até o coagulante agir. Agora é só deixar no fogo e descansar.

— Parece que estamos fazendo progresso — comentou Garrik, após observar a mistura cintilante.

Maya se inclinou um pouco mais. — Não é um Albastrógeno, mas pelo menos estamos indo na direção certa.

Cara de Prancha assentiu, satisfeito. — O processo é lento, mas amanhã teremos o condutor pronto.

Com um suspiro coletivo, o grupo se dispersou. Nariz de Batata serviu a sopa, e todos se acomodaram ao redor do fogareiro. O calor da comida e a companhia suavizavam o impacto da tempestade lá fora.

— Pelo menos a sopa está melhor do que ontem — comentou Cara de Prancha, soprando a fumaça do prato.

Depois da refeição, a nevasca engrossou, e com isso a noite chegou prematura. Um a um, todos se recolheram para as suas camas.

Horas depois, o som violento da tempestade foi interrompido por um toque sutil. Kilian acordou, ainda sonolento, e viu Cara de Prancha ao seu lado. O rosto do anão estava cheio de expectativa.

— Vem, garoto — sussurrou ele. — Tenho algo para te mostrar.

Sem fazer barulho, Kilian seguiu o anão até a panela. Cara de Prancha levantou a tampa com cuidado, revelando o condutor finalmente formado. A substância solidificada brilhava num verde vibrante, quase como uma joia.

— Uau! Isso é incrível! — Kilian elevou um pouco a voz, e logo depois se conteve. — Nunca imaginei que veria algo assim nas minhas mãos!

Cara de Prancha sorriu, satisfeito com a reação. — Aqui está o Zig Resil. Um bom trabalho, não?

Kilian estava radiante. — Eu... não sei o que dizer. E pensar que eu ajudei também.

O anão coçou a barba, visivelmente desconfortável com o tom emocional da conversa. — Sabe, garoto... desde o começo eu senti uma coisa diferente. Você não deveria estar aqui, mas, mesmo assim, veio. É uma coragem e tanto.

Kilian refletiu por um momento, absorto nas palavras do anão, e finalmente sorriu. — Eu só fiz o que podia para ajudar.

Cara de Prancha deu um tapinha firme no ombro de Kilian. — E isso foi mais do que o suficiente. Agora vamos descansar. Amanhã, voltamos.

Enquanto eles voltavam para suas camas, algo interrompeu o silêncio. Um som estranho, abafado, vinha de longe, através da entrada da semigruta.

— Mas que porcaria foi essa? — sussurrou Cara de Prancha, caminhando junto com Kilian até a janela da cabana, protegida dos ventos violentos por uma formação rochosa.

O que eles viram do lado de fora fez o sangue gelar.

No meio da nevasca, uma sombra colossal se movia, lenta e sinistra, como se o próprio inverno estivesse ganhando forma. A figura gigantesca se arrastava, seus contornos borrados pela tempestade, mas inegavelmente aterrorizantes.

Kilian se virou para Cara de Prancha, que também estava de pé, com os olhos fixos na janela.

Antes que Kilian pudesse falar, Garrik se aproximou por trás deles, o rosto pálido à luz do fogo. — Isso... — sua voz mal saiu, carregada de tensão — ...é o Xinjenhal.

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