Volume 1
Capítulo 35: Tomada de assalto: Parte 6
Jessiah caminhava com passos firmes em direção à tenda onde Caelinus realizava os últimos julgamentos. O ar estava pesado, carregado com o cheiro metálico de sangue e de decomposição.
À medida que se aproximava, seus olhos eram atraídos para os corpos dos executados, empilhados de maneira apressada em uma área improvisada ao lado da tenda. Um leve zunido de moscas completava o cenário grotesco.
Ele parou por um momento. Seu olhar passou pelas roupas esfarrapadas, pelos corpos sem nome e pelos sinais de rigidez que já começavam a tomar forma.
— Quantos mais? — murmurou, o olhar perdido por um instante, antes de retomar a caminhada.
Um oficial da Beyara, que supervisionava os soldados, chamou sua atenção ao passar correndo.
— Oficial, uma palavra — disse Jessiah, com voz firme e postura imponente.
O oficial se aproximou rapidamente, o cenho franzido em prontidão.
— Preciso que você pouse o outro aeroplano. Estamos partindo em breve.
— Sim, senhor — respondeu o oficial, prestando continência antes de se afastar para cumprir a ordem sem hesitar.
Ao entrar na tenda, Jessiah foi atingido por um calor abafado e o cheiro de suor e corpos. O odor dos mortos já havia penetrado o ambiente, tornando o ar ainda mais denso e difícil de respirar.
Murmúrios sussurrados se espalhavam como um véu entre os presentes. Os olhares dos moradores, assustados e cansados, fixavam-se nos paladinos com um misto de temor e resignação.
Jessiah percorreu o espaço com os olhos. A fila dos últimos moradores se estendia até a lona da entrada, onde alguns se abanavam nervosamente ou tremiam de pé.
Diante de Caelinus, um homem exausto tentava manter a postura. Suas mãos tremiam de suor, e o olhar parecia prestes a desabar.
— Senhor... eu guardei drogas na minha casa para os traficantes — começou ele, a voz trêmula como papel rasgado. — Mas não tive escolha. Tenho uma filha e... eles ameaçaram colocar aquela semente dentro dela.
Caelinus o encarou com uma frieza cortante. O silêncio entre os dois pesou como um bloco de pedra.
— E você sabia que essas drogas poderiam destruir a vida de outras garotas, como sua filha?
O homem engoliu em seco. O pânico em seus olhos era de um homem derrotado antes mesmo da sentença.
— Eu... eu só queria protegê-la. Por favor, senhor, fiz isso por desespero.
Caelinus virou o rosto com desdém. Seu olhar era o de quem já havia julgado.
— Tenho um veredito para você — disse, sem emoção na voz, e sinalizou para um dos guardas.
— Leve-o para o grupo DII.
— DII? O que é isso? — o homem implorou, com o pânico estampado no rosto. — Por favor, eu não sei o que significa...
Caelinus suspirou, impassível.
— Se fosse para ser executado, já teria acontecido. Não se preocupe com isso agora.
O guarda agarrou o homem pelo braço e o conduziu para fora. Lá, outros prisioneiros aguardavam com expressões de medo e resignação. Jessiah observou a cena em silêncio por alguns instantes, então se aproximou de Caelinus.
— Como estão os julgamentos?
Caelinus cruzou os braços. Soltou um suspiro cansado.
— Quase terminando. Aelia me contou o que aconteceu lá em cima.
Jessiah assentiu. Seu olhar voltou-se para os rostos abatidos dos moradores que restavam.
— Espero que possamos oferecer uma segunda chance a essas pessoas.
Caelinus esboçou um sorriso sem humor.
— Essa é a parte difícil. Mas faremos o que precisa ser feito.
Jessiah pousou a mão no ombro do companheiro.
— Continue o bom trabalho. Vou garantir que tudo esteja em ordem. Quando terminar, explico tudo para eles.
Com passos firmes, Jessiah deixou a tenda. Do lado de fora, os montes de corpos ainda eram difíceis de encarar. O cheiro da morte impregnava o ar ao redor, tornando cada respiração um desafio.
Ele avançou em direção a um oficial da Beyara que coordenava um grupo de soldados. No céu, um dos aeroplanos começava a descer lentamente. Suas grandes velas lançavam sombras compridas sobre o solo sujo e compactado.
Soldados e moradores levantavam os olhos para acompanhar o pouso. Havia tensão no ar, uma expectativa abafada, como se todos soubessem que algo decisivo estava prestes a acontecer.
O oficial da Beyara se aproximou. Sua expressão era rígida, postura militar impecável.
— Quais são as ordens, senhor?
Jessiah lançou um olhar atento ao redor. Viu grupos de homens sentados em silêncio e mulheres espiando pelas janelas, com os filhos nos braços e o olhar carregado de ansiedade.
— Agora que o aeroplano pousou, reúna todos aqui fora. Divida-os em grupos conforme as sentenças. Precisamos explicar o que vai acontecer.
O oficial assentiu e logo começou a distribuir ordens. Soldados se moveram com eficiência, conduzindo os homens e mulheres para o espaço aberto. Grupos começaram a se formar, acompanhando as decisões anteriores de Caelinus.
O som das botas batendo no chão se misturava aos murmúrios nervosos. Ao fundo, o aeroplano estacionado parecia observar tudo em silêncio.
Jessiah subiu em uma plataforma improvisada. Sua figura se elevava sobre a multidão agora reunida. Os rostos voltaram-se para ele, uma mistura de medo, dúvida e uma centelha de esperança.
Ele ergueu uma mão.
— Atenção!
A voz ecoou com força, cortando o burburinho de forma instantânea.
— Sei que estão com medo. Cheios de dúvidas.
Seu olhar percorreu a multidão, detendo-se brevemente em cada rosto.
— Vim explicar o que vai acontecer agora.
O silêncio era absoluto. Ninguém se atrevia a interromper.
— Doo tirou de vocês o pouco que tinham. Ele e seus capangas usaram da força para garantir que vocês não tivessem acesso ao que lhes pertencia. Riquezas foram descobertas aqui, entre o lixo.
Jessiah fez uma pausa. Depois continuou, firme:
— Itens mágicos de grande valor foram encontrados. Muitos estavam escondidos. Muitos foram roubados.
Os rostos enrijeceram. Murmúrios começavam a surgir, acompanhados de olhares indignados.
Jessiah ergueu a mão novamente, exigindo silêncio.
— Esses itens foram confiscados. E não vão permanecer com Doo.
A multidão prestava atenção, completamente absorvida.
— Os Beyaras compraram tudo. O valor arrecadado será usado para adquirir parte de um distrito em Jillar. E nesse lugar, todos vocês terão novas casas.
O espanto percorreu o público. Olhares se cruzavam, tentando confirmar se haviam ouvido certo.
— O que sobrar será distribuído em dinheiro. Cada um de vocês, e suas famílias, terá o suficiente para recomeçar.
Por um instante, ninguém reagiu. Apenas o som do vento movendo os panos das tendas e o metal das armaduras preenchia o espaço.
— Vocês terão uma segunda chance.
Ele olhou para Aelia, que observava de longe.
— Aelia os levará para Jillar.
Mais alguns segundos de silêncio. Então ele continuou:
— O processo será feito por ordem de julgamento. Primeiro, os inocentes. Depois, os dos grupos FII e FI. Por último, se ainda houver moradias e recursos, os do grupo DI e DII.
As palavras caíram como um veredicto sobre a multidão. Alguns baixaram os olhos. Outros mantinham o olhar fixo, processando tudo.
Jessiah fez uma última pausa.
— Este lugar, o Vale do Suplício, agora pertence aos Beyaras. Os aeroplanos lixeiros cobrirão esta favela ainda hoje.
O tom final era definitivo.
— Ninguém mais poderá voltar aqui.
Os rostos antes tensos agora pareciam mergulhados em silêncio. Não havia protestos. Apenas o som de respirações contidas e o estalo ocasional de madeira sob os pés dos soldados.
A mensagem estava clara. O futuro havia sido traçado.
O aeroplano que estava na casa de Doo alçou voo, cortando o céu em direção a Jillar.
Enquanto isso, o segundo aeroplano começou a embarcar os moradores declarados inocentes. Para eles, o Vale do Suplício — com sua lama, lixo e escuridão — se tornaria apenas uma lembrança distante.
Quando a aeronave voltou, os grupos seguintes começaram a embarcar. Alguns hesitaram na entrada, outros correram como se fugir daquele lugar fosse o último resquício de dignidade que lhes restava. Todos compartilhavam o mesmo olhar: alívio, misturado a um medo que ainda não sabiam explicar.
Jessiah observava em silêncio. Braços cruzados, expressão dura, corpo firme. Mas os olhos o traíam — estavam exaustos.
Caelinus aproximou-se. O olhar fixo no aeroplano que já se preparava para levantar voo novamente. Havia tensão nos ombros, como se ele carregasse algo além do cansaço físico.
— Vai ficar até o ultimo embarque? — perguntou, sem rodeios.
— Sim. Agora é o pessoal a quem devemos favores: FII e FI. O aeroplano com os tesouros de Doo está voltando.
— Os com desfavores — disse Caelinus, com um meio sorriso que não alcançou os olhos.
— Pois é...
O silêncio se instalou por um instante. O som das velas agitadas cortava o vento acima deles.
Caelinus apertou o maxilar antes de falar:
— Acabaram os julgamentos.
A voz era seca, como quem já estava há horas além do próprio limite. Jessiah assentiu, mas não olhou para ele.
— Toda essa operação só foi possível porque você estava aqui — disse, enfim. — Fez um bom trabalho. Um trabalho difícil.
Caelinus manteve-se em silêncio, como se não soubesse o que fazer com aquele elogio.
Jessiah virou o rosto para ele.
— Mas me diga... como sabia tanto sobre o Vale? Você nunca comentou nada. E, de repente, tem informações detalhadas sobre tudo. Pessoas, nomes, rotas, casas.
Caelinus bufou. Virou o rosto para o horizonte e respondeu sem disfarçar a irritação.
— De novo com isso? Pela milésima vez, não fui eu.
— Mas então quem foi?
— Eu não sei — respondeu, cerrando os punhos. — Mas desconfio.
— Desconfia?
— Do Kilian — completou, com um fio de raiva na voz. — Aquele garoto...
Ele parou, os olhos faiscando.
— Se foi ele... eu juro que mato.
Jessiah piscou devagar, como quem tentava digerir a resposta.
— Kilian?
Antes que Caelinus pudesse responder, o rugido de dezenas de aeroplanos lixeiros dominou o céu.
Um a um, começaram a despejar toneladas de lixo sobre o Vale.
As casas desapareciam sob a chuva de entulho. Os telhados viravam poeira. As vielas, engolidas por barrancos de metal, pedra e madeira podre.
Jessiah e Caelinus observaram em silêncio. Os sons de destruição tomavam conta do lugar, abafando até mesmo os gritos dos que ainda esperavam embarcar.
Ao redor deles, os rostos dos moradores se misturavam entre choque e resignação.
O destino do Vale do Suplício estava selado. Enterrado por aquilo que o sustentou por tantos anos: o lixo de Jillar.
***
Doo estava sentado em seu trono improvisado, os olhos fixos no horizonte, onde os aeroplanos lixeiros despejavam entulho sobre o que restava de sua mansão. O cheiro de destruição era forte, e seus capangas, inquietos, permaneciam ao redor, aguardando instruções.
— Chefe, o que faremos agora? — um deles se adiantou, a voz cheia de ansiedade.
Doo não respondeu de imediato. Levantou a mão, ao mesmo tempo que observava o anel em seu dedo e o girava. Depois de um longo suspiro, falou com firmeza:
— Vamos recuperar tudo. Mas dessa vez, sem ingenuidade.
Ele olhou para os capangas, sua expressão se tornava mais intensa.
— Quero saber quem está por trás dessa missão. Alguém tem informações sobre quem lidera essa incursão?
Os capangas trocaram olhares. Eles hesitaram por um momento, até que um deles se pronunciou.
— Chefe, escutamos alguns nomes importantes. — O homem parou, aguardando aprovação para continuar.
— Fale. — Doo ordenou, impaciente.
— Como o senhor sabe, a Ordem dos Paladinos está envolvida. O líder dos julgamentos é Caelinus, um dos mais respeitados. Aquele que esteve aqui é Jessiah, outro paladino de renome. E...
— E a garota? — interrompeu Doo, ainda mais impaciente. — Eu tenho um palpite, mas quero que me confirme ele.
O capanga fez uma breve pausa, como se guardasse a informação mais importante para o final.
— Aquela garota, que esteve aqui, é Aelia Vanlasnor, filha do General Vanlasnor, líder dos Beyara, aquela mega companhia militar da superfície.
Os olhos de Doo brilharam com uma mistura de raiva e satisfação.
— A filha do General Vanlasnor? Interessante... — Ele murmurou, mais para si mesmo.
O silêncio caiu sobre a sala enquanto ele processava a informação. Doo ergueu a mão novamente, desta vez o anel em seu dedo parecia brilhar. Ele passou o polegar pela superfície da joia e, com um sorriso frio, falou:
— Vamos primeiro contatar os druidas. Eles ainda podem ser úteis.
Ele se levantou, agora com um olhar decidido.
— Depois, vamos caçar cada um deles. Começaremos pelos paladinos... e então, pegaremos a menina. Um por um, eles vão pagar por isso.
Os capangas assentiram, em uníssono.
— Sim, chefe.
Enquanto a conversa terminava, mais uma carga de lixo desabava sobre a mansão, soterrando os escombros que restavam.
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