Vol. 1 – Arco 1

Capítulo 4: Maldito Hippie Sujo (1)

Woodnation 9:28 da noite, treze de Julho.

Com a brisa do vento atingindo a sua bundinha desprotegida, o investigador Leonard Mystery estava frente a frente com os portões da mansão de Amadeus Stevens, com um saco cobrindo a cabeça.

O saco portava dois buracos na área dos olhos e outro no lugar da boca, por motivos óbvios. Aquilo fora a única coisa capaz de esconder a sua identidade que encontrou naquele estacionamento velho. 

Não se encontrava mais vestido com aquele avental hospitalar, pois pegara um bando de trapos no l̶i̶x̶ã̶o̶ estacionamento para usá-los como roupas. Tudo para que não tivesse a identidade descoberta.

Ainda assim, não teve coragem de cobrir as suas partes de baixo — vulgo  “bolas de aço” — com algo tirado do estacionamento, visto a higiene que o local possuía. O máximo que pôde fazer foi pegar uma mini-saia. 

Um homem bombado e peludo vestindo trapos, um saco na cabeça e uma mini-saia. Talvez aquela não tenha sido a sua melhor ideia.

Depois de caminhar até as costas da mansão, escalou o muro sem tempo para frescuras e logo chegou ao topo. Discretamente, desceu a outra superfície do muro e pousou em cima de um amontoado de arbustos, entrando no quintal.

Mal tinha tempo para comemorar, pois à sua frente, ainda havia um grande campo de gramado sintético. Na área, uma piscina que só não era maior do que o próprio quintal. 

Claro, isso naturalmente não tem nada de ruim. Seria uma ótima notícia se Leonard fosse um convidado que pudesse curtir na piscina, só que o caso não era este: a única coisa que curtiria se fosse visto pelo dono da casa seria uma bela soneca no colo do capeta.

Sabendo disso, resolveu que seria o mais discreto possível. Usaria todas as informações de seu banco de dados mental sobre filmes de espionagem para agir como um verdadeiro Agente 007.

— A partir de agora, o meu nome é Agente 069. — Por algum motivo, falar sozinho não estava em sua lista de coisas proibidas de se fazer em uma missão de espionagem.

Se deitou sobre o gramado, esgueirando-se pelo campo para se aproximar da casa sem fazer barulho e nem ser visto. 

Mirou os olhos para as janelas, espalhadas pelo primeiro e segundo andar da estrutura. Apenas uma delas fora vista aberta. 

Apesar das luzes daqueles quartos estarem apagadas — o que indica que provavelmente ninguém está ali —, Leonard não se deixava levar. Afinal, e se Amadeus Stevens for um vampiro?

Ok, vampiros morrem pela luz do sol, não luzes de lâmpada. Mas… e se Amadeus Stevens for um vampiro com imunidade baixa? 

As regras do jogo podem mudar e as chances de um vampiro se tornar alérgico a luz de lâmpadas deve ser proporcionalmente muito maior do que a de um humano normal. Isso se os vampiros existirem, claro, mas é sempre bom pensar em todas as probabilidades.

Refletia sobre essa possibilidade e muitas outras, até que ouviu um ronco vindo de dentro da casa. “O cara é um motor?”, pensou, impressionado por conseguir ouvir o som daquela distância.

— Cala a boca, idiota! — A voz, rouca e velha, também saiu da casa. Logo a seguir, a porta dos fundos (que leva diretamente para o quintal) foi aberta.

O Agente 069 tremeu na base.

— Sai pra fora, vai — disse o velho Amadeus, carregando a sua escopeta.

“Agora fiquei lascado! Para onde corro?” Enquanto Leonard entrava em desespero, o cachorro do velho saía para o quintal, ainda fazendo aquele barulho que parecia um ronco. Por ter sido expulso, agora não só continuou a roncar, como começou a chorar.

Uh, o motor é o cachorro. Saquei. Mas… PARA ONDE CORRO?!?!” Em pânico, fez a única coisa que poderia em tal situação: se fingir de morto.

— Só vai entrar quando parar com esse barulho irritante — falou Amadeus. Parecia apressado. Até tentou tirar um tempo para olhar os arredores, mas como o cachorro tentava desesperadamente passar por suas pernas para entrar, optou por se enfiar na casa e fechar a porta rapidamente.

“Não me viu?” Fechou os olhos, quase começando a recitar os dez mandamentos ali mesmo de tão grato. “Ufa, quase me borrei atoa.”

Abrindo suas pálpebras, deparou-se com os olhos redondos do cachorro, praticamente colados nele. 

Se impressionou com a velocidade com que aquela criaturinha surgiu em sua frente. Também se impressionou ao descobrir que o intestino de uma pessoa consegue recuperar e perder a estabilidade com aquela mesma velocidade.

— Calma, fica quietinho… — sussurrou para o animal, que parecia roncar patologicamente, mesmo estando notavelmente acordado. 

O bichinho não desistia de encará-lo enquanto balançava o rabo, parando de chorar.

“Ele gostou de mim? Que bacana!”

Prestando atenção, conseguiu entender que aquele era o tipo de cachorro carente; daqueles que não descansam antes de receberem um pouco de atenção. 

Como o dono dele parecia ser um velho ranzinza, provavelmente atenção é o que ele tinha de menos.

“Já que ele foi com a minha cara, se eu seguir em frente agora, pode rolar dele começar a latir para me chamar pra brincar… não posso deixar que isso aconteça. Vou ficar aqui um pouquinho e, quando ele ficar satisfeito, poderei continuar a invasão.”

Primeiro, deu carinho em sua cabeça. Depois, pegou sua pata. Então, ensinou um cumprimento da quebrada. Em seguida, mostrou as suas já conhecidas habilidades de breakdance para o dogzinho.

O cachorro ficou impressionado com seus movimentos ágeis e charmosos. Tão impressionado que ele próprio começou a dançar. Imitava Leonard com uma perfeição incrível!

“Caramba, ele aprendeu a fazer breakdance profissional só de me ver fazendo?! Isso é desumano!” Refletiu por alguns instantes. "Se bem que ele já não é humano… deixa pra lá."

Assim que o bicho ficou satisfeito, o Agente 069 o deixou lá e continuou a sua jornada pelo quintal, movendo-se como uma cobra sorrateira que está em seus estágios primários de elefantíase.

Ao finalmente chegar na mansão, levantou-se lentamente, se agarrou na parede e escalou por ela.

Chegou rapidamente em uma das janelas escuras do segundo andar, a única aberta. Entrou por ela.

“Finalmente.” 

Cobriu a janela com cortina e analisou o cenário. Era definitivamente o quarto daquele velho; grande, aconchegante e com uma cama de casal.

Ao lado, um armário e um espelho estilhaçado em pedaços, aliado a uma pequena poça de sangue no chão.

“Ele realmente não bate bem da cabeça”, pensou, se aproximando vagarosamente da poça. Observou o vidro quebrado e coberto de sangue, sem chegar em nenhuma conclusão. Portanto, abriu o armário e encontrou um conjunto de roupas chiques.

“Ah, moleque!" Sorriu e tocou em um dos ternos. “Parece que vou finalmente colocar alguma roupa digna nesse meu corpinho.” 

Sua felicidade foi ofuscada pelo som de passos.

Segundos depois, a porta foi escancarada com um chute desesperado, o que precedeu a entrada de Amadeus Stevens.

Suava, tremia, olhar vibrante e odioso. O velho segurava a espingarda como uma mãe segura o seu bebê.

Os olhos do velho deram a volta pelo quarto, completamente vazio. Com uma pulga atrás da orelha, puxou o lençol de sua cama, já pronto para atirar.

Nada. 

Olhou debaixo da cama, onde também não havia nada além de algumas caixas de sapatos antigos. Atravessou a janela e analisou a sacada, concluindo que estava completamente vazia.

— Que estranho... — murmurou.

Andou até ficar frente-a-frente com o armário, observando o vidro quebrado e ensanguentado no chão. Com um olhar melancólico, encarou as faixas em sua mão. Cerrou o punho, com muita força. O bastante para que o sangramento voltasse. 

— Eu não vou parar… Eu não vou parar… Eu não vou parar… Eu não vou parar… — repetiu inúmeras vezes, estapeando a si mesmo. Rangeu os dentes, decidindo seguir em frente.

Com a espingarda na outra mão, aproximou a palma enfaixada até a maçaneta do armário. Aproximou o dedo da outra mão até o gatilho da arma, preparado para tudo. Puxou a maçaneta com força e abriu.

— TATU ROLA-BOSTA!!! — gritou Leonard Mystery, saltando para fora do armário.

Com o coração a mil, o detetive entendeu que o velho abriria aquele armário uma hora ou outra, então entendeu que deveria usar a clássica tática do tatu rola-bosta: se agachar que nem um tatu e rolar que nem uma bosta.

O berro foi o suficiente para fazer Amadeus levar um susto e recuar, apertando o gatilho na hora. 

O tiro apenas acertou o armário, enquanto o tatu rola-bosta ambulante rolava pelo chão a toda a velocidade, atropelando as pernas dele como uma bola de boliche e o derrubando.

— Strike! — exclamou Leonard, se levantando.

Para a sua surpresa, o velho se levantou tão rápido quanto ele. Em um salto, puxou a espingarda e apontou até sua cabeça, com uma naturalidade tamanha.

“Caramba.”

— Quem te enviou? — indagou Amadeus. Toda a sua estranheza sumiu e foi substituída por uma serenidade assustadora.

O investigador suava, perplexo com o que acabara de acontecer. Tentou se concentrar para responder:

— Um hamster.

Não tentou o suficiente.

— O quê?

“É agora!”, pensou o detetive, aproveitando a distração para se jogar contra a parede.

A arma disparou.

Pow!

O tiro acertou um vaso, que explodiu em pedaços.

O detetive se jogou com tanta força que seu braço conseguiu sentir a dureza da parede como um soco, mas mesmo assim, não se abalou. 

Sem gastar os seus preciosos segundos, correu como um leopardo até o velho.

“Devo correr sem parar!”

Dito e feito; sem parar por um único instante, invadiu a vanguarda esquerda do velho e acertou um soco no rosto dele antes que ele conseguisse manusear a espingarda. Ele caiu como se tivesse sido atingido por uma tijolada, mas se levantou rapidamente.

— Não vai me derrubar! — gritou Amadeus.

“Como esse velho gagá não desmaiou com um soco meu?!”, pensou Leonard. Sem descansar, avançou até ele. Com uma mão, agarrou a sua espingarda. Com a outra, segurou a gola de sua camisa para imobilizá-lo. 

— Servi ao exército, seu merda! — Gritando raivosamente, Amadeus tentava se soltar.

Agente 069 evitava ao máximo que o cano da arma fosse mirado para seu próprio rosto, mas aquele velho fazia de tudo para que aquilo acontecesse.

Aé? E eu sou… Piotr Rasputin, da KGB. É um prazer! — zombou, sem parar de puxar a arma. 

— Sério? Maldito comunis… — Amadeus não conseguiu concluir a frase por culpa do cabo da espingarda, que no meio da disputa, o acertou em cheio. Caiu como se tivesse levado uma tijolada na cabeça.

Cheio de ansiedade, o detetive não descansou antes de puxar o velho pelas pernas até deitá-lo sobre a cama. “Quase que fui pra vala nessa brincadeira…”

Olhou o quintal pela janela e observou o cachorrinho latindo intensamente ao mesmo tempo em que roncava, muito provavelmente pelo som dos tiros — os latidos, não o ronco, isso é algum problema de respiração mesmo. 

Já na cortina da casa vizinha, a sombra de um homem reluziu; parecia desesperado, falando pelo telefone.

“Acho que o cachorro não foi o único que ouviu os tiros...”, pensou. 

Leonard saiu do quarto e começou a correr entre os inúmeros corredores da mansão. “Acho que tá tudo dando certo, as missões de espionagem sempre dão errado nos filmes mesmo.”

Passou por banheiros, cozinhas, mais cozinhas, quartos de hóspedes, mais banheiros, lavanderia, mais cozinhas e então chegou à conclusão de que Amadeus Stevens até poderia ser rico, mas não era alguém muito criativo.

Quando desceu para o primeiro andar, falhou em encontrar uma grande nova variedade de cômodos. Encontrou mais três representantes daquelas três seções e um quarto cômodo um pouquinho mais criativo: uma biblioteca.

O lugar era o que uma biblioteca precisa ser: grande, coberto com muitas estantes cheias de livros. Além disso, tinha o bônus da quantia considerável de poeira. 

“Essa sala deve ser feita para matar os invasores de sinusite, só pode.”

Mesmo assim, não tinha nada parecido com outra pessoa no lugar. Em nenhum lugar da casa. Se Darwin Galileu estivesse de fato lá dentro, o velho havia se esforçado em escondê-lo muito bem. 

“Quantos anos esse Galileu tem? Esqueci de perguntar isso pro Einstein... Na real, não perguntei nenhuma informação relevante sobre esse Galileu! Merda, como fui me esquecer disso?" Estapeou o próprio rosto. "Ok, se acalme, provavelmente aquele hamster vagabundo nem se lembra dessas informações sobre os irmãos, senão teria me dito quando contou 'tudo o que se lembrava'… Relaxa. Apenas lembre-se: esse Galileu deve ter entre 01 a 105 anos de idade.”

A cada segundo que passava, mais as chances de viaturas policiais pararem na frente da mansão aumentavam. 

Sabia que não deveria desistir naquele momento, não após tudo que passou. Um de seus braços estava dolorido, seus pés sujos e cansados pelo tanto que precisou correr e pular. Se tivesse passado por tudo aquilo só para invadir a casa de um velho completamente inocente, faria isso só depois de vasculhar cada possibilidade. 

Por isso, concentrou-se e revisitou cada momento marcante das trocentas séries policiais e filmes de espionagem que viu durante toda sua vida. Respirou fundo e se preparou para testar cada clichê de esconderijo secreto que poderia existir. 

Puxou cada um dos livros da biblioteca para ver se algum deles era, na realidade, uma alavanca secreta que abriria um portão. Puxou todos os tapetes e quadros para ver se encontrava uma passagem secreta. Mudou o horário dos relógios. Esquentou um cereal e comeu assistindo a série As Panteras na sala de estar.

Nada deu certo.

— Estados Unidos da América! Cachorro! Rambo! Triciclo! — gritava palavras que acreditava que pudessem ser senhas que fariam algum mecanismo discreto abrir a tão sonhada passagem secreta. 

Após tudo isso e mais um pouco de tentativas, desistiu de vez. Suspirou, com angústia e decepção. 

“Invadi uma mansão e quebrei o nariz de um idoso com problemas mentais a custo de nada… Incrível. Sou um verdadeiro inútil. Uma decepção, como sempre. Talvez eu deva me entregar para a polícia…”, pensou, alargando o seu corpo sobre o confortável sofá. “Se for pra ser preso, que seja enquanto como cereal e assisto televisão."

— Einstein… Heisenberg… Holmes. — Seja lá quem estivesse do outro lado da porta, pronunciou cada sílaba do nome com a maior atenção possível.

"Espera, quem está falando?!"

— Errou. Esse não é o meu nome — disse o investigador.

“Puts, só agora me toquei que devia ter ficado quieto. Boiei legal. Calma lá, quem é esse cara?”

Logo depois de um estrondo, a porta desabou como se fosse um pedaço de papelão. O desconhecido adentrou o recinto. 

— Que merda é essa? — esbravejou Leonard, abismado ao se deparar com o homem completamente pelado.



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