Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 2

Capítulo 38: Vento gelado do amor

18 de Fevereiro de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, Setor Norte da Academia de Palas

 

— Que… merda!

O urro de raiva da garota de vento precedeu a destruição de mais um dos obstáculos do sistema de treinamento de magietras, o penúltimo daquele ciclo. Para quem visse de longe, Ayame assemelhava-se a um touro raivoso — sua rapieira partia ao meio os “hologramas” mágicos com assustadora precisão a cada avanço, veloz e implacável. A abstinência de sangue deveria aplacarsuas ações, mas ali servia como mais um bloqueio ao seu ideal de combate.

Sua raiva tinha muitas origens. Do longo dia repleto de aulas chatas à conversa que teve há pouco mais de 2 horas com Keishi, um turbilhão de emoções negativas bagunçava seu senso comum. Escutar da boca de seu pai adotivo que ela deveria se meter menos em encrenca foi um desaforo que ela não estava disposta a levar para seu quarto em silêncio. Por isso, descontava a ira nas pobres estruturas da Longinus.

— É tudo culpa do Heishi! — acusou, sem um interlocutor definido, enquanto conjurava uma lâmina de vento.

— O que é exatamente culpa mi… Opa!

Desconcentrar-se no meio do feitiço o fez ser disparado contra o recém chegado. Para a sorte dela, seu convidado inesperado tinha reflexos tão bons quanto os dela, aparando sem dificuldade com uma parede de gelo. Pelo suspiro aliviado que saiu da boca dele, nem o garoto moreno que invadiu sua sessão de treinamento estava esperando ser atacado do nada.

— Ora, se eu soubesse que era você… — Ayame encarou os olhos azuis faiscantes com seus próprios castanhos. — Eu teria aumentado a dose.

— Muito cavalheiro da sua parte, sua avoada lelé da cuca — provocou o garoto. — Com sua licença, posso treinar também?

— Não. Acha outra sala, essa tá ocupada. Ou vai com a Arakawa aproveitar a noite.

— Já terminei com ela, sabia?

— Não me interessa. Chispa, cabeça de gelo.

Não tinha tempo a perder com as palavras triviais de seu rival. Se não quisesse ter outro empate contra ele, deveria se esforçar dezenas de vezes mais que o Guardião de Búri. Estava ciente disto, então ignorar sua presença era a melhor escolha que poderia fazer. “Se não der corda, ele vai entender. Ele não é burro assim”, pensou, embora fosse custoso admitir que Heishi não era tão infantil quanto parecia. “Logo ele vai embora.”

Imersa de corpo e mente no treino, não se deu o trabalho de ver se a ordem dada ao menino fora cumprida. Pelo silêncio absoluto, onde nada além dos golpes de vento e dos cortes da rapieira eram ouvidos, acreditou que sim. Minutos passaram-se com ela fora de órbita e nada mudou — em algum ponto, decidiu se virar por mera curiosidade.

Assustou-se com o que viu, a ponto de perder o equilíbrio em seus joelhos.

A postura de Heishi era… diferente, por assim dizer. A habitual arrogância, representada por seu nariz empinado, não estava à mostra; pelo contrário, demonstrava tamanha admiração que a fez se sentir desconcertada pelo olhar intenso dele. Aquela pessoa a observá-la cautelosamente não era o “cabeça de gelo”, seu rival e a pessoa mais insuportável por ela conhecida.

Estava há algum tempo percebendo a sutil mudança de comportamento de Reiketsu, ainda que não soubesse determinar sua causa. Em público, Heishi era, para dizer o mínimo, desagradável: sempre com um comentário sujo sobre alguma garota, uma cantada ou qualquer outra atitude que um cafajeste padrão teria. Parecia sempre interessado em atrair os holofotes para si, fossem bons ou ruins os comentários gerados por estas ações indecentes.

Porém, ali estava uma versão nova dele, capaz de despertar até o interesse de Ayame. Um garoto introspectivo e atento, naquele instante estudando sem malícia alguma o treino de sua oponente e impressionado com o que via. Sem piadas, sem provocações baratas, apenas um genuíno olhar de respeito ao esforço da Guardiã de Eolo e ao seu talento para manipulação de magia de vento.

— O quê tá olhando?

Ainda assim, ela não conseguiu baixar a guarda.

— Não posso estudar como você luta pra te derrotar depois? Tá proibido? — respondeu com ironia. Apesar disso, o olhar estranho se manteve. — É complicado dizer isso, mas você é muito boa. Pensei em me convidar de novo pra treinar contigo, mas acho que isso só te atrasaria.

— Espera.

Sua voz saiu antes de seu pensamento. Heishi duvidou se escutou direito a instrução dela, piscando lentamente como se testasse sua compreensão. Ela não hesitou em se dirigir até onde ele estava, a diferença de altura deles se destacando quando ergueu o queixo para fazer contato visual.

— Que tal um duelo? — sugeriu Ayame, apontando a rapieira para ele. — Melhor de três.

— Quem é você e o que fez com a Ayame?

— Engraçadinho. Mas dessa vez eu não vou te xingar — riu, pela primeira por algo que ele disse. — Você ainda não me respondeu.

Apenas o soar da noite, que invadia pela janela aberta da sala de treinamento, pôde ser ouvido durante os segundos de ponderação de Heishi. A arma dela ainda estava mirando seu pescoço, uma provocação para lá de coerente com a personalidade de sua rival. Mesmo com uma postura tão mortal, ela conseguia ser tão linda que poderia se submeter a ser refém o dia inteiro.

— Só não vale arrancar um dedo meu, beleza?

“Vamos ver até onde ela tá tentando brincar comigo”, comentou para si mesmo, invocando sua espada e apontando-a ao pescoço dela em resposta.

 

 

“Ele bateu a cabeça. Só pode ser isso”

Este era o único cenário possível para Ayame lidar com a percepção por ela tida acerca de seu parceiro de treino. Por horas a fio, Heishi não havia emitido uma fala inconveniente sequer, até por vezes aconselhando a garota sobre usos criativos da magia de vento com impressionante maturidade. Em algum ponto, ela passou a corresponder aos gestos dele e dividiu lições que aprendera de Keishi, quando ainda estudava na Academia de Dracone.

Os uniformes de ambos pingavam de suor, mas nenhum deles queria dar o braço a torcer e admitir o cansaço. Era raro que tivessem adversários à altura de suas habilidades ou com garra semelhante à de si próprios, sendo estas as principais razões para quererem estender aquele momento inesperado de progresso conjunto. Não queriam perder a oportunidade de subirem quantos degraus fossem possíveis no menor tempo possível.

Sem forças nem para falar, Ayame fez um gesto de “pausa” para seu colega, que acatou de imediato. 

— Fazia tempo… Que… — Entre arfadas pesadas, a garota sentou-se. — Eu não… tinha um treino assim.

— Sim… — respondeu Heishi, também indo ao chão.

Os olhos dele desceram do rosto para a linha do pescoço dela.

— Ei.

— Hm?

— Acho bom secar as roupas. Seu… — Apontou para o busto dela. — É, tá aparecendo. Desculpa, não vou olhar.

Maior do que sua raiva e vergonha pelo apontamento dele era seu choque. Desde quando Reiketsu era tão cavalheiro? Nem mesmo a palavra que mais escutou dele quando se referia aos corpos das mulheres fora dita em voz alta — não que houvesse muito para olhar no corpo pouco avantajado de Ayame, mas ainda assim era assustador vê-lo agir tal qual um ser humano decente.

Ela se pôs a usar seus poderes de vento como um secador, enquanto Heishi estava de costas para si, sem um ponto focal específico. O que estaria pensando? Seria sobre o que viu? Ou nem se importou? Muitos pensamentos passavam pela mente dela, cuja opinião estava dividida na experiência vivida até então e naquele momento de silêncio entre eles.

Do lado do garoto, as coisas não eram muito diferentes. Como acontecia há meses, seu coração palpitava por estar a sós com a Guardiã de Eolo, mais ainda por ter visto o que viu. Tinha dúvidas se sairia vivo se Keishi soubesse da situação — conhecendo o pai coruja, a mera ideia de sua filha querida ter sido exposta, em especial para o maior dos cafajestes, o faria desaparecer com qualquer evidência de tamanha desonra para ela. Ficaria bem se não ousasse olhar mais uma vez.

Um vento poderoso bateu em suas costas, bagunçando seus cabelos, e Heishi preparou-se para questionar o motivo de ser o alvo dela de novo. Antes que pudesse reclamar, a ventania se tornou uma brisa suave, unida ao agradável ar quente da noite de verão. Era o primeiro gesto espontâneo de companheirismo vindo de Ayame.

— Obrigado — disse apenas. Aproveitar o seu agradável presente pareceu mais certo do que qualquer palavra.

— Por que você é assim?

De cara, a pergunta não fazia sentido algum. Era como se Ayame perguntasse o porquê do céu ser azul ou do sol sempre nascer e se pôr todos os dias. Uma pergunta à qual a resposta de nada serviria para ela entender o que desejava.

— Porque é mais fácil se viver nos extremos. 

Ainda que fosse retórica, Heishi compreendeu seu significado. Ayame ergueu o rosto para escutá-lo com mais atenção, curiosa pelo que viria a sair da boca dele — o gesto foi interpretado como uma permissão para seguir com sua ideia subjetiva.

— Ódio e adoração são muito mais objetivos. Você não precisa pensar até onde vai agradar e até onde vai desagradar; a pessoa gosta ou não gosta de você. Simples assim.

“E o que eu aprendi é que muito mais gente gosta de se submeter do que de dominar.”

Instintivamente, cada um deles virou o corpo para encarar um ao outro, armas apontadas ao pescoço de outrem mesmo sentados. Fossem as íris safira ou as castanhas, faiscavam contra a pessoa à sua frente, e Ayame sabia bem o que ele queria dizer com aquela frase. Algo muito íntimo, um reflexo nítido de um desejo que não achou possível encontrar em outra pessoa com intensidade sequer similar ao dela.

— E você, Ayame… — O lado provocador voltou com um sorriso presunçoso. — o que vai escolher?

— Ela eu não sei, Reiketsu, mas eu escolho mandar vocês dois para a diretoria!

Não conseguiram conter o choque de uma terceira voz abordá-los com uma ameaça, forçando-os  a largar as armas com a pressão de sua aura. A silhueta de altura mediana e braços cruzados do professor Kaito Reisho sombreou os jovens, numa tentativa de impor respeito e medo neles com seus olhos vermelhos e óculos de lente meia-lua — contudo, quando perceberam o quanto ele estava forçando para não suavizar os músculos da face, tiveram de se segurar para não rir.

O futuro trágico daqueles dois foi selado quando uma cabeça apareceu pelo lado direito dele, com cabelos azul-escuros cacheados escorrendo como uma cachoeira. A partir do uniforme por ela vestido, não era uma professora: constataram logo a ausência da gravata vermelha utilizada pelos docentes. “O que diabos uma aluna tá fazendo com um professor nesse horário?”, pensaram Ayame e Heishi, entreolhando-se.

— Ora, Kacchin, você não serve pra dar bronca! — repreendeu a garota. Seus olhos rosados, similares à cor presente na ponta de seus cachos, recaiu sobre eles. — Ah, prazer! Sou Mirei Koijima, do oitavo ano. Nunca vi vocês aqui, são calouros? Tavam treinando ou se pegando?

— Mire… Koijima! — Foi a vez da única autoridade ali levantar a voz. — Sem palavras estúpidas!

— Não foi isso que você tava dizendo agora há pouco — brincou ela, com uma piscadela. — Tá, vocês não ouviram nada. Vamos fazer assim, a gente finge que não viu vocês e vocês fingem que não viram a gente. Combinado? Combinado!

Os dois novatos estavam bem confusos com relação ao seu professor e a veterana desconhecida. O nome dela não era estranho para Ayame, mas se estava tão encucada em não ter sido vista com Kaito, por que negar a oferta dela? Com um aceno de cabeça, concordaram com a proposta de Mirei.

A garota de olhos rosados sorriu mais uma vez e puxou seu “companheiro”, braço enlaçado ao dele, para longe. O tom da discussão do casal era suspeito demais para ser ignorado pelos novatos, cujas mentes maquinaram infinitos cenários nem um pouco positivos acerca de seu professor. Após alguns segundos de contemplação, a Guardiã de Eolo o cutucou, intrigada.

— Quantos anos tem o professor Reisho mesmo?

— Uns 28, não? Ele falou na aula de apresentação, mas não prestei atenção — divagou Heishi — E considerando que a tal Koijima disse estar no oitavo ano… 23, pelo menos? É, não é tão ruim assim.

— Eu que não vou me meter! 

— Vamos ficar quietinhos mesmo e ir embora antes que o professor mude de ideia.

Sob a cobertura de Heishi, parado à porta olhando o corredor com atenção, Ayame organizou suas coisas com pressa. A tensão de serem pegos por outro professor menos piedoso acelerava cada passo dado por eles entre os corredores, entre saltos de degraus e curvas acentuadas a cada esquina para se moverem ágil e furtivamente dentro do prédio. Nenhuma palavra foi trocada — Heishi apenas seguia o mesmo caminho que sua colega, observando os belos cabelos azul-gelo dela tremularem ao vento.

Uma visão espetacular, digna de um quadro a ser exposto ao mundo. Para ele, foi um presente mais do que satisfatório poder vê-los brilhar sob a luz da lua. Quando chegaram a um ponto de divergência, com ele indo ao oeste e ela ao leste, ele sentiu a boca amargar de leve.

— Tá, essa foi noite foi uma enorme bola de emoções confusas! — pronunciou-se Ayame, enfim livre para respirar. — Mas nos safamos dessa. Vê se fica em silêncio, cubo de gelo.

— O que você disse, cabeça de vento?

O risco de serem vistos levou Heishi ao seu estado natural de personalidade, como ela pôde perceber. O garoto se pôs a praguejar sobre quase foram mandados para a diretoria, sobre como ela era irritante e as muitas outras ladainhas de costume, no aguardo de Tengoku retribuir suas provocações. Tudo sob o olhar plácido da jovem que havia laçado sua atenção com cordas de aço.

— Mas sério, a gen…

— Você deveria parar com isso.

A interrupção seguida por um conselho tão genuíno o calou. Ayame tinha certeza de ter visto, por entre sua boca entreaberta e rosto corado, um resquício do jovem introspectivo o qual teve a chance de conhecer mais cedo. 

— Mas se não quiser, problema teu — complementou, colocando a mão sobre a boca. — Eu posso manter esse segredo pra mim, ninguém acreditaria que você consegue fazer essa cara!

— Q-Que cara?

— Tchau, tchau, não quero ser pega!

Sob o astro-rei da noite, pela primeira vez, Heishi sentiu seu estômago preencher-se de borboletas.

 

 

— Cara, onde você tava? Já tava saindo pra te procurar!

— … Foi mal. Me distrai treinando.

— Puxa, te conheço há anos e nunca te vi perder a hora! — A dúvida estava implícita nas palavras dele. — O Togami até vai, mas ele sempre está com a Yamazaki ou a Chiwa. Você tava sozinho?

— Claro que sim. E pra tudo tem uma primeira vez, meu amigo Tatsu — brincou. — Vou pro quarto, tô exausto. Amanhã de manhã eu tomo banho antes de ir pra aula.

Não deu espaço para mais perguntas ou comentários de seu amigo de infância, abandonado por ele na sala de estar após fechar a porta de seu quarto. Teve a breve percepção que viu Shuyu, sentado em um dos sofás, encará-lo por cima do ombro, curiosidade e um tanto de ceticismo quanto às suas afirmações nítidos nas íris esmeraldinas do príncipe.

Foi algo tão momentâneo que se perguntava o quanto Mizuchikou teria sido capaz de deduzir a partir daquele contato minúsculo.

Como poderia ter a coragem de contar para eles que estava com sua maior rival e oponente, rindo e trocando conhecimentos por livre e espontânea vontade? Seria estranho demais ouvir isso da boca do maior mulherengo por eles conhecido — Shuyu lhe daria uns bons tabefes por dar em cima de sua melhor amiga. Era melhor apenas manter aquela confissão para si, como seu pequeno tesouro. 

A preguiça o alcançou uma vez deitado em sua cama, com um jarro de flores artesanal colocado sob a mesa de cabeceira. Um presente de seu pai pelo sucesso na prova, como havia sido escrito por eles na carta de congratulação recebida no dia anterior.

— Esqueci a janela aberta, merda.

Num dia comum, aquilo seria motivo mais que suficiente para se levantar e fechar o caminho para a brisa suave, que balançava as cortinas e seus cabelos em igual medida. Naquela noite, tal qual fizera com seu coração, deixaria o vento entrar.

 

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