Volume 2
Capítulo 39: Lobos em pele de cordeiro
22 de Fevereiro de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, Setor Sul da Academia de Palas
Apenas duas turmas do primeiro ano eram suficientes para transformar um dos campos de treinamento abertos em uma enorme multidão. A sussurros baixos e receosos, uma dúvida principal corria entre eles, motivando cada um a permanecer em alerta máximo.
— Será que o professor Iwatsui é muito rígido?
— Ele voltou de férias atrasado… espero que não.
— Não preciso de mais alguém como a professora Kitani no meu pé!
— Xiu! Vai que ela tá te escutando em algum canto!
Era perceptível a agitação dos alunos frente à identidade desconhecida do professor que retornou à Academia com três semanas de atraso. Sabiam apenas seu nome e a matéria que daria: Makoto Iwatsui, de Armamento Divino.
Uma disciplina que, pelas bocas de veteranos e outros professores, era conhecida por seu extremo rigor e cobrança pelo docente. Quaisquer outros detalhes conhecidos pelos calouros não passavam de especulação ou exagero das histórias que ouviram dos alunos mais velhos.
Com a experiência de quase um mês, estavam certos que não havia como ser mais torturante que a espartana professora Kitani. Ainda assim, para ter o direito de voltar, sem punições, tão tardiamente? Ele tinha de ser alguém incrível ou, no mínimo, repleto de contatos dentro da Longinus. Alguém a ser temido e respeitado pelos mais novos aspirantes a Guardião, pelo bem de suas carreiras.
Para Tatsuyu, nada chegaria aos pés da insanidade de Hakua Kitani lecionando. Logo, o garoto encontrava-se sentado em silêncio, longe da roda de conversa com o grupo usual. Estava, como Heishi declarou aos demais, em “modo descanso” — interagir com ele não surtiria efeito naquele instante.
— Tá confiante assim só por ser Guardião do Ferreiro dos Deuses, rapaz?
— Não só por isso, Festo! — Uma discussão amigável com sua Bênção sempre lhe era bem-vinda. — Cê sabe melhor do que ninguém que ficar nervoso com professor não é pra mim. Eu sou burro, mas determinado!
— Humanos mudam rápido mesmo… uns meses atrás você estaria se tremendo de nervoso com a ideia de ser reprovado.
Por costume, Tatsuyu coçou a nuca, entre a vergonha e o desconforto. Era um hábito seu, tão automático quanto respirar. “Eu tenho que parar de ser transparente assim com isso”, pensou com um suspiro. Hefesto nunca deixava de estar certo quanto à sua evolução — não era o mesmo garoto medroso de meses atrás, além de muito mais forte que seu eu do passado. Poderia, ao menos, orgulhar-se daquilo.
— Conversando logo cedo com sua deidade?
A voz vinda por trás de si o fez olhar para seu conhecido emitente. Cabelos em degradê, uniforme com detalhes brancos… Togami Shinwa estava diante dele, e sua pergunta aguardava a resposta de Tatsuyu. A realidade ele já sabia, mas ouvir da boca de seu colega era a melhor opção para não parecer estranho.
— Hã? Ah, sim! Tento falar com o Festo todos os dias, ele sempre tem um conselho legal… — Pelo desvio do olhar e posterior cara emburrada, nem todo comentário era tão pertinente assim. — Tá, às vezes são um pé no saco, mas me ajuda bastante.
— Nesse quesito, tenho um pouco de inveja de ti, Tatsu.
— Como assim?
— Se existe alguém com problemas com a própria deidade, esse alguém sou eu.
Partículas brancas envolveram a mão de Togami e uma espada surgiu em sua palma. Aquela lâmina fez o garoto de olhos rubi engolir em seco. Diversas vidas deveriam ter sido ceifadas pelo fio gélido da arma de metal branco em seu campo de visão, embora ela estivesse ali tão limpa quanto se nunca tivesse sido usada.
Havia se esquecido de sua primeira impressão de Togami. Perigoso, muito perigoso.
Como se sentisse a hesitação do amigo, Shinwa não teve medo de encará-lo com suas íris heterocromáticas. Deixando a espada de lado, sentiu-se livre para dizer o que, por meses, guardou em algum canto dentro de seu peito.
— Eu sei que aquele dia eu não fui uma pessoa boa. E peço desculpas por demorar tanto tempo para tocar nesse assunto.
— Não que a gente tivesse a chance de falar sobre isso com tanta gente por perto — comentou Fukushu, antes de olhar ao redor. — Afinal, falar de… bem, isso, não é algo que dá pra falar na frente dos professores.
— Sim… — Togami desfez o contato visual. — Como agradecimento pela sua cumplicidade, acho que te devo algumas explicações.
“Pode parecer estranho, então vamos lá. Eu faço isso pelo meu irmão, como uma espécie de vingança.”
Embora intrigado pela súbita citação a um elemento tão relevante, Tatsuyu apenas concordou para que ele seguisse. Sua experiência pessoal com o luto o fazia ter certeza que, se a ele fora confiado aquele segredo, Togami não tinha muito com quem fazê-lo. Algo no jeito que encarava o céu da tarde acima deles transmitia a incerteza em seu coração para o moreno ao seu lado.
— Ele era um Guardião, quase nove anos mais velho que eu. Eu… — Uma lágrima reluziu, silenciosa, pela lateral do rosto dele. — Ele era meu ídolo.
“Foi no dia do funeral dele que recebi os meus poderes. Foi como se ele tivesse indicado aos deuses que eu precisava de ajuda, de mais força que qualquer um. Ele sempre falava de umas visões esquisitas, que era meu destino ser forte como ele, mas só quando ele morreu que consegui acreditar.
“Como ele fazia, eu tentei usar o que tinha pelo bem. Eu nunca matei um inocente, só membros de gangues conhecidas e canalhas. Agora que sou um aluno da Longinus, não vou fazer isso mais, prometo. Não seria justo com a Yumeko ou a Rei me acolherem, me treinarem e eu destruir as esperanças delas assim.
“Enfim, o que eu quero dizer com isso tudo é… desculpa pelo que eu te fiz presenciar. Haru me contou um pouco sobre os seus problemas, e isso me fez sentir uma pessoa horrível de te fazer passar por isso.”
Tatsuyu ficou dividido entre a honestidade de seus sentimentos e o conforto de seu amigo. Compreendia suas ações desesperadas, sem sombra de dúvidas — desde a revelação da identidade de seu arqui-inimigo, Mouhan Kyomei, a possibilidade de um dia ser o carrasco daquele vilão maldito embriagava sua mente e o movia adiante. Togami deveria ver cada morte como uma pequena parte da alma do irmão sendo recuperada. Jamais conseguiria julgá-lo por assim pensar.
Lembrar-se do primeiro encontro deles, porém, não o permitia enxergar por completo o forte senso de justiça do Guardião de Metatron. Por muito pouco, ele mesmo não fora uma das vítimas da lâmina de luz, tendo sido poupado por um motivo que não tinha coragem de perguntar diretamente. A imagem do criminoso morto retornava nas noites sombrias.
E não foram poucas as ocasiões em que isto aconteceu.
— Eu não vou dizer que entendo o que você fez, muito menos falar que não importa — afirmou, com voz firme e cabeça erguida. Viu Togami se encolher em vergonha. — Mas também não quer dizer que vou deixar de acreditar na sua evolução, cara.
— Acho que é suficiente. — O baixinho estendeu o punho para ele. — Obrigado, Tatsu.
— Não tem de que.
— Muito bem, muito bem… Vejo que já estão se habituando com a Academia.
O solo vibrou com o estrondo das botas duras chocando-se com ele, um prelúdio à chegada do dono do timbre grosso que se dirigiu aos alunos. Mesmo distantes do ponto cardeal de onde vinha o som das passadas, a silhueta alta e parruda de Makoto Iwatsui podia ser vista com clareza acima do mar de cabeças.
Armado com um par de tonfas de aço negro, o homem não poderia ser confundido com um aluno nem se retirasse o lenço vermelho de identificação. Se comparado a Shuyu, o mais largo dos calouros presentes, o porte físico do professor ainda era muito mais impressionante. Reiko se perguntou se o uniforme da Longinus com bordados cinza-escuro fora feito sob medida para ele.
O par de íris, azuis como safiras, impôs o silêncio absoluto.
— Dispensarei suas apresentações. Sou Makoto Iwatsui e, como já devem saber, darei aulas de Armamento Divino. — A tonfa da mão direita apoiou-se no chão. — Não nos demoremos. Saquem suas armas e se dividam em duplas.
Ninguém teve coragem de questionar as orientações dele, logo iniciando a difícil tarefa de estabelecerem duplas com os amigos ao redor. Tatsuyu e Togami consideraram ficarem juntos, mas foram arrastados por Heishi e Haruhi, respectivamente. Sem mais discentes espalhados, Makoto partiu para sua próxima etapa.
— Ótimo, vejo que são rápidos e educados. — Sua mão esquerda ajustou o penteado rebelde, ou ao menos tentou. — Quero agora que me mostrem do que são capazes apenas com suas armas. Alternem entre si e ataques sem usarem poderes elementais ou aprimoramentos. Apenas físicos. Comecem!
Dito e feito, dezenas de sons de metal colidindo e lufadas de vento cobriram o campo. Supervisionar duas turmas de cinquenta alunos era um trabalho exaustivo, ainda que tivesse liberdade para ignorar aqueles com menos talento. Os primeiros minutos eram sempre os mais decisivos para separar o joio do trigo de cada ano letivo — estava ansioso para ver o que príncipes e princesas poderiam oferecer a ele.
A curiosa dupla de Yoko e Shuyu foi a primeira a lhe atrair. A começar por terem escolhido seus respectivos maiores inimigos como parceiro de treinamento: conhecendo como conhecia Shihan e Kyouka, estava certo de que se evitariam a menos que fossem obrigados a interagir, o que se provou uma ideia equivocada. Havia um ar de respeito e provocação na dança de guerra por eles praticada, mesclados à jovialidade e orgulho. Dos movimentos suaves de Kan’uchi aos ataques pesados de Mizuchiko, não desviavam o olhar do outro em momento algum.
Zuko e Kyorai, os dois “avulsos” sem dupla, apresentavam um desenrolar interessante. A garota nitidamente não tinha o combate direto como sua preferência, mas não se deixava submeter com facilidade à maestria fenomenal do príncipe de Bellato com suas múltiplas armas, alternadas ao seu bel prazer a cada desarme realizado em Shikage. Se ela sobrevivesse àquela experiência, teria muito a aprender com seu colega.
Acima de todos os anteriores, viu-se fascinado com um estudante que, pelos relatórios, não era parte da prodigiosa 1-1. Veloz e agressivo, o garoto que empunhava duas espadas longas como se fossem adagas, e não hesitou em partir ao meio a lança de seu oponente antes de obrigá-lo a admitir a derrota.
Makoto era um exímio pesquisador de armas divinas, sem sombra de dúvidas. Contudo, nunca havia visto, em catalogações, aquelas lâminas azul e vermelha por ele seguradas.
— Você sempre pega tão pesado, Hokuto! — reclamou o garoto, vítima dos avanços impiedosos. — Onde que você aprendeu isso?
— Uns caras que conheci faz tempo e são muito bons de briga. — As íris douradas reluziram com a energia do menino de altura mediana. — Eles sempre falavam ”Para de me copiar, Yuma!”, mas nunca deixavam de me ensinar.
Por ser seu primeiro dia letivo, Makoto estava na fase de reconhecimento da legião de novos membros ao exército. O pouco tempo com sua querida namorada, cortesia de Taeka pela estadia política dela, havia deixado sua mente bem limpa para estudar os alunos. Não que fosse seu trabalho servir como olheiro, longe disso, mas conhecê-los era parte de sua personalidade como professor responsável.
Foi o desejo de entender aquele aluno que guiou seus pés largos na direção dele. Antes que pudesse abordar Yuma, uma outra figura, baixa e rápida, o fez — para igual surpresa de Iwatsui, o sobretudo dele tinha detalhes de cor branca, muito rara mesmo entre o alto escalão. A dupla do garoto, uma menina loira com cabelos de serpente, também se aproximou.
— Cara, que foda! Você tem duas espadas! — Togami agarrou as mãos dele para trazer os objetos mais perto de seus olhos. — São iguais e só mudam de cor? Ou tem alguma coisa a mais nelas?
— Q-Quem é tu?
— Togami! Pelo que escutei, seu nome é Yuma Hokuto, né?
— Ô, jardineiro de bonsai — chamou Haruhi, agarrando-o pela gola de seu uniforme — tenha modos, porra!
— Você é a boca suja e eu que não tenho modos? — retrucou. O aperto na sua gola se intensificou, sufocando-o.
A pose de Yuma havia caído totalmente. Se antes demonstrava confiança exacerbada em sua própria força e aparência, estas agora eram motivo para se sentir envergonhado pela atenção. Pelo seu sorriso sem graça, não tinha certeza de como responder aos comentários de Shinwa, que se debatia como um bebê com raiva nas mãos de Haruhi.
Tão veloz quanto Togami — mais furtiva, para ser realista — outra garota se aproximou do burburinho. Mesmo num uniforme e de capuz, o garoto das duas espadas reconheceu-a com imensa facilidade, abrindo um sorriso radiante para ela.
— Kyozinha! — cumprimentou, partindo para um abraço.
Kyorai, claro, desviou. Yuma deu de cara com o chão.
— Olá, Yuma. Vejo que passou também.
— Ainda tão fria! — A maneira infantil de lamentar fez Shikage apenas revirar os olhos. — Nem quando estávamos em casa você me deixava te dar um abraço!
— Por que eu teria que deixar algo? Não sou obrigada.
— Coração peludo do cacete! Enfim… — Yuma tossiu para limpar a garganta. — Vamos do começo. Sou Yuma Hokuto, essa é a Kyorai Shikage. Dá pra ver qual de nós é o mais legal, né?
— Haruhi Seishin, prazer — saudou a loira, cortês, com um aceno — e esse gnomo raivoso do meu lado é o Togami, como ele já disse. Desculpa por ele ser um imbecil.
— Todos parecem bem animados!
Makoto, na companhia de Yoko e Shuyu, bateu palmas para atrair a atenção de todos para si. Estava numa empolgação tremenda com aquela imensa quantidade de cristais brutos prontos para serem lapidados pelas suas mãos. Por outro lado, aproximar-se daquela dupla tinha causado um reflexo de náusea em Shuyu, sem causa definida.
Tal qual sentira antes com Kyorai, Yuma também tinha algo “fedorento” em sua mana. O amarelo-cítrico da aura do garoto, interpretado como um sinal de bondade e energia, não se mesclava corretamente à sensação desconfortável por ela causada. Era um eterno paradoxo de sensações nos sentidos aguçados do rapaz.
Os outros alunos não pareciam perceber. Nem mesmo o professor Iwatsui.
— E como estão com a corda toda, vamos ter aula até o jantar! Estejam prontos!
— O quê?!
27 de Fevereiro de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, 30° andar de Olympia
Não importava quantas vezes Midorima pisasse naquele andar, nunca deixava de sentir-se extasiada pela vista no topo da Torre que Atravessa os Céus.
O longo tapete dourado estendia-se da porta de entrada até uma altar, onde o trono imponente erguia-se ao oeste. Embora a redoma inteira fosse feita de vitrais coloridos, havia um círculo perfeitamente posicionado sobre o assento, criando uma espécie de auréola com a luz do crepúsculo. Luz esta que, naquele fim de tarde, reluzia nos cabelos dourados de Taeka e nos quatro Guardiões ajoelhados em frente a ela.
— Gostaria de ter feito esta reunião ao amanhecer — reclamou a Líder Suprema, com um suspiro. — Mas fico grata que estão todos por aqui ainda.
— Não temos motivos para sair correndo, Taeka. — Keishi quem lhe dirigiu a palavra, a cabeça abaixada em respeito. — Diferente do Shiro, claro.
— Ele é um caso à parte, nunca vi ficar parado — a mulher riu — bem, vamos ao que interessa. Neste breve mês que tiveram para estudarem os alunos, quais são suas conclusões?
Os Generais se encararam. Quem deveria começar? Até onde era respeitoso opinarem quanto aos seus futuros subordinados?
Midorima, em especial, não tinha noção como eram aqueles encontros de início de ano. Era seu terceiro mês como General, e a saída de Shou para a tão aguardada lua de mel foi muito mais apressada do que a garota esperava. Mal tivera a chance de se adaptar à série de relatórios e eventos rotineiros de seu cargo.
Seus receios, porém, estavam ocultos por uma máscara de calmaria, com seus olhos verdes semicerrados. Enquanto a garota batalhava contra seus medos (e contra o sono), os demais ponderavam sobre o questionamento de Haruki. Como de praxe, o primeiro a se levantar foi o expressivo Keishi.
— Não posso dizer que achei muitos talentos dignos de nota…
— Já vou adiantar que sua filha não pode nem deve ser citada.
— Que frieza, Tae! Enfim… — O homem ajeitou a gola de seu uniforme branco antes de seguir, ocultando um pequeno bordado de flor de íris sob seu sobretudo. — o que mais me chamou atenção certamente é o desprezível do Reiketsu. Ele é um adolescente imbecil, mas com certeza bom de briga.
— Não deveria ofender possíveis recrutas desta maneira, Houseki.
— É porque não é a sua filha que está sendo cobiçada por um cafajeste, Reiyo!
— Tenho que concordar com a nossa mudinha. Sua filha já tem o que, 15 anos? — Katsushi debochou da preocupação excessiva com um sorriso irônico. — Não precisa ser o moleque, mas ela vai ter alguém. E não deve demorar.
— Quer morrer, Katsushi?
— Cai dentro, princeso.
— Civilidade, vocês dois!
Ambos foram paralisados pela liberação de aura de Taeka, sendo realocados aos seus lugares com enorme facilidade. Seus olhares seguiram faiscando, ainda que estivessem sob a influência avassaladora de sua comandante — ninguém falava sobre Ayame e saía sem punição.
Uma vez acalmados, o silêncio perdurou por mais algum tempo. “De fato, somos todos humanos ainda, não é?”, refletiu Midorima, um pouco menos deslocada do grupo. Se dois Generais com longa carreira conseguiam perder a calma e quase partirem para a violência por algo tão… fútil, então ela não estava tão mal assim. Buscou, com os olhos, seu ídolo e modelo, indiferente a quaisquer atitudes de seus colegas de profissão. Mais do que ninguém, Reiyo não desejava se meter em discussões mesquinhas, algo que a nova General tinha como pedra angular.
O Arcanjo Mudo. O melhor e mais leal dos soldados. O braço direito da 211º Líder Suprema. A mulher que parou um golpe de estado por conta própria. Sem dúvidas, Kochiwa ter aquela guerreira como inspiração era o mais adequado para nunca se desviar do caminho da graça divina e se tornar mais e mais forte. As íris marrom-chocolate comunicavam o aparente sentimento de desimportância da General dos Vigias da Sabedoria.
O estalar de dedos suave de Taeka tirou-a do transe. Ela piscou algumas vezes antes de bocejar.
— E você, Rei? O que tem pra dizer?
— Desculpe, dormi de olhos abertos. — Os outros três ajoelhados a encararam com ceticismo e surpresa. — Assim como Houseki, quase nenhum dos estudantes me chamou atenção o suficiente para sequer considerar um recrutamento. Não até agora.
— Mas você disse “quase”, certo? — provocou a loira, cigarro aos lábios. — Quem foram os felizardos de serem reconhecidos por você?
— Os herdeiros de Yggdrasil e Helias.
O ar da sala ficou pesado mais uma vez. Estarem muito acima na hierarquia não era o bastante para impedir o desconforto significativo oriundo do conflito Yggdrasil-Helias. Quando a equação envolvia Shihan Mizuchiko e Kyoka Kan’uchi, todo cuidado era pouco. Não serem vítimas de um fogo cruzado entre as duas maiores potências bélicas de Ouras era importantíssimo.
— Sério? Por que eles dois juntos? — Como aquela acima de qualquer legislação, Taeka sentiu-se segura para questionar.
— São vistos como dupla frequentemente. Pode ser uma coincidência sem nexo, mas depois de algumas passa a ser muito perceptível que é arbitrário.
— Bem, não consigo ter certeza. Vamos guardar o que discutimos aqui até o recrutamento para não termos nenhum dos dois governantes cobrando relatórios semanais. — Um sorriso singelo partiu da Líder à Arcanjo, que corou de leve. — Obrigada, Rei.
— S-Sem problema algum. Este é meu trabalho.
— E-Eu também tenho um comentário!
Ver Midorima se dispor a qualquer coisa que não dormir colocou-os em alerta. E, claro, acionou o painel de ansiedade de ser o centro da atenção dos agentes político-militares mais poderosos da Longinus. Taeka divertia-se com a mana da mais jovem dos Generais oscilando em sintonia às batidas errantes do coração dela.
— Pois bem. Pode ir em frente, Kochiwa.
— Me interessei por Kyorai Shikage. Como uma especialista em infiltração, ela seria uma aluna capaz de me acompanhar, conforme diz o relatório da senhorita Kyotake.
Nenhuma palavra foi dita acerca do desejo expressado pela moça, o ambiente tomado por um silêncio constrangedor. A falta de posicionamento de qualquer um, inclusive de Reiyo, fez o ar tremer com a ira súbita de Taeka. Ela podia não ler mentes, mas sabia muito bem o que se passava entre eles.
— Eu tento não ser rígida, juro que tento — suspirou a loira, massageando a testa — mas vocês estarem julgando pela senhorita Kochiwa estar interessada numa harenariana é um absurdo! Especialmente você, Reiyo!
— Me desculpe, mestra. E Torajin, também.
— Problema algum.
Todos ali estavam cientes da relação íntima entre General e a Líder, o que tornava aquela represália bem mais pessoal. Suishima buscava não manter contato visual de forma alguma com sua parceira, ao passo que a aura dourada de Taeka os envelopava numa sensação de sufocamento intenso. O perdão verbal de Katsushi de nada serviu para aplacar o sentimento da mulher.
Poucas coisas podiam ser tão assustadoras quanto a quantidade sobrenatural de mana da mais forte Guardiã do planeta. Alguém precisava se sujeitar a consertar o problema, e este alguém foi novamente Keishi.
— Não defendendo o pensamento preconceituoso, Taeka — divagou o homem de olhos puxados — mas Kousai foi morto por harenarianos.
— Não pelos apoiadores de Sekisuna! Você sabe disto, Keishi. — A mulher mordeu o lábio inferior sem perceber. — Pela primeira vez, temos paz em Harena…
— Ter paz temporária em troca de tudo que perdemos não é paz, Taeka! — vociferou Keishi. — O colateral desta guerra não foi apenas o nosso amigo, por favor, você mais do que ninguém não pensa em nós como números. O preço que pagamos foi alto demais para nos contentarmos com a situação atual.
— Tenho de concordar com o Houseki. — Katsushi levantou a mão apenas por respeito, visto que já estava falando. — Como mão direita do rei Sekisuna, eu reconheço que temos ervas daninhas a podar. E elas são muitas.
— Sigam com suas atividades e me reportem quando acharem necessário. Dispensados.
— O qu… Tae! Volta aqui!
A mão estendida de Reiyo não foi correspondida pela Líder Suprema, que flutuou para o outro lado da sala e sumiu por entre os corredores. Ser contrariada em um assunto do qual estava tão certa sempre era difícil para Haruki. Raramente acabava bem se a discussão pendesse ao emocional.
A segunda no comando levantou-se para seguir sua mestra, realizando uma mesura respeitosa aos demais enquanto murmurava um “desculpa”. No mesmo ritmo dela, foi a vez de Katsushi se ausentar em um atípico silêncio — Keishi e Midorima não o impediram, ocupados demais com os próprios pensamentos. Junto à porta, uma mulher de longos cabelos loiros em posição formal o encarou, curiosa.
— Eu ouvi só os gritos… o que aconteceu aí dentro, comandante?
Mayumi passou a segui-lo mesmo sem uma ordem clara. Sendo, na prática, secretária pessoal do homem, seus passos acompanhavam os dele por instinto. Não podia negar estar também interessada na situação peculiar entre as duas potências da Longinus, que passaram por ela segundos atrás.
— Só as pessoas sendo muito preto no branco. Nada que não vá se resolver — tranquilizou o homem de olhos amarelos. — O que importa é que estamos liberados.
— E vamos pra onde?
— Bliz.
O gritinho fino de empolgação da modelo fez Katsushi tapar o ouvido por reflexo, antes de ser vítima do tom agudo da moça. A Conhecia bem o suficiente para saber o que sairia a seguir da boca dela, cujos passos se tornaram saltinhos felizes.
— Comandante, você me daria uma folguinha no próximo final de semana?
— Eu não sei porque você ainda pergunta se sabe que a resposta é não.
— Eu preciso ver o Kiyo, por favorzinho! — implorou Mayumi, choramingando. — Faz mais de um mês que eu não vejo ele!
O restante do lamento eterno da mulher apaixonada não chegou aos ouvidos do General, subitamente imerso em sua própria corrente de ideias. Uma mulher de sorriso brilhante e cabelos negros reluziu em sua mente. Sua imagem foi criada por espontaneidade tão genuína quanto a própria personalidade da figura.
— Mudança de planos. Vou para Harenaris.
— Quê? E o compromis…
— Conto com você para ir para Bliz e colher o relatório do senhor Yukihane, major Nekoren.
Antes pronta para reclamar, o rosto da Guardiã de Jofiel, o Quarto, abriu-se em uma expressão de euforia quase divina. Ela bateu continência ao seu superior, não conseguindo esconder sua felicidade diante dele. Podiam ter apenas um ano de diferença, mas Mayumi, aos olhos dele, sempre aparentava ser uma jovem inconsequente e impulsiva. Perguntava-se como ela conseguia ser conhecida como “Arcanjo Sedutor” entre o grande público.
— Sim, senhor, General Torajin! — respondeu de prontidão a mulher.
“Estou indo, Kiyo!”
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