Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 2 – Arco 5

Capítulo 70: O barco

Saímos da cidade e embarcamos no barco, cada um com emoções distintas. Ainda que não consiga sentir tão bem assim as coisas ao redor, consigo sentir bem a tensão que todos ali carregavam.

Olhando para a minha mão, tentei sentir minha conexão, notando a ausência de resposta. Não consigo perceber nada ali, algo que me incomodou.

Fechei o punho ao lembrar da última conversa que tive com Alamar Justitia, do quão decepcionado estava e do quanto aquilo me machucou.

Achei que estava acima disso, que já tinha superado a vontade de alcançar as expectativas dos outros, mas parece que me enganei.

— Zozolum, o imperador das sombras, você está banido. Banido! — gritou, tentando desesperadamente manter a raiva sob seu controle. — Se você voltar, eu te mato. Independente das consequências, você morre.

Olhei para Zozolum, tentando entender o que o fez atacar a mansão dos Justitia e massacrar cinco dos anciãos. Não fazia sentido.

Achei que era mais inteligente que isso. 

— Quanto a você… Lewnard… — Olhou para mim, tentando acalmar-se. Senti um pouco de culpa pelo que sabia que viria a seguir. — Sugiro que saia de perto deste monstro. Sugiro que fique aqui, comigo. Posso te guiar, te ensinar melhor que este monstro. Fique aqui e será o portador mais poderoso dessa era.

Senti-me tentado a segui-lo, muito tentado. Ainda que Zozolum sempre tenha me tratado bem, nunca confiei nele. Além disso, podia ouvir um pouco mais sobre meu velho. 

Contudo, este era um caminho que não podia seguir. Tenho minhas promessas a cumprir, e sempre cuido delas. Além do mais, há aqueles que precisam da minha ajuda.

— Desculpe, Alamar, mas não posso ficar parado. — Era a verdade, sabia disso, mas ainda senti uma dor ao tomar essa decisão. 

Acho que, mesmo agora, ainda tenho dificuldades em fazer o certo. 

— Entendo… — sussurrou, decepcionado. Olhando para mim, notei o quão duro eram aqueles olhos e senti um calafrio. — Neste caso, também peço que não volte mais. Não quero ninguém relacionado a ele aqui, entendido?

Voltei ao presente quando o barco começou a navegar. Olhando para o céu e sentindo o balançar que pude notar que as cores que enxergava estavam mais nítidas. 

Meu sentido astral está mais forte, mas ainda não é suficiente. Preciso me recuperar logo…

— Lewnard, palavrinha. — Ouvi a voz de Zozolum e senti medo quando direcionei meu olhar para ele. 

De novo, aquela mesma sensação de antes veio. Aquele medo primal, ainda que em menor escala. 

Evitei ao máximo aprofundar-me nele e caminhei junto, até estarmos num local isolado. Nisso, Zozolum olhou fundo em meus olhos e permitiu um suspiro cansado lhe escapar pelos lábios. 

— Devo pedir, me desculpe. — Senti os olhos arregalarem quando ouvi aquelas palavras. Ele parecia genuinamente arrependido de algo que não tinha ideia do que era. — Se fosse, atento, poderia, evitado essa situação. 

Nisso, tirou o olhar arrependido e o ar voltou a ficar pesado. 

— Quando recuperou, sentido astral?

Engoli em seco com o quão sério estava e suspirei. 

— Anteontem, quando ainda estava numa cela — respondi, encarando-o com cautela. Essa situação era bizarra pois todos disseram que demoraria pelo menos um mês para recuperar meu poder, mas, da forma como estava avançando, acho que até a semana que vem devo ter recuperado minha conexão.

O bruxo arregalou os olhos, e senti um pouco de irritação. Invadindo minha privacidade de novo… 

— Uma semana? Isso é… nunca vi, parecido — sussurrou, uma expressão estranha caiu sobre seu rosto. Quase como se estivesse se lembrando de algo, mas que se recusasse a reconhecer o que quer que aquilo fosse. — Bem, era, isso… 

Caminhou para fora do beco em que estávamos e deixou-me pensando. 

Isso, enquanto algo bom, pode virar um problema. Ser único nesse mundo não traz nada de bom, apenas faz com que todo o tipo de gente preste atenção em você, e nem sempre são pessoas boas. 

Suspirei e sai dali. Não adianta pensar no futuro, ainda não. 

Quando o sol iluminou meu rosto, senti o olhar preocupado do meu mais novo amigo. Saindo de onde se escondia, foi até a minha pessoa. A armadura não estava mais lá, invés disso, vestia trajes leves de Kaira, com a espada presa numa especie de cinto.

— Tudo bem?

— Sim… meu mentor só queria confirmar algumas coisas. — Sorri com a preocupação dele. — E você? Empolgado?

— Não posso dizer que não estou — respondeu, olhando para frente. Senti de longe a determinação queimando fundo dentro dele. — Quero ver logo que tipo de oponentes essa viagem me trará. 

Suspirei e caminhei de volta para a proa, o sol incomodou um pouco, fazendo-me suar. O clima aqui é desagradável. Ainda que o cheiro de água salgada fosse agradável, o calor tirava todo o vigor que tinha. 

Senti-o seguindo-me, estando alguns passos atrás. Benkei queria ficar forte para honrar o nome que pegou. Era uma história bem interessante a dele. 

Kaira abandonara o caminho da espada, optando pelas armas modernas, mas o espírito que tanto ouvi falar ainda vivia no coração de alguns deles.

Benkei era alguém que admirava muito o espadachim, Miyamoto Musashi. Não ouvi muito dele, mas pela forma como as pessoas falavam, pude ver alguém formidável. 

Alguém que a pessoa ao meu lado não conseguiu se igualar. Repousei o corpo na grade que separava-me do mar enquanto olhava para aquela imensidão azul. 

Por ser incapaz de viver pelo seu ideal, um rapaz abandonou o nome e a vida passada para copiar o caminho de outro guerreiro. Um monge guerreiro que morreu de pé. 

Era belo no quão simples parecia. 

— Descanse, Benkei. Teremos muito o que fazer em alguns dias. 

 

Zozolum desconfia de algo. — A voz do espectro soou como música para meus ouvidos. Foi logo após de entrar na minha cabine para dormir que decidiu se fazer presente.

— Oi pra você também — disse, tirando a camisa. Esse terno formal que me colocaram já estava me sufocando. 

Achei que teria um descanso de política, mas ele só viu o que aconteceu como uma prova que era muito ingênuo, muito verde. 

Talvez… não, ele com certeza está certo. O que aconteceu foi minha culpa. Baixei e guarda num momento de vulnerabilidade e paguei o preço. 

De qualquer forma, não acontecerá de novo. 

— O que quer dizer com isso? Do que raios ele desconfia? — disse, colocando então uma camisa mais leve e olhando para a figura apoiada na parede. 

Bem, por mais que eu odeie estar no mesmo barco que um pobre coitado como você, nem eu sei a resposta disso — disse, surpreendendo-me com aquilo. Normalmente, nunca ouvira aquele tom frustrado na voz dele. Parecia sempre saber de tudo ao redor…

No que raios está pensando?

— Ele sabe de algo que não sabemos. 

— Sim, é o Zozolum! Isso basicamente define ele — respondi, não entendendo aonde queria chegar. 

Fale por si mesmo. São poucos os que tem o privilégio de dizer que sabem mais de algo que eu… Em condições normais, Zozolum não seria um deles. 

— Bom ver que está com a autoestima lá em cima, mas podemos deixar isso para amanhã? — perguntei, indo para a cama, quando sorri de forma travessa. — Ou será que estava com tanta saudades de mim que não para de falar? Não achei que fosse um pai coruja, sabia?

O espectro riu, como se a mera ideia fosse ridícula, e olhou para mim. Ainda que os olhos estivessem cobertos, podia sentir algo ali. Seja o que for, sumiu rapidamente, tão rápido que nem consegui identificar. 

Desde quando aprendeu a usar essa sua língua para algo que preste?

— Quem sabe… — disse, fechando os olhos conforme o balançar do barco trazia o sono para cada vez mais perto. — Acho que foi quando aceitei esse trabalho, quando um certo espírito idiota começou a me insultar quando devia me ensinar. 

Ficamos em silêncio por alguns segundos, até que olhei na direção dele, vendo-o brilhar em ametista, um mais fraco que antes. 

— Você está morrendo. — Não era uma pergunta. Aquilo era a verdade e nós dois sabíamos. Apesar de nossas diferenças, não pude deixar de sentir uma séria tristeza quando percebi que não negara.

E eu achando que era idiota demais para notar. Achei que precisaria desaparecer para perceber que meu tempo contigo está se esgotando — disse, levantando a mão até o véu. Engoli em seco quando percebi o quão próximo estava de retirá-lo. — Eu não estava vivo para início de conversa. Sou apenas um eco de portadores passados, pronto para ser assimilado ao atual portador quando o mesmo alcançar a maioridade.

— Mas eu já a alcancei — retruquei, levantando de impulso enquanto sentia-me agitado. — Nossos espíritos já deviam ter se fundido… mesmo assim… 

Mesmo assim, aqui estamos. Ambos ainda inteiros e separados. — Nisso, olhou para mim e permitiu que uma chama crescesse na mão próxima ao rosto, iluminando-o por alguns segundos. — Talvez o que Zozolum desconfie seja o que nos torna diferentes. Mas isso já não importa mais. 

— Não?

Não. Sendo bem sincero, Zozolum está do nosso lado, ao menos por enquanto. Tudo o que precisa fazer é não irritá-lo e, uma hora ou outra, ele vai se abrir — disse, fazendo com que olhasse desconfiado para ele.

— Sabe, ser honesto não faz muito a cara dele. É um dos motivos pelos quais está vivo a tanto tempo. Não deixa ninguém se aproximar, logo, não corre o risco de ter uma fraqueza. Por isso…

Ele será honesto. — Parou-me antes que pudesse continuar, olhando fundo em meus olhos. — Aquela criança mudou, mas não apagou tudo o que foi ainda. Ele se abrirá para você e, quando o fizer, revelará esses segredos.

Fiquei calado, sem saber como responder. Sendo bem sincero, eu acho difícil, quase impossível ele ser honesto só pelo bem do próximo, mas a forma como o espectro falou… 

Parecia quase como se conhecesse o Zozolum, quase como se fosse mais velho até.

Impossível… Zozolum antecede a própria guerra. Alguém mais velho teria de ser um dos primeiros portadores, algo que não pode ser. Os diários estão ligados a assinatura astral do portador desde a concepção dele, por isso que o espírito guardião sempre pega aquele que tem a maior semelhança dentre os antepassados para guiar o herdeiro…

Sim, apenas um antepassado, alguém ligado ao diário em questão, pode se tornar um espírito guardião. Por esse motivo que portadores como Davi Hollick tiveram de aprender tudo sozinhos. 

Tem que haver uma ligação entre ancestral, diário e herdeiro.

Então, se isso é realmente verdade, por que ele é um dos quatro ladrões de Yw.

E mais importante que isso é… o que exatamente isso me torna?

 



Comentários