Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 2 – Arco 5

Capítulo 69: Irmãos, parte 2

Desviei de outro golpe, e então mais um. Aqueles golpes carregados de tristeza, uma frígida e morta determinação. Antes que pudesse continuar, segurei o pulso dela e a joguei para longe.

— Não vai conseguir sair daqui se não vier para cima de mim com tudo — disse, vendo-a levantar-se e colocando-me numa postura de defesa novamente. — Não me insulte dessa forma, irmã.

Parou e olhou para mim por alguns minutos, mordendo o lábio e, naquele momento, permitiu que uma aparência mais bestial viesse à tona. 

Não quero ter de machucá-la, mas não posso deixar que haja dúvidas.

Ainda que me odeie por isso depois, ainda que me arrependa, preciso provar para ela que conseguirei pará-la, não importando o quão forte se torne. Só assim posso protegê-la.

Como se lesse minha mente, grunhiu, irritada, e correu para cima de mim. Desviei de novo e de novo, notando como os ataques ficaram mais rápidos. 

Comecei a me mover para trás a passos lentos, tentando ao máximo não me afastar. Abaixei a cabeça, esquivando de um chute e então levantei-a, pulando para longe e saindo do alcance de outro.

— Onde aprendeu a lutar assim?

— Podia te perguntar a mesma coisa — retrucou, deixando mais energia dual circular ao redor. — Acha que estou de brincadeira? Por que não revida?

— Que pergunta é essa? — Relaxei o corpo, olhando-a com estranheza e então tive de desviar das garras dela, pulando para longe, tendo que cada vez mais rápido me mover. — Quando que levantei a mão contra você? Nunca… e isso não vai mudar.

— Não entendeu ainda! — rugiu, forçando-me a bloquear um chute frontal que me mandou voando para longe. — Eu sou um monstro! Se não lutar a sério, vai morrer!

Olhei para ela e tentei me levantar, sentindo uma enorme dor no braço. Olhando para ele, suprimi um suspiro. Isso ia deixar uma marca.

— Um membro já foi… faltam três. — Correu contra mim, forçando-me a correr, desviando de mais e mais golpes, cada ataque deixava um corte na carne, o sangue começara a fluir livremente. 

Segurei a mão dela e a trouxe para longe, nossos olhares se encontraram e pude, uma vez mais, notar o quão diferentes eram. Meu azul elétrico sempre exalou poder e confiança, mas os de Grace sempre mostraram timidez e calma. 

Um cinza, como o resultado da brasa que morre, gentil e que acolhe todos com o calor. Haviam alguns traços de amarelo ali, mas ainda era a mesma.

— Já deixei claro, não é? — Tentou se desvencilhar, mas mantive um aperto firme. — Não vou revidar, não vou fugir e nem vou deixar que saia do meu lado. Então aproveite e jogue todas as suas frustrações em mim! 

Girando o pulso, desvencilhou-se e forçou-me a esquivar de um ataque que tomaria minha cabeça. Uma vez mais, olhei para minha querida irmã e, assim como fizera com Edwars, adentrei dentro dos sentimentos dela, conseguindo assim ver seu coração.

Estava… triste. Triste e cheio de dor, não só pela situação em si, mas também por mim… 

Eu estou a machucando? Aquilo me fez parar, olhando incrédulo para ela. Notei que haviam lágrimas nos olhos e desviei de outro ataque, recebendo um corte profundo no ombro, junto a um chute no estômago.

— Lewnard! — Merda… quase morri ali. Virando-me para trás, deixei claro para Benkei que não devia intervir e tentei me levantar, sentindo-me tonto. 

Suspirei e encarei-a. Parecia satisfeita apenas em me olhar, mas sabia que estava me analisando, preocupada demais para esconder aquele sentimento.

Quando enfim pude me colocar de pé, vi que ficara ainda mais irritada, e começou a rosnar quando finalmente pus-me na pose de luta.

— Por que não desiste? Quantas vezes vou ter que te bater até entender… — A voz era desesperada, incrédula até. Havia todo tipo de emoção ali, desde tristeza por não ouvi-la até felicidade por me preocupar tanto.

Tentei reunir um pouco da minha conexão…Ótimo, não tenho nem o mínimo. 

— Não importa… — sussurrou, olhando-me friamente conforme caminhava até mim. — Se quebrar suas pernas, não se levantará mais… 

Pulou em minha direção… Não tenho energia para bloquear, e nem conseguirei desviar a tempo. Ainda assim, não deixei isso me abalar. 

Corri até ela quando vi que estava perto o suficiente para tentar um chute e a abracei com meu braço bom, tentando desesperadamente ignorar o braço quebrado e as garras que rasgavam minhas costas.

— Desculpa… — Agora eu entendo, agora que vi profundamente dentro do coração dela, consigo entender perfeitamente a dor que sentia. Parou de se debater por um momento e logo voltou a se desvencilhar. — Sinto muito.

Sem que eu percebesse, coloquei-a num pedestal, vendo-a como uma pessoa que não era. Sim, Grace era gentil e inteligente, mas não era só isso. 

Ela também queria desesperadamente me ajudar, queria me proteger. Sentia que a única coisa boa que veio dessa situação em que estava era que, talvez, tivesse a chance de andar ao meu lado.

E eu joguei esses sentimentos fora, tentando afastá-la.

Eu sou um idiota.

— Você devia mesmo… — murmurou, as tentativas de sair do meu abraço diminuíam e estava cada vez mais calma. — Está sempre se pondo em risco, sempre voltando machucado… Como acha que eu me sinto? E os outros?

— Já pedi desculpas.

— Sim, depois eu vejo se te perdoo. — A voz saiu abafada conforme se aprofundava no abraço. Senti um enorme alívio quando vi que enfim dormiu. Junto disso veio a queda de adrenalina, que trouxe uma imensa dor. 

Mordi o lábio, tentando não acordá-la. 

— Benkei… pode me ajudar aqui? — Fez como pedido, tirando-a e colocando-a na sua garupa. Nisso, pude cair no chão sem medo de deixá-la ainda mais triste. 

— Por que não revidou? — perguntou, olhando para meus machucados com clara confusão no rosto. — Podia ter só a nocauteado, não? 

— Que bem isso faria? — perguntei, olhando para ele e então para Grace. Meu rosto devia estar uma merda pela forma como olhava para mim. — É verdade que podia ter lutado para valer, mas isso só a machucaria mais. Além disso, se fizesse como sugere, não salvaria ela.

— Salvar?

— Sim… É uma coisa que eu demorei para aprender — respondi, lembrando de tudo que passei na montanha nevoenta, de como salvar alguém não se resumia só a ajudá-la. 

Aqueles dois, ambos estavam lá um para o outros. Ainda que não tenham me dito nada, sabia bem que, para o bem ou para o mal, o Xamã salvou Luna. 

Aquela foi a primeira vez que vi alguém ser realmente salvo. Você pode proteger alguém de todos os perigos físicos, mas a pessoa pode estar destroçada por dentro. Quando paro para pensar, aquele homem era um verdadeiro heroi, meu heroi, pois ele também me salvou, de uma forma ou de outra.

— Bem, vamos voltar para o hotel… — Olhando para ele, uma ideia surgiu em minha mente. — Diga-me, quer sair dessa cidade? 

Parou de andar e olhou para mim, uma breve chama brilhou nos olhos. — Sim. Não tem mais nada aqui para mim. 

— Entendo… — Ainda que tenha recobrado minha capacidade sensitiva, não tem garantia que o mesmo ocorreria com o resto dos meus poderes, ou que eu manteria minha habilidade. Tinha só uma coisa a se fazer. — Estaria interessado em um emprego?

 

Nisso, olhei para os dois jovens com um sorriso no rosto. A entidade das sombras parecia satisfeita conforme mastigava as almas dos membros daquela família. Isso provavelmente dará uma enorme dor de cabeça, mas não me importo muito. Não nesse momento.

Estou curioso sobre algo… — A entidade das sombras parou de mastigar de repente, virando-se para mim. Não precisei olhar para sentir o julgamento ali. — Não tens medo de acabar no inferno? 

— Se eu tivesse, não teria feito um contrato com um dos príncipes de Lucifer, não concorda? — sussurrei quando ouvi o guinchar que era a gargalhada dele. Era um som irritante, quase como um carvão sendo lixado até virar diamante. 

É, você é divertido. Humanos são, mas você sempre me fascinou. O único humano que não teme o inferno depois da grande cisão — disse, terminando enfim a alma do quarto ancião e partindo para a coxa do pai de Justitia.

— E o que eu teria a temer? O tormento eterno? — perguntei conforme memórias vinham à minha mente, forçando-me a lembrar de tudo que já vivi. — Não me faça rir. Além disso, eu já dei-a a você, não é? 

Que sagaz… Sim, você não vai para o inferno, ao menos, não para um normal. — Começou a rir enquanto acariciava seu estômago. — Vocês, bruxos, são como o vinho. Quanto mais velhos, melhor… por isso que ainda vive. Além do mais… — Deixou a posição ajoelhada em que estava e ficou de pé, permitindo-me ver a altura absurda dele. — vi sua morte e ela só tornará o sabor ainda mais doce.

Entidades eram coisas curiosas. Mesmo eu, que estou praticamente fundido a uma não consigo ver direito o que ele esconde por detrás do véu de trevas. Humanos são incapazes de entendê-las.

Seres de dimensões diferentes não podem interagir, esta é a lei que governa a bruxaria, que nos protege de entidades particularmente perigosas. Não conseguimos ver nenhum detalhe daqueles em planos superiores, não por se esconderem, mas sim porque nossos cérebros não foram feitos para ver isso.

Abaddon não era diferente nesse sentido. Talvez, devido à nossa ligação e ao poder que adquiriu no plano Astral por conta dela, seja impossível para qualquer um além de mim ver a enorme massa de sombra líquida.

É graças a essa lei que podemos fazer tudo o que quisermos no plano material… e é essa mesma lei que nos arrastará para um inferno depois da morte. 

Entidades não são seres dos quais podemos brincar. Contrário do que muitos acreditam, são existências orgulhosas e rancorosas. É quase garantido que um humano vá insultar uma entidade num momento ou outro e, por isso, quando se entra no caminho da bruxaria, nunca mais se pode voltar.

O motivo pelo qual não tive um aprendiz sequer nos últimos mil anos foi porque sei bem o que espera estas crianças, e este também é o motivo pelo qual minha punição é digna. 

Afinal, eu condenei uma garota inocente ao sofrimento eterno e não consigo sentir nada a respeito disso, indiferente do quão anormal eu sei que isso é. 

Suspirei e voltei minha atenção para o céu, notando o quão belo estava. Sem dúvidas, seria um ótimo dia para navegarmos, mas… 

Voltando minha atenção para o gabinete de Justitia, senti o olhar penetrante dele em minha nuca. Ele já deve ter recebido a informação do que aconteceu.

Bem, acho que nunca mais poderei vir à melhor praia do mundo… Não é uma perda muito grande, considerando tudo o que podia acontecer de errado.

Felizmente, o portador de Davi está bem, minha aprendiz está segura e Grace Hollick ainda manteve-se humana. Acho que foi um dia bom, apesar de tudo o que aconteceu. 

 



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