Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 2 – Arco 5

Capítulo 68: Irmãos, parte 1

Já se passaram dois dias desde que fui preso. Enquanto a primeira noite foi insuportável, a segunda não teve nem metade do mesmo peso. Quase como se meu corpo se acostumasse ao frio extremo.

Era estranho. Pelo que falaram, devia ter morrido no segundo dia, mas nem ao menos espirrei lá. O meu companheiro de cela, contudo, não compartilhava do mesmo problema.

— Como é que você aguenta esse frio? — Dei de ombros, incapaz de entender como algo assim acontecera. Parando para pensar, não é a primeira vez que me colocam numa situação onde a morte é a melhor opção.

Quer dizer, ainda antes de herdar o diário, houve momentos que achei genuinamente que ia morrer. Ninguém tem parte do trato digestivo puxado para o Plano Astral e sobrevive. 

Na época, achei que minha conexão crescente com o diário de Davi fosse a responsável, mas já não tenho tanta certeza. Mesmo agora, ainda está fraca. Fraca demais para ser como era.

Talvez seja algo relacionado com a linhagem dos Hollick? Nunca vi um deles machucado seriamente, mas era a única solução que consegui pensar.

É dito que, quando um clã mergulha nas artes astrais como é o caso dos Portadores, este desenvolve uma habilidade em específico na linhagem sanguínea que melhor se encaixa no estilo deles.

Contudo, os membros do nosso clã raramente são feridos em lutas. Era quase como se pudessem prever o movimento dos outros.

Suspirei, sentindo uma enxaqueca crescer em mim. Meu pai nunca foi infiel e minha mãe, ainda que o odiasse, tinha medo demais do conselho para sujar a linhagem de John. Eu sou um Hollick, sei disso…

Mas de onde veio essa habilidade de recuperação e adaptação, então?

— Lewnard? Tá me ouvindo?

— Oi? Desculpa, disse alguma coisa?

Benkei olhou preocupado para mim e suspirou. 

— Estava lhe perguntando para onde vai depois de sair daqui… — disse, olhando para mim com expectativa. Não respondi, invés disso, olhei para frente, engolindo em seco. — Lewnard?

— Quieto… — Sussurrei, sentindo a presença familiar se aproximar. Era uma que eu queria esquecer desesperadamente, uma pessoa que, sinceramente, preferia que continuasse em Juvicent, mas que, aparentemente, me seguiu até aqui.

Lumis.

Engoli em seco quando a porta abriu e senti minha respiração trancar quando vi quem era a pessoa ali. Não… por que ela? Por que a presença dela está assim?

Minha irmãzinha olhou para mim, com clara fome. Senti uma ponta de medo conforme andava cada vez mais perto.

— Que cheiro maravilhoso… — A voz saiu distorcida, uma mistura da suavidade que tinha com o rosnar de um lobo. — Um ótimo cheiro. Está com medo? Claro que está… Como não estaria? 

Conforme falava, aproximava-se e ia até minha cela, meu coração disparava e sentia meu sangue gelar. Tocando no aço frio, dobrou as grades com a maior facilidade do mundo.

A cada passo, sua aparência mudava, ficava mais… animalesca? Engoli em seco quando vi que estava perto o suficiente e tentei me mexer. O som das correntes fez com que ela sorrisse ainda mais.

— O canarinho loiro está enjaulado? Que fofo.

Tentei trazer o pouco que tinha da minha conexão para fora conforme aproximava-se, algo que fez com que sorrisse. Nisso, levantou a mão e, com um rápido movimento, cortou as algemas que me prendiam.

— Você ainda é família e, por isso, não vou te devorar… — Senti um enorme alívio quando ouvi aquilo. Olhando para as minhas mãos, vi que estavam tremendo e tentei de todas as formas forçá-las a parar… —  Já o gordinho ali… 

Senti o meu coração parar e olhei para Benkei, que não parecia nem um pouco intimidado. Invés disso, era como se soubesse que ia sair vivo dali.

— Grace, não o mate.

— Por que não? Ele parece ser delicioso. 

Senti uma pontada de dor ao ouvir isso. Ela tomou o remédio? Bem, isso não importa agora… Preciso tirá-la daqui. Peguei-a pela mão e puxei-a. Surpresa, deixou ser levada por alguns metros. O suficiente para conseguir jogá-la para longe.

— Não posso deixar que faça isso! Jamais se perdoaria… 

— Lewnard… — Senti o gelo percorrer minha espinha. Aquela voz, aquele olhar, ambos tão familiares, tão assustadores. Engoli em seco conforme lembrava da última vez que senti esse medo.

De quando ainda era fraco.

Rapidamente, correu ao meu encontro, forçando-me a abaixar o corpo. Vi os dedos esticados e soube que, se não desviasse, teria perdido os olhos.

Não me deu tempo de me recuperar, já com mais um golpe pronto, dessa vez com as pernas. Botando minhas mãos a frente do corpo, senti meus braços formigarem após o impacto. Olhando para frente, fiquei incrédulo. 

Ela me empurrou de volta para a cela…

— Não se intrometa.

— Sinto muito… — disse, tentando sorrir enquanto levantava-me. A dor começara a se espalhar e, pelo prognóstico, vou precisar de um tempo para me recuperar. Tempo que não tenho. — Não vou deixar que faça isso. 

— Por quê?

Caminhei, zonzo, até ela e, ao estar próximo o suficiente, acariciei-a, dissipando a tensão no corpo dela por completo.

— Porque somos família. E, independente do que os velhos do clã tentem dizer, nós cuidamos uns dos outros. — Vi o rosto dela se contorcer conforme o olhar tornava-se mais triste. Senti uma pitada de arrependimento pelo que teria de fazer, mas não tinha jeito. 

Não posso deixar que Grace vire um monstro.

Nossas vistas se cruzaram e, quando pareceu que havia recobrado a racionalidade, fechou-os e correu para longe, muito mais rápido do que podia acompanhar.

— Espere! — Tentei segui-la, mas era muito mais rápida que conseguiria alcançá-la. Suspirei, olhando de volta para a cela. Caminhei até ali e busquei minha conexão. A cada passo, sentia que respondia ao meu desejo, queimando um pouco mais forte.

Quando estava próximo o suficiente, arranquei as grades da cela de Benkei do chão e quebrei as algemas dele. Ainda não estava de volta… ainda era muito fraca… mas isso terá que servir.

— Benkei, quer vir comigo?

Ficou pasmo por alguns segundos, até que sorriu e pegou a mão estendida, permitindo-me puxá-lo para cima.

— Seria uma desgraça para meu orgulho se não pagasse essa dívida. 

Ambos saímos da cela, correndo na direção de onde sabia que estaria. Eu a conhecia melhor que ninguém e só havia um lugar para onde minha irmã iria depois de estar estressada ou deprimida. 

Para a floresta.

Antes que pudesse completar o raciocínio, senti uma presença maligna varrer a cidade inteira, quase como uma enorme nuvem, cobrindo todo o céu. A sensação era semelhante à de se afogar, mas com o mar sendo um inferno de fogo e almas penadas gritando, implorando por misericórdia. 

O que raios é isso? 

Parei de correr e comecei a tremer. Ao longe, ouvi Benkei perguntar-me o que houve, mas como poderia responder? Nem mesmo eu sei! 

Uma memória veio à minha mente e, então, outra. Quando percebi, estava revisitando toda a minha infância. Ao longe, percebi que começara a ver a vida passar pelos meus olhos e senti um enorme enjoo. 

O que é isso… Olhei para minhas mãos, sentindo um sufoco. Eu… eu estou respirando? Minha consciência começou a se esvair. Calma, respire… espera… como raios se faz isso mesmo?

Sinto que se respirar, vou morrer…

Olhei na direção de onde aquela enorme pressão vinha, notando a mansão dos Justitia. Engoli em seco, tentando desesperadamente voltar a respirar. Preciso inspirar… puxar o ar pelo nariz, inflar o diafragma e então expirar, contraindo-o.

Calma… estou indo na direção oposta. Não preciso seguir nessa direção.

— Vem, vamos… — disse, tentando manter o tremor fora da voz. Era difícil e, quando enfim fiz meus pés me obedecerem, voltamos a andar. O alivio foi crescendo conforme a presença diminuía e consegui voltar a pensar racionalmente.

Só tinha uma pessoa no mundo que conseguiria fazer algo minimamente parecido com isso… Mesmo que só tenha visto bruxos invocando poderes de entidades, sei bem o quão assustadoras algumas delas são.

Para início de conversa, dependendo da criatura, elas precisam assumir uma forma que os humanos consigam assimilar. Alguns seres são tão poderosos que nem interagem conosco.

Não porque não querem, mas porque não podem. Entrar na nossa dimensão acabaria fazendo mal tanto para eles quanto para nós.

Por isso que a prática de fusão, ainda que parcial, com uma entidade era proibida. Deixar que uma entidade desça aqui e dar a ela um meio de interagir livremente com o Plano Material é pedir para ocorrer um desastre…

Só havia uma pessoa viva no mundo inteiro que conseguiu se fundir e manter-se ainda quem era antes… 

Zozolum.

Meu pai me avisou que esse homem era para ser temido, que não devia confiar numa única palavra que dissesse, fazendo-me prometer sempre prestar atenção nele… Só agora eu sei o motivo. 

Ninguém devia possuir tanto poder assim, ninguém devia possuir uma energia que passasse essa sensação.

Quando estávamos longe o suficiente, senti aquela presença desaparecer. Antes disso ocorrer, contudo, um calafrio percorreu minha espinha. 

Aquela coisa me observava com um interesse estranho, quase como se não me entendesse. Engoli em seco conforme sentia aquilo me dissecar. 

Não tenho tempo para isso. Respirei fundo enquanto corria, tentando manter o foco. Lembre-se do que aprendeu, daquilo que lhe ensinaram.

Foco.

Chegamos na floresta e fechei os olhos, acalmando meu coração. Após alguns minutos, localizei a energia dela e corri até lá. Conforme me aproximava, senti a profunda tristeza que ela carregava, assim como a raiva que queimava, pedindo para ser liberta.

Foi aí que eu a vi.

Estava cercada de sangue, o corpo de um cervo junto dela. A enorme tristeza crescia conforme comia, junto dela havia também um sentimento que tentava desesperadamente suprimir.

O sentimento de aceitação, de que aquilo era o correto. 

— O que veio fazer aqui? — Parei e então voltei a andar. Não sei que tipo de cara fazia, mas, pelo que senti, não devia ser algo agradável de se ver. — Afaste-se!

— Sabe que não posso fazer isso.

— Você não entende! — disse, olhando enfim para mim. As lágrimas no rosto dela cortaram meu coração e fizeram com que parasse. — Eu sou um monstro. Vou acabar te machucando, pode não ser agora, nem depois, mas, um dia, vou fazer algo de que vou me arrepender… Então, por favor… só se afaste.

Continuei a andar, a figura dela encolheu, pronta para sair dali em disparada. 

— Quando esse dia chegar, estarei pronto.

Olhou para mim, um triste sorriso no rosto, entendendo perfeitamente o que queria dizer enquanto sentia uma dor ainda maior lhe preenchendo.

— Mas eu não estarei — sussurrou, um vento frio levou as folhas e balançou o cabelo grisalho dela. Assumindo um rosto determinado, levantou-se enquanto olhava para mim, colocando-se na mesma postura que um lobo, prestes a atacar. — Saia da minha frente… Esqueça-me e não me procure mais.

— Eu me recuso.

Coloquei um pé à frente do outro, tentando sentir minha conexão. Estava fraca, quase inexistente… Bem, não vou poder contar com ela agora.

Tenho que vencê-la, não como o portador de Davi, mas sim como o irmão mais velho que sou…

Sorri com aquilo, sentindo-me verdadeiramente feliz. Olhou-me, confusa, mas não deixou a postura de antes.

— Se não sair, vou quebrar suas pernas e braços… 

Não me movi, continuei ali, minha felicidade aumentava conforme contemplava minha vida até aquele ponto. 

Fui preparado desde novo para viver como um portador deve. Quando era pequeno, nunca fui incentivado a ter um amigo, nem mesmo podia ser chamado de humano… 

Essa era a primeira vez, acho… A primeira vez que lutaria como uma pessoa normal. Como Lewnard Hollick.

Correu na minha direção, pronta para fazer o que prometera. Em resposta, apenas disse uma única palavra…

Um sincero obrigado.





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