Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 2 – Arco 5

Capítulo 59: Politicagem, parte 2

Quando dei por mim, já era de tarde. 

Olhei para o lado de fora, tentando alcançar com meus olhos uma paisagem que não existia. Não tinha qualquer motivação para me levantar. Nem para me mover… 

Elizabeth estava lá, cuidando de um grupo de crianças, vestindo uma roupa de empregada. Zozolum sem dúvidas devia estar planejando minha próxima lição…

Que saco. 

Em algumas horas, fará dois dias que saímos de Juvicent e nada da minha conexão voltar. Fiquei de pé e comecei a caminhar para o lado de fora.

Elizabeth me chamou, empolgada com algo. Havia um tom de cansaço na voz, não que me importasse muito. Olhando para ela, esperei que continuasse.

— Eu consegui que Zozolum me ensinasse! Disse que começaríamos meu treino a noite, desde que eu continuasse dando meu melhor!

Sorri, deixando que falasse. Estava feliz por ela, de verdade. Contudo, senti um pouco de inveja. Por que ela podia usar e eu não? Era injusto… 

Espantei esses pensamentos, lembrando de toda a situação que a garota vivia. Deixei que falasse até que fosse chamada para continuar o trabalho e me virei para trás, cruzando os olhos com um dos mercadores.

Caminhei até ele, tentando impor o máximo de respeito que conseguia e lembrando das aulas de Zozolum. 

— Quer alguma coisa, jovem?

— Sim, quero saber por que odeia Elizabeth — disse, mantendo a emoção afastada da minha racionalidade. Quis continuar, mas segurei a língua. Se falasse demais, daria mais munição para meu oponente.

— É mesmo? E por que acha que odeio ela? — falou, tentando levar a conversa para uma negociação. Sorri internamente. 

Então é assim que quer brincar?

— Está no seu olhar. Agora, responda minha pergunta.

O velho me olhou, surpreso, e sorriu, alisando a barba. Virou-se e começou a caminhar para longe, arqueando uma sobrancelha, fui atrás. 

— É raro ver alguém tão jovem dominar tão bem a oratória.

— Agradeço. — Evitei falar sobre meu mentor, tentando ao máximo manter minhas cartas escondidas. Tem um motivo do porquê de velhos comerciantes como esse cara serem tão perigosos. 

São pessoas que construíram seus impérios do nada. Num país como Anjus, onde a competitividade é tamanha que não há uma única moeda, é natural que apenas aqueles que se adaptam melhor conseguem ser alguém na vida.

Alguém que aprende rápido e que tem a experiência que esse senhor possui é um inimigo que prefiro não ter. Contudo, eu odeio ver injustiças… independente de quem seja. 

Este é o motivo de eu ter ajudado Elizabeth ainda quando ela tinha aquele selo amaldiçoado. 

— Eu lhe direi o motivo, desde que me conte quem lhe ensinou. E seja sincero. — Engoli em seco, suando frio. 

Como ele descobriu?

— Como falei, são poucos que dominam a oratória tão bem como você. E os jovens de hoje não se preocupam muito com isso, principalmente aqueles de origem humilde. — Olhou para o meu casaco com um pouco de nojo.

Segurei uma resposta atravessada enquanto tentava fazer um controle de danos. Não tem jeito… ele me pegou nessa. 

Se ficasse quieto por muito tempo, só admitiria que estava certo e perderia o interesse dele. Melhor só ser honesto.

— Zozolum — disse, observando-o parar de andar e olhar para mim, incrédulo. As vezes esqueço o peso que o nome dele carrega, mesmo entre os normais. 

— Como? Como conseguiu que aquele homem lhe ensinasse?

Segurei um sorriso com a reação dele.

— Responda minha pergunta e quem sabe eu te conto.

O velho me olhou, incrédulo, e sorriu. Virou-se para longe e começou a caminhar. Olhei para as costas dele enquanto mantinha minha curiosidade presa no peito.

— Boa tentativa, garoto… Mas eu não fiquei senil ainda. Espera mesmo que eu acredite que aquele homem decidiu pegar um zé-ninguém como aprendiz?

Segurei bem minha língua. Não posso perder a calma. Se eu me rebaixar ao nível dele, só vou permitir que vire o jogo. Já está quase perdendo…

— Se acredita ou não em mim, isso é irrelevante. Mas, bem, lembre-se que Zozolum está nessa caravana. Se quiser, posso chamá-lo aqui para esclarecer essas dúvidas. — Parei de falar e então sorri, tentando emular a voz do espectro da melhor forma possível. — Claro, a não ser que esteja com medo de tê-lo ofendido… Não que um velhaco como você vá viver muito, de qualquer forma.

Senti a raiva dele daqui e não pude deixar de estranhar o quão natural aquele insulto saiu. Não apenas isso, também notei a forma como o tom arrogante e olhar de desdém eram algo tão simples e prazeroso de usar. 

Tá explicado porque ele sempre age dessa forma.

— Seu pivete… — Isso, fique irritado. Perca a calma e seja derrotado. Não pude evitar de sorrir e, se pudesse me ver agora, tenho certeza que puxaria briga. 

— O que foi? Tá com medinho? Ou só percebeu que estou falando a verdade? Agora, responda a pergunta.

Dava para ver pelo rosto vermelho e veias protuberantes que estava claramente considerando me esganar. Contudo, depois de alguns segundos, acalmou-se e sentou numa pedra que ali havia.

— Por mais que todo mundo saiba a essa altura, o rei não era uma pessoa boa. Era um hipócrita, que agia com base nos instintos mais básicos, sem qualquer controle.

Aquela era a verdade, sabia disso, mas senti a necessidade de, ao menos, defender Vanitas. Não era uma questão dele estar morto, ou das coisas que o velho falou estarem erradas. 

Só haviam verdades ali, mas não consigo deixar de lembrar da expressão que tinha feito quando veio me pedir para salvar sua filha, alguns meses atrás. 

Algo me dizia que é injusto condená-lo pelo que fez e esquecer de todas as qualidades. Talvez fosse meu idealismo falando, mas só não me parecia certo. 

— O meu problema com a princesa não é algo banal, que surgiu recentemente. Eu odeio o pai dela, do fundo do meu coração. Eu não ligo se é justo ou não, nunca perdoarei o que ele fez.

— Você é bem passional sobre isso. Considerando o quanto preza a lógica, é no mínimo estranho.

— Não te culpo por pensar assim. — Levantou-se e começou a caminhar para fora. — Agora, com sua licença, vou descansar um pouco esses ossos velhos.

Após se despedir, deixou-me só. Olhando para o vale, aceitei, relutantemente, que não poderia convencê-lo. Decidi voltar para a caravana enquanto lembrava da situação atual da minha cidade.

Não tenho dúvidas que os Nors já começaram a caçar os cidadãos. Teremos sorte se, quando voltarmos, houver alguma alma viva…

Não, eles não vão comer todos de uma vez. A desconfiança do povo provavelmente se tornaria raiva quando a polícia se recusasse a divulgar um culpado.

O Moedor é esperto e deve ter pensado em alguma forma de cobrir os desaparecimentos. Sem dúvidas deve ter pensado em algo. Além de todos os Nors ali obedecerem a rainha.

Lembrei do tempo que passei naquela cela, da forma como cada “refeição” era preparada a cada oito horas. Os Nors não comiam mais do que uma vez por semana, mas, devido a grande quantidade de monstros, é fácil pensar que cada um deles tinha um horário específico para comer.

Parei de andar e olhei de volta para a cidade. Como será que Nick está? Alguém com o senso de justiça e responsabilidade dele não aceitaria o que está acontecendo. 

Sem dúvidas que está tentando o seu melhor para manter os criminosos presos… 

Arregalei os olhos quando uma das peças do quebra-cabeça se instalou. O Moedor agora tem o controle do estado de Juvicent. Ele colocou uma figura como cabeça lá que o obedece… 

Droga, se isso for verdade, temos que agir rápido. O plano de Zozolum consistia em esperar até a população diminuir e os Nors começarem a ficar com fome. Usaria de suas conexões para convencer algumas famílias a se mudar. Era algo inteligente, mas não adiantaria nada se o que eu pensei for verdade.

Quando abri a porta da carruagem do bruxo, vi que ele recém começara a instruir Elizabeth. Não me importei, nem com o olhar surpreso dela ou de irritação do imperador.

— O que foi? — disse, tentando manter a paciência. 

— Temos que mudar o plano. Acabei de perceber uma coisa — disse, sentado ao lado da princesa. — Lembra como esperaríamos até a população diminuir para começar o ataque? Isso não vai funcionar.

— O que quer dizer?

— Os Nors podem se alimentar uma vez a cada semana, mas, quando estava na colonia, cada um deles tinha um horário específico para comer. Como todos são Nors da rainha, é meio óbvio que isso não mudou. Além disso… 

Tomei um momento para me recuperar quando vi o olhar arregalado dele. Senti uma pontada de irritação quando percebi que leu minha mente e olhei para Elizabeth.

Ela precisa saber… Merece mais do que qualquer um aqui essa informação.

— O Moedor tem controle estatal completo. Mesmo que as pessoas queiram deixar Juvicent, acabei de perceber que é só ele “aumentar” a estatística de crimes e jogar mais pessoas na cadeia que consegue manter os Nors lá… por bastante tempo.

Os dois ficaram quietos por algum tempo e pude sentir a tensão no ar. Ao meu lado, Elizabeth tremia feito um bambu. A raiva refletida nos olhos dela era algo que eu entendia bem.

Como não poderia? Era minha cidade também… Ainda que ela deva estar sofrendo muito mais. Foi criada desde nova com a responsabilidade de cuidar de Juvicent e ser incapaz de ajudar deve doer muito.

Eu e ela somos parecidos nesse aspecto. As expectativas postas sobre nossos ombos são pesadas, agora não é exceção.

Notei que estava olhando para ela e suspirei. Levantei-me e fui em direção a saída, despedindo-me dos dois. Ambos tem que continuar a lição e não devo me intrometer nisso.

Não sou um bruxo e, sinceramente, do jeito que estou agora só atrapalharia. 

 

Quando voltei para minha carruagem, meu olhar se cruzou com o de Grace. Estava com as pernas cruzadas, tentando ler um livro. 

Notei que, para minha grande surpresa, havia frustração no olhar. Indo até ela, dei uma olhada no livro. Era um livro de horror, que retratava a vida de um vampiro. Normalmente, era o gênero favorito dela, mas agora mal conseguia manter o olhar no livro.

— Está nervosa? — perguntei, sentando-me ao lado dela.

— Não é isso. — Olhou para mim, mordendo o lábio. — Não consigo focar mais. Antigamente, era tão fácil que eu podia ficar horas lendo… mas, desde que me tornei isso, é difícil. Consigo ouvir o batimento de cada pessoa nessa caravana, sinto o ar vibrar sempre que respiram, o cheiro de suor também não ajuda.

Olhei para ela, surpreso. Não esperava que os sentidos de um Licantropo fossem tão afiados assim. Não é a toa que não consegue ler… Ela estava meio aérea nos últimos dias e, conhecendo-a, devia estar frustrada. 

Grace sempre foi a mais inteligente dentre nós dois. Ouvi uma conversa, certa vez, de dois anciões do clã dizerem que ela herdou o traço de Hiperfoco dos Hollick, seja lá o que isso quer dizer. 

Talvez seja o motivo pelo qual ela consegue se concentrar com tanta facilidade… Ter isso tirado dela é como um soco no estômago. 

— Sei como é — disse, alisando o cabelo prateado enquanto lembrava da minha situação atual. Antes que entrasse numa espiral de pensamentos negativos, minha mão foi removida da cabeça e Grace olhava para mim com um rosto irritado.

— É diferente… Você perdeu a capacidade de fazer coisas incríveis, mas vai conseguir ela de volta. Não sei se um dia vou ter a chance de recuperar o que me foi tirado. 

Olhei para ela e suspirei. Podia contar para ela da minha experiência na colmeia, mas decidi que não o faria. Minha irmã só se sentiria culpada com isso. Passei por aquela situação para salvá-la.

Ainda assim, não podia deixar aquela carranca no rosto dela. Queria fazer algo, mas sinto que, se tentar, só pioraria as coisas. Com um suspiro, voltei a olhar para o lado de fora, esperando que algo mudasse na paisagem. 

A luz era a mesma, as cores as mesmas. Não havia nada de fantástico naquilo. Só o mesmo mundo tedioso de sempre.

Segundo as estimativas do Euclidum, deve demorar em torno de mais doze dias para recuperar minha conexão. Duas semanas vendo essa mesma paisagem… 

Com um suspiro, tentei sentir a presença do espectro, ou qualquer outra coisa, mas era impossível.

Que droga.

 



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