Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 4

Capítulo 47: Tragédia, parte 2

Acorda, Sigmun! Isso já foi longe demais! Não pode continuar ignorando a dor do seu povo!

A minha frente havia um homem que era a imagem e semelhança de Zozolum. O nome dele me era familiar, estava na ponta da língua…

Um choro feminino ecoou no local, virei minha cabeça para lá e arregalei meus olhos. Aquela chama que cobria a paisagem inteira, aquele sangue que pintava o laranja em tons vermelhos, e aquele cheiro de carne carbonizada.

Ali, encontrei uma mulher. Eu a conheço, juro que a conheço, mas não passava de outro rosto que não conseguia evocar o nome. Ela era uma serva de um dono de terra que sempre vendia as mercadorias do senhor. Em sua frente, uma mão de criança era tudo o que conseguia ver do corpo enterrado abaixo dos destroços.

Vai precisar que Leitzac inteira queime para perceber o que está acontecendo?

 

Acordei com o grito, minha cabeça zunia e não conseguia pensar em nada. A dor de antes não se comparava a isso… era como se meu crânio estivesse sendo aberto de dentro pra fora.

Levantei e corri para o banheiro, caindo no chão duas vezes no meio do caminho. Quando enfim alcancei meu objetivo, vomitei uma enorme quantidade de sangue.

Senti uma coceira nos olhos, junto da perda parcial de visão. Com o pouco que conseguia, notei que o sangue corria dos olhos e nariz também. Engasguei com o sangue e tossi por alguns minutos.

Um grito ecoou no corredor e, em segundos, senti uma mão me apoiar e outra bater nas minhas costas. Palavras soaram na esquerda, o que diziam? Cuspi mais sangue.

Não consigo… ficar de pé…

As mesmas mãos de antes me apoiaram e me levaram para a cama. Notei uma cabeleira branca e uma figura rodeada de sombras.

Zozolum, o que está acontecendo? — Eu conheço essa voz? Não consigo pensar em nada…

Meus olhos voltaram para a figura das sombras e senti lágrimas saírem junto de todo aquele sangue.

Grangoll… é você? — Vi a figura ficar paralisada por alguns segundos, um olhar de choque no rosto e murmurou algo que não ouvi…

Dê-me o aqui — falou, puxando-me para perto e, colocando uma mão sob minha testa, senti o calor de sua mão diminuir um pouco. — Está tendo uma hemorragia cerebral… — Após essas palavras, sombras me envolveram e, em pânico, só pude voltar a inconsciência, esperando que seja lá o que o Grangoll estivesse fazendo pudesse me ajudar…

Droga, se ao menos fosse o Elister… poderia descansar sem me preocupar… com nada…

 

Senti uma pontada de dor na cabeça quando acordei. Estava no meu quarto, naquele apartamento ferrado. Ao meu redor, conseguia sentir a presença de Shiki e Edwars. Focando neles, percebi a preocupação que sentiam. Shiki não se preocupava em esconder, mas Edwars tentava ao máximo esmagar os sentimentos que tinha.

Ainda que meu corpo protestasse, levantei com um grunhido que chamou a atenção dos dois.

Não esteja se levantando ainda! — Shiki me colocou de volta na cama, meu corpo muito fraco para protestar.

O que aconteceu?

Antes que Shiki pudesse falar qualquer coisa, Edwars olhou fundo nos meus olhos e sentou-se na cadeira que usei para cuidar dele.

Qual a última coisa que se lembra?

De ter sido salvo pelo Chryzazel… acho que vi um flash de luzes azuis antes de cair. — Olhei para Shiki enquanto arqueava uma sobrancelha. — Você estava trabalhando com ele? Por isso não pôde vir aqui?

Sim — respondeu, olhando para um anel prateado no dedo. Ele tinha uma safira num emblema junto de um emblema de raposa. — Estava cumprindo um favor que estava devendo para os Weissbreak. Salvar você não esteve vindo de graça… se bem que o prêmio está compensando.

Curioso, me levantei e analisei o anel com meus sentidos. Havia a essência de fogo ali, junto de algo estrangeiro e misterioso, quase como de uma cultura de um país diferente.

Este está sendo um anel de Inari, deusa da prosperidade de Kaira. Os devotos de Inari estarão usando isso como um contrato. Já que estou tendo um contrato vocal com Kokytus, estarei precisando de um contrato material para estar melhorando minhas chamas.

Então é isso? Por mais perigoso que o mundo dos Bruxos seja, não posso deixar de admitir que é fascinante como os contratos funcionam.

Assumindo uma condição para o resto da vida, o contratado ganha poder vindo do contratante. Para alguns, isso permite que eles usem artes místicas raras, que normalmente não teriam acesso. Para famílias como os Weissbreak, que firmavam um contrato desde o nascimento, o elemento que eram focados se tornava ainda mais forte.

Kokytus era o elemental de Gelo que guardava o rio Aqueronte, no inferno. Enquanto não existe prova de que o inferno realmente existe, a fé de uma família inteira nesse conto já fortalecia a magia a níveis inacreditáveis.

Isso era um obstáculo para Shiki, visto que gelo e fogo eram opostos. Pergunto-me o quão forte suas chamas são agora que firmou um contrato com a deusa raposa de Kaira.

Ainda bem que tinha esse anel consigo… Sem ele, Lewnard morreria. — Engasguei e olhei incrédulo para os dois. Como assim eu morreria? O diário devia ter dado cabo dos ferimentos, não é?

O que quer dizer?

Quando voltamos, algumas horas depois, você teve uma hemorragia cerebral. O imperador das sombras cogitou levá-lo para um hospital, mas decidiu que era mais seguro te manter aqui, onde podemos lutar sem nos preocupar com danos colaterais.

Uma hemorragia cerebral? O diário devia ter cuidado disso, não? Ele já estabilizou meu corpo de ferimentos tao ruins quanto esse.

Não é tão simples assim. — Um sorriso cansado apareceu no rosto do Dhampir. Olhei curioso para Shiki, esperando que falasse algo. Nada… O que está acontecendo? — Foi o Diário de Davi que causou essa hemorragia.

O quê?

Zozolum está pesquisando mais sobre, não esteja se preocupando! — Shiki tentou me acalmar mas recuou… minha cara devia demonstrar bem o que eu senti nesse momento.

Preciso de um momento sozinho… — sussurrei, tendo de repetir visto que ambos não ouviram da primeira vez. Quando saíram, procurei a assinatura do diário e, ao notar que estava na mesinha de cabeceira, peguei-o. — Vai lá, desembucha.

Minha voz estava quebrada e traída. Ainda que não suportasse ele, eu nunca imaginei que o Espectro fosse me ferir de alguma forma. Claro, ele já me impediu de fazer o que eu queria várias vezes, mas sempre que o fez, tinha um motivo para tal. Normalmente, minha segurança.

Sinceramente, estou tão confuso quanto você — disse, aparecendo enfim. Sua forma estava mais fraca que antes, a luz não era tão intensa e a voz estava cansada… Era quase como se tivesse que se esforçar para aparecer. — Talvez tenha a ver com o processo de Metanoia… mas não vejo como a assimilação…

Metanoia? O que é isso?

É mesmo, esqueci o quão incompetente você é. — Senti uma pontada de irritação com aquela fala. Uma coisa que não senti falta foram os insultos. — Certo, permita-me que eu te ilumine, pobre idiota. Metanoia é o processo de assimilação que um Portador passa ao chegar na maioridade astral. Basicamente, ele absorve o espírito guardião, tomando para si parte do conhecimento e poder da parte assimilada.

Esperei que continuasse, e, quando ficou claro que não o faria, grunhi irritado. — Tá, e qual a sua teoria?

Céus, se tem algo que eu não senti falta foi a sua imbecilidade. Pense um pouco, idiota. O que acontece quando se chacoalha uma garrafa de água com gás e tira a tampa?

O gás vasa para fora, enviando consigo água.

Sim. Por que isso acontece? A pressão interna faz com que o gás busque uma válvula de escape. Dois corpos não ocupam o mesmo lugar… junte isso com a energia gerada pelo movimento da garrafa, e esse é o resultado.

Tá, mas o que isso quer dizer?

Sério, você faz muita pergunta, sabia? Parece um pirralho ignorante. Bem, é simples. Sua energia é a água, a minha é o gás. A garrafa é seu corpo e o movimento é sua conexão sendo usada. Não tem problema mover um pouco, mas ficar chacoalhando como se não houvesse amanhã é o que causa a explosão. Normalmente, ambas as energias são água, então outros portadores nunca tiveram esse problema… mas, aparentemente, tem algo em nós que vai diretamente um contra o outro.

Que incrível dedução! Quem imaginaria que eu não te suportaria. Você só me insulta toda a hora que tem a oportunidade.

Não é minha culpa se você dá tanta oportunidade assim. Talvez, se fosse mais esperto, eu te trataria melhor. De qualquer forma, peço que não force sua conexão de novo… se o fizer, da próxima vez, pode ser que o Weissbreak não esteja aqui para limpar sua barra.

Tendo me explicado, sua forma se dissipou como fumaça e suspirei. Claro que isso aconteceria justamente comigo. Quem mais teria o azar de ganhar como espírito guardião um cara tão insuportável.

Fiquei quieto por alguns segundos enquanto processava tudo o que me foi dito. Isso é revoltante.

Não posso treinar, não posso sair daqui. Nem tenho forças nem para preparar um chá! Fechei os olhos e procurei a conexão dentro de mim, sorrindo com a força dela. Minha consciência foi até ela e se expandiu.

O mundo ficou mais claro, meus pensamentos vinham com mais facilidade… mas a dor de cabeça me fez parar. Não consigo usar a energia ao meu redor, não consigo sentir minha conexão… tudo o que eu posso fazer é usar meus sentidos.

Clareei minha mente enquanto me focava no andar onde estávamos. Era o terceiro, as portas abertas e a falta de cuidados mostravam que só eu morava aqui. Bem, eu e mais alguns ratos e baratas.

A escuridão não existia ao meu redor, tudo podia ser percebido. Era uma habilidade interessante de ter, mas inútil em combate. Contra Nors, eu raramente teria o tempo contar os grãos de poeira ou bloquear o som das asas de uma abelha.

A verdade era que a real utilidade dessa habilidade estava naquilo que fiz com Edwars. Saber das emoções do meu oponente em combate, conseguindo ler um pouco da mente dele era incrível, mas não consigo deixar de lembrar do que vi antes.

Aquelas memórias de Edwars… Não posso fazer isso de novo, não com pessoas próximas. Prefiro não treinar essa habilidade do que expor os segredos mais íntimos dos meus aliados.

Já terminou o papo com seu coleguinha, não é? Estamos entrando.

A porta foi aberta e Edwars arqueou uma sobrancelha, caminhando até onde estava e me oferecendo um pedaço de pão que aceitei sem pensar duas vezes. Engoli rápido, saciando minha fome e sentindo alívio. Acho que não comer por algum tempo é problemático.

Antes de eu ir embora, preciso passar uma mensagem para você — falou, indo até a janela e olhando a rua deserta do distrito. — O mestre Kruger te passou a primeira tarefa que deve cumprir. — Demorou um pouco até que entendesse o que quis dizer, mas lembrei então da dívida que tinha com aquele velho. — Vá para Ninlamak e mate os líderes da rebelião Esper. Essa foi a ordem.

Rebelião Esper?

Não me pergunte. Não me importo muito com o que acontece fora de Anjus. A única coisa da qual ouvi é que ninguém sabe quem são os líderes. Além disso, o conselho de clãs quer impedir que a nossa sociedade venha a público, algo que essa rebelião está tentando fazer de todas as formas. Acho que é por isso que Kruger quer ser um dos primeiros a acabar com ela.

Claro, sem chance de descansar. Além disso, ter que matar um líder de rebelião… eu entendo a necessidade disso mas, sinceramente, preferiria não ter de sujar minhas mãos de novo.

Senti o molhado nas mãos e o cheiro de ferro, minha mente me levando de volta para aquele beco, onde precisei salvar Elizabeth. Engoli em seco enquanto suava frio e tentava acalmar meu coração.

Tudo bem? Parece meio tenso

Suspirei e olhei para Edwars, meus olhos desfocados enquanto molhava os lábios. Tinha uma pergunta na ponta da língua, mas não sei se tenho força para fazê-la. Apertei os punhos, tentando acalmar o nervosismo.

Ei… me diz, já matou alguém? Um humano, quero dizer? — perguntei, incapaz de olhar nos olhos dele. — Eu matei quatro… no dia que Elizabeth veio aqui. Eu os matei e mataria de novo se tivesse a chance… Eu fiquei tão irritado. Eles iam estuprar ela se não fizesse nada… e eu fiz. Isso me torna alguém ruim?

Edwars olhou para mim com olhos estreitos e sorriu, sentando do meu lado. — Não sou o melhor para pedir conselhos sobre isso. Sei bem que viu minhas memórias e já sabe que matei humanos. Mais do que eu posso contar. Fiz isso porque tinha fome e o sangue de animais não tinha… um gosto tão bom assim. Isso me torna alguém ruim? Sim, me torna um assassino sujo, que mata por conveniência… Contudo, pelo que me disse e pelo que ouvi de Elizabeth, você salvou ela.

Isso não torna um assassinato algo justo. — Lembrei das palavras de meu pai, da promessa que fiz a ele: “Proteja os humanos”… Isso era algo mais difícil do que imaginei. — Assassinato ainda é assassinato. Eu podia ter me segurado um pouco, podia não ter batido com tanta força, sei lá. Como alguém que luta por paz vai alcançá-la se mato na primeira chance que tenho?

Paz? — Edwars estreitou os olhos, levantando-se e indo até a janela. — Shiki falou algo parecido. Disse que você queria paz entre humanos e Nors… Permita-me dizer aqui e agora que não vai rolar. Estamos em guerra já tem mil anos. Isso é tempo mais que o suficiente para a mágoa e ressentimento de ambos os lados ficar tão forte que ninguém conseguiria se livrar deles. Desista dessa ambição. Só vai perder seu tempo…

Nisso, andou até a porta. Quando estava para sair, olhou para mim uma última vez. — Contudo, esse é definitivamente um mundo que eu gostaria de ver — sussurrou alto o suficiente para que conseguisse ouvir. Um sorriso cansado se formou no meu rosto e eu olhei para o teto.

Uma perda de tempo… É, talvez seja isso mesmo… contudo, essa é uma perda de tempo que vale o esforço.


Bem, mais um capítulo feito. 

Peço, como sempre, que deem uma olhada nos servers da Novel Brasil e no meu próprio server, onde podem receber notícias sobre Dualidade.

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Além disso, peço que, caso precisem de alguma ajuda com literatura no geral, me chamem pelo meu email de consultor, [email protected]

Obrigado pela atenção!



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