Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 4

Capítulo 46: Tragédia, parte 1

Quando enfim dei por mim, voltamos a caminhar, a dor acompanhava-me em cada passo. Saímos dos distritos inferiores, tomando como caminho o parque nacional de Justicia. O caminhar era difícil, mas tentei ser forte, até que Elizabeth, notando meu sofrimento, pôs-me a sentar no berço de uma árvore enquanto tirava um lenço do bolso.

Ela então levou-o até minha face, tirando a sujeira e sangue, até enxurrar suas mãos com o rubro.

— Consegue seguir? Tem um riacho aqui perto. Preciso limpar seus ferimentos, ou podem infectar.

Fiz como pediu, levantando em silêncio e seguindo-a. A cada segundo eu sentia mais dor, e, sempre que a dor aumentava, as memórias do que fiz voltavam.

A violência, tortura, morte… tudo contra pessoas normais, as quais devia proteger. Os gritos deles, os olhares chocados… eram tão semelhantes aos que vi naquela cela, na colmeia.

Eu… sou um monstro?

Senti meu equilíbrio falhar ao chegar na frente da água. Elizabeth virou-se para trás, dando-me espaço. Demorou um pouco para entender, mas fiz o que me era esperado. Despindo-me, entrei na água, o choque térmico e os ferimentos trouxeram um choque que me despertou por completo.

O sangue e sujeira se espalharam, criando uma capa vermelha ali. A água fria começou a esquentar, tornando-se morna, agradável. Avancei mais um pouco, entrando até os ombros.

Peguei um punhado e lavei meu rosto, os cortes e ossos quebrados arderam, quase como se tivesse passado ácido. A dor e incômodo eram merecidas, acho.

Eu matei pessoas hoje… quatro. E não posso usar a segurança de Elizabeth como desculpa. Eu queria eles mortos. Queria ver o sangue deles, queria descontar minha raiva.

Assassinato nunca será justificado, ainda mais por alguém que quer trazer a paz.

E esse era o X da questão, não é? Eu quero a paz, uma paz como aquela que vi, ainda no jardim… como posso alcançar isso se não estou disposto a sacrificar algo?

Parei por um segundo de lavar minhas feridas. Sacrifício… por que precisamos sacrificar algo? Ainda quando herdeiro, eu vi meu pai fazer inúmeros sacrifícios pelo seu trabalho.

Seja tempo, seja amor, seja até mesmo parte do que lhe tornava humano. Ainda que fosse apenas de relance, eu vi o que meu pai fez para avançar as suas pesquisas.

Zozolum só cuidou de mim por conta das conquistas que meu pai teve na sociedade dos bruxos. Sim, meu pai ajudou muito a sociedade, conseguindo a alcunha de Barão de Esculápio. Era alguém realmente especial, alguém que se aprofundou tanto no diário de Davi que muitos acreditavam que conseguia criar vida a partir da matéria.

Ele era, de fato, um dos portadores com mais conquistas na era moderna.

Senti um gosto ruim e cuspi um pouco do sangue preso em minha garganta. As expectativas de ser o herdeiro de um homem como aquele eram altas demais para alguém como eu. As famílias de Portadores todas tem um método de treinar seus discípulos que guardam a sete chaves.

Por isso, nunca me desenvolvi. O método dos Hollick é ideal para pessoas com uma conexão normal com o Plano Astral. Alguém como eu, que tem uma conexão tão forte, precisava de outro método. Um que nunca tive acesso.

Afinal, existia competição entre as famílias, e nenhuma delas passou para outras o método de treino. O máximo que faziam era passar alguns segredos para os vassalos e nada mais.

Meus níveis de energia estavam se recuperando. Não gastei muito naquele massacre, mas ainda foi incomodo controlar meu poder sem o diário. Tentei moldar uma esfera em minha mão, permitindo que o brilho ametista iluminasse a noite e secasse um pouco dos meus cabelos, afastando a água ao redor.

Devido a natureza desta energia, tudo que era matéria era repelido. Naturalmente, o vapor também ajudava.

Era uma tarefa difícil manter essa esfera estável. Se estivesse com o diário, poderia manipular bem mais poder, ao ponto de secar esse riacho inteiro só com o pensamento, mas aqui estamos…

Espera um pouco…

Um sorriso se formou no meu lábio enquanto um plano se formava. Os diários astrais servem como facilitadores na conexão e manipulação, então, se eu não tiver com o diário por perto, não haverá essa ressonância, o que significa que eu poderei treinar a vontade!

Saí do banho e, usando da energia, sequei meu corpo com o calor. Coloquei as roupas rasgadas e sujas enquanto olhava para Elizabeth.

Ela se escondeu atrás de uma árvore para me dar privacidade… um gesto amável, mas inútil quando se é um sensor.

Estava para chamá-la quando senti uma movimentação estranha próxima de onde estávamos.

Nors… e muitos deles.

Peguei-a pelo braço e, apoiando seu corpo em ambas as mãos, comecei a correr de volta para a civilização.

— Espera… o que… — Ignorei o rubor nas bochechas dela e me foquei em sentir quantos estavam aqui. Vinte, talvez mais…

— Temos companhia. — Para ilustrar o meu ponto, desviei de um soco de pedra e, seguido disso, pulei para esquivar de uma rasteira. Ela olhou para trás e senti o sangue dela gelar. — Sugiro que, se não quiser cair, segure-se firmemente.

Assim ela o fez, permitindo que usasse minha energia para aumentar minhas capacidades físicas. Sem o diário, não posso usar a capa telecinética de novo, mas ainda tenho controle o suficiente para correr.

Meus sentidos percebiam o mundo em câmera lenta, permitindo que eu desviasse de árvores, raízes, bolas de fogo, socos e pontapés. Mudei a direção, tentando despistá-los enquanto me aproximava da civilização.

Contudo, para minha infelicidade, tinham mais dez vindo para onde estávamos indo.

Fantástico.

Desviei de uma rajada de vento. Olhando para cima, vi uma enorme águia, com feições humanas e asas queimando numa chama negra. Um Roc? Estão bem longe de casa…

Senti meu sangue congelar quando percebi que um muro se formou bem na nossa frente. Permiti que Elizabeth descesse e me preparei para a luta.

Olhando para trás, vi uma mistura de toupeira e tamanduá sair do chão. Era enorme, com escamas prateadas e garras de aço. Um Calanget? Sério?

Achei que viviam mais ao sul!

Suspirei e baixei Elizabeth, colocando-me entre ela e a enorme quantidade de monstros.

— Venha conosco. A Rainha deseja vossa presença. — Era um ogro, e este era maior que o último que enfrentei, quando comecei meu treinamento, tendo 4 metros, pelo menos.

— E se eu recusar?

— Quebraremos suas pernas — respondeu, os vários monstros se reuniam ao redor, prontos para atacar. Devia haver ao menos 40 aqui. — Se bem que, vendo como estás, não precisaremos chegar a tal ponto.

Grunhi, irritado. Claro que me subestimariam. Sem o diário comigo e com todos esses ferimentos, eu não poderei fazer muito, mas… me recuso a cair sem uma luta.

Como se respondesse meus sentimentos, minha energia surgiu, pronta para me defender.

— Você quem sabe — falou, sorrindo e mostrando os dentes amarelados.

— Elizabeth… vou criar uma brecha entre eles… saia correndo.

— Não posso deixar você! — gritou, segurando minha mão, com tristeza clara. Aquilo rasgou meu coração, mas não importa. — Por favor… venha comigo…

Ignorei o que ela disse e corri em direção dos monstros.

— Peguem ele, rapazes.

Desviei de um corte, dando um gancho no primeiro, seguido por um cruzado em outro e então disparei uma bala astral nos que vinham da direita. Pulei para frente, esquivando de um mata-leão e dando três Jabs no Nor. Seguido disso, desviei de mais outros.

Não tive tempo para contra-atacar devido aos Draugen que me cercavam. Tinham muitos, e as três principais ameaças estavam satisfeitas só observando aquela situação.

Não me importei e foquei em sobreviver, desviando de golpes e contra-atacando para atordoá-los. Não posso matar… isso iria contra meu ideal. Invés disso, foquei todos meus esforços em sobreviver.

Olhei de relance para Elizabeth ao acertar um gancho. Ela estava paralisada, incapaz de se mover. Merda!

— Que demora! — Arregalei os olhos e virei para trás, bloqueando um soco do Ogro. Fui jogado uns cinco metros para trás, meus braços judiados agora ardiam, tanto em calor quanto em dor.

Tenho quase certeza que, se não estavam quebrados antes, sem dúvidas isso mudou.

O direito caiu, incapaz de se levantar. Ainda podia lutar, mas só com um braço. Que droga.

— Devo admitir sua resiliência. Mesmo com todos esses machucados, ainda consegue lutar… — O Ogro sorriu, olhando para a mulher atrás de mim. — É por causa dela? Não quer parecer fraco na frente da sua mulher?

Fiquei quieto, colocando-me entre os dois e assumindo a mesma postura de luta. Palavras não eram necessárias aqui. Eu entendia isso e o Ogro também.

Os Draugen avançaram de novo e suspirei, potencializando meu corpo mais e mais, até o limite do possível. Avancei e, em segundos, derrubei dez deles, desviando de ataques dos remanescentes e os colocando para baixo.

Soco, chute, mordida, mata-leão, soco, soco…

Era uma ordem caótica e que não me dava um segundo de descanso. Um deles arranhou meu lado, fazendo sangue cair dali. Outro mordeu meu ombro esquerdo, fazendo com que gritasse de dor e liberasse energia por aquele lugar, expulsando-o de perto.

Minhas defesas caíram em outras áreas, algo que me custou.

Uma Nor, que tinha feições femininas, escamas amareladas e com a parte inferior e a cabeça semelhantes a uma Naja, usou da cauda para me dar uma chicotada no estômago.

Uma Lâmia… de onde todas essas espécies estrangeiras vieram?

Fui enviado para longe, caindo no chão. Fiquei de joelhos, tentando me levantar, mas só consegui cuspir sangue no processo. Senti eles se aproximando… Mova-se.

Não se importe com os ferimentos… continue lutando. Mesmo que morra, continue… tem uma vida atrás de ti que jurou proteger, não é?

A memória de meu pai, da jura que me fez tomar, voltou a minha mente. Junto disso, o rosto daqueles que havia matado mais cedo.

Eu já quebrei promessas demais por hoje.

— Que belo… está tentando seu melhor, mesmo com todos esses ferimentos! Parece um dos heróis daquelas tragédias que tanto amo… — A Lâmia rastejou até mim, pegando-me pelo pescoço. — Uma pena que a rainha já te deseja… Bem, boa-noite…

— Espere, Scillia — disse o Ogro, indo até onde eu estava. — Tenho que te fazer uma pergunta, Portador. Lumis disse para tomarmos cuidado com seus socos. Disse que eles doíam bastante e que matariam Nors inferiores. Então, por que os Draugen que socou ainda estão vivos?

O silêncio, cheio de expectativa, permeou naquela área. Todos esperavam uma resposta. Acho que é normal… Afinal, que tipo de Portador deixaria um Nor viver…

— Eu… só não quis matá-los.

— Então foi por capricho?

— Não… não é isso… — A memória do Jardim me veio a mente, de Luna servindo um prato de comida para o Xamã, ambos com um sorriso no rosto. — Diga-me, acha que é possível… a paz entre humanos… e Nors?

— O que? Bem, não… Quer dizer, nós precisamos comer, e vocês humanos querem viver. Um lado não pode viver enquanto o outro existir.

— Bem, eu discordo. — Sorri, meus olhos desfocados e minha consciência falhando. — Eu vi… No jardim, eu vi uma Licantropo comer outro tipo de carne… E viver em paz com um xamã humano. Me diz então… qual a desculpa dessa vez?

Ficaram quietos, mas pude sentir a incredulidade deles. O aperto da Lâmia no meu pescoço afrouxou e pude respirar mais facilmente.

— Eu não posso lutar por paz sendo um assassino. Ódio só vai gerar mais ódio… e… sangue não pode ser lavado com sangue… ao menos é o que eu acredito… é o que eu quero… Um mundo sem guerras… onde ambos os lados se ajudam… Me responde se isso é pedir demais?

O silêncio naquela área durou por mais tempo do que imaginei ser possível. A Lâmia pôs-me de pé e se afastou. Scillia, acho que esse era o nome dela, virou-se para o grupo de Nors.

— Senhor… Ele diz a verdade… o pulso dele não se alterou uma única vez… Ele realmente acredita nisso.

— É… eu posso ver… — O Ogro parecia desconfortável, olhando para mim com culpa. — portador de Davi… é uma pena que isso tenha de acontecer contigo… Antes de te entregar para a rainha, só peço que entenda. São ordens de uma pessoa que não posso desobedecer. Contudo, eu realmente gostaria de ver esse mundo de que fala. Scillia, sabe o que fazer…

A Lâmia pareceu remoer aquilo por alguns segundos… olhando para mim, vi aqueles olhos semelhantes ao de uma cobra se tornarem humanos. Quase como os de uma mulher.

— Não — disse, pondo-se entre mim e o grupo de Nors. — Não podemos entregá-lo!

— Scillia…

— Sabe, minha mãe… ela costumava ler para eu e minhas irmãs as tragédias de um país antigo. Nelas… sempre havia um herói, alguém que lutava por um ideal e que estava disposto a se sacrificar por isso. Levá-lo para a Rainha… seria cuspir nessas memórias!

Colocou-se numa postura de luta, pronta para me defender. O Ogro pareceu ainda mais culpado, entristecido até. Suas feições voltaram a normalidade, permitindo apenas a dor no olhar.

— Matem-na.

Não… não posso deixar que façam isso… Mova-se. Anda, mova-se! O tempo desacelerou conforme os Nors avançavam, prestes a se encontrar no meio…

— Um humano e Nor trabalhando juntos? É certamente uma visão interessante, não?

O tempo parou por completo para todos, menos eu, Elizabeth e a Lamia. Engoli em seco ao reconhecer aquela voz. Só existia um bruxo que falava daquela forma…

Como um soco no estômago, senti o alívio tirar as minhas forças e, ali, cai no chão, incapaz de sequer pensar.


Certo, como sempre, peço que deem uma olhada nos links abaixo:

https://discord.gg/novelbrasil (novelbrasil, a qual devo muito)

https://discord.gg/HpBfQyFG

(Meu server pessoal, deem uma olhada nele se querem atualizações e mais conteúdo)

[email protected] (O email do meu serviço de consultoria literária!) 


Comentários