Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 4

Capítulo 45: Massacre

Olhei para Edwars com arrependimento. Não falou nada desde ontem e o silêncio já estava me deixando louco.

Bem, não é como se pudesse reclamar, não depois de invadir a privacidade dele daquela forma. Mordi o lábio, pensativo. Ele não pode reclamar tanto, não depois de invadir minha mente como fez antes.

Mesmo que Kruger tenha feito bem mais que ele, os dois estavam juntos na ocasião e não vi ele reclamando do velho.

Permiti que meus sentidos se expandissem, tentando parar de pensar nessas questões e me distrair com o que acontecia lá fora. Haviam diversas presenças próximas, todas de humanos normais.

Contudo, tinha uma pessoa em familiar que reconheci, prestes a bater na porta. Antes mesmo que ela pudesse pensar nisso, gritei que esperasse para que destrancasse a porta.

Levantei e fui até lá, passando pelo chaveiro no processo. Abri a porta e olhei para ela, meus olhos cansados se arregalaram com o quanto melhorou.

O cabelo agora estava num tom dourado, os olhos verdes exibiam vida e sua postura estava mais confiante e genuína. Não parecia fingir mais nobreza e orgulho.

Agora exibia essas características sozinha.

Minha surpresa foi tamanha que mal notei a presença de Grace, se esgueirando para dentro.

— Oi.

Fiquei quieto por alguns segundos, e só reparei o que estava fazendo quando ela pigarreou. Senti minhas bochechas queimarem e permiti que entrasse.

— Como vai? — falei, fechando a porta e tentando parecer o mais natural possível. Ela riu elegantemente e se sentou a mesa. Vendo aquilo, logo peguei um pouco do chá que fiz mais cedo e a servi.

Agradecendo, ela levou a xícara até a boca, um gesto elegante e natural, nascido de anos de prática. Desviei o olhar, notando que estava olhando de novo.

— Estranho. Não sabia que preparava um chá tão bom assim.

— Sou cheio de surpresas… ao menos é o que as más línguas falam — sorri, indo até a chaleira e começando a preparar outro. Senti o olhar curioso dela sob mim e olhei-a de relance. — Não vá expiar. Essa receita é minha.

Ela corou e voltou a tomar o chá.

— As “más línguas”… quem seriam elas?

— Mulheres, principalmente. — Dei um sorriso sugestivo e ri quando ouvi um resmungo. Parece que a princesa entendeu… — A primeira que disse isso foi Reide, ainda quando nos conhecemos pela primeira vez.

— Reide?

— Uma funcionária de Zozolum. — Uma carranca se formou no meu rosto conforme lembrava de como aquela bruxa me tratava. Ela não tinha qualquer afiliação com a Organização dos Bruxos fora fazer uns bicos aqui e ali para alguns nobres.

— Irmão, não se deve falar sobre outras mulheres quando se tem uma dama na sala de estar. Além disso, a Reide é uma mercenária. — Grace decidiu aparecer, abrindo a geladeira e suspirando. — Não abasteceu de novo? — Pegou uma garrafa de leite, abriu e fez uma cara de nojo. — De quando é esse leite?

— Primeiro, não vá abrindo a geladeira dos outros, é falta de educação. Segundo, sejamos sinceros, nove a cada dez trabalhos que aquela bruxa pega são do Zozolum.

— Caramba, nenhum pedaço de carne…

Suspirei, tentando parecer incomodado, mas o sorriso no meu rosto não me deixava mentir.

— Não vai oferecer um chá para Grace?

— Não, por favor — gritou, fechando a porta com um salto. — Já tomei minha dose semanal.

Grunhi, irritado. Claro que ela ainda está enojada com o gosto. Fiquei uns minutos quieto, deixando que conversassem enquanto preparava o chá. Foquei no quarto onde Edwars estava, cuidando para ver se ainda estava bem. Quando a chaleira começou a chiar, o Dhampir levantou.

— Que barulheira toda é essa? — disse, aparecendo pela porta, tentando se equilibrar e parecer forte. Olhou para a princesa e Grace e arqueou uma sobrancelha na minha direção. — Princesa, o que faz aqui?

— Vim conversar apenas. Na verdade, poderia perguntar o mesmo sobre você, capitão Edwars.

Ignorei o olhar inquisitivo das duas enquanto servia o chá, colocando mais uma xícara. — Isso é assunto privado — resmunguei, pegando a garrafa térmica suja e indo lavá-la. — E acho que é melhor mantermos assim.

— Assunto privado?

— Sim. — Edwars olhou para a princesa enquanto bebia do chá. — É assunto policial.

— Bem, como a futura rainha, acho que posso ajudar com isso. Quer dizer, parte do dever da realeza é manter os súditos seguros.

Senti uma mágoa na energia dela mas evitei focar naquilo. Não quero mais invadir a privacidade dos outros. Mesmo que ela não tenha defesa alguma, não é certo.

— Não nesse caso — disse, voltando para a sala de estar e me sentando ao lado de Edwars. — Pela sua segurança e pela segurança da população, só esqueça que nos viu aqui. Já nos colocou em risco o suficiente apenas aparecendo aqui.

De novo, uma mágoa profunda. Esta virou irritação, que borbulhava no seu interior. Olhando fundo nos meus olhos e mordendo o lábio, ela enfim perguntou: — Por que eu sou mulher? Ou talvez por que me vejam como criança?

— Não é isso…

— Então o que? Vamos, quero ouvir.

Olhei para o chá dela, notando como o vapor diminuía. Vai acabar esfriando… — É por que você é fraca. — Olhei incrédulo para Edwars. — Você não tem qualquer habilidade em combate. Sua condição não lhe permitiu treinar, não é? Além disso, não se parece nada com seu pai, então herdou muito mais de sua mãe. Não duraria um segundo numa luta contra Lewnard, quem dirá contra o que nós estamos enfrentando.

Com cada palavra proferida ela ficava mais e mais zangada. Olhou para mim, buscando confirmação… desviei o olhar, amaldiçoando minha fraqueza. Esse gesto provavelmente doeria mais do que qualquer corte da espada do Edwars, mas era preciso.

— Vou te acompanhar de volta para a sua casa…

— Não. Não precisa. Sou uma mulher crescida… além do mais, você tem algo mais importante para lidar, não é — gritou, levantando e saindo pela porta. Fazer aquilo me machucou mais do que podia imaginar.

Talvez seja porque sempre houveram pessoas que ditaram o que eu podia ou não podia fazer, julgando minha capacidade e rindo de mim…

Ninguém merece passar por isso.

— O que está fazendo? Vai atrás dela! — Grace chutou minha canela com mais força do que precisava, forçando-me a sair do apartamento.

Corri, procurando a energia dela. Notei que estava a pé e grunhi. Que falta de responsabilidade…

Ela corria sem rumo, indo para os distritos inferiores. Corri mais rápido enquanto amaldiçoava a minha sorte.

Se continuasse naquela direção, acabaria trombando com uma gangue perigosa da região.

Suspirei quando senti que ela parou e apressei o passo. A raiva havia passado e deu lugar a uma profunda tristeza. Quanto mais próximo estava, mais flashes do passado dela surgiam.

O peso da maldição.

A pena nos olhares dos outros.

As expectativas de cumprir um papel que nunca quis.

A raiva e inveja dos primos e tios dela, de pessoas que deviam a proteger.

Era tudo tão familiar…

Mordi fundo o lábio, parando quando ouvi o único pensamento que corria na cabeça dela.

“Achei que ele entenderia.”

Aquilo foi mais doloroso que qualquer outra coisa. Isso me forçou a ir até ela, ignorando os arredores…

— Elizabeth… eu…

— Não! Não quero saber. — Levantou-se do chão e se virou para continuar correndo. Merda, se continuasse naquela direção…

— Espera, me escuta só um pouco…

— Escutar? O que tem para escutar? — Virou-se para mim, os olhos vermelhos e inchados me forçaram a parar. — Sabe, eu achei que você entenderia. Eu vi como te tratavam na sua casa, por isso sabia que você, dentre todos os outros, saberia bem como é. E você sabe… mas é cruel demais para agir!

Não consegui responder, os flashes continuavam e eu tentei bloqueá-los, mas uma memória em particular me chamou. Era… era eu. Eu e Grace, eu coberto de ferimentos e ela cuidando de mim.

— Não acredito que eu… não, esquece. Já é tarde demais para isso.

Ela… o que ela ia falar agora… o sentimento que estava atrelado a memória dela…

Amor…

— Adeus, Lewnard.

Virou-se para trás, dando de cara com uma massa de músculos.

— O que temos aqui, uma briga de casal? — Merda… quando que ele…

Antes que pudesse agir, senti um forte impacto na nuca. Cai no chão, rolando para o lado e desviando do pé de cabra e permitindo que meus sentidos circulassem o local.

Levantei-me, com o equilíbrio alterado enquanto tentava controlar a dor. Tenho quase certeza que quebraram algo… além disso, deixei o diário lá em casa…

— Olha só, parece que o romeu aqui sabe lutar.

— Rapazes, matem ele enquanto eu pego a Julieta. — Ouvi os gritos de Elizabeth, implorando para que a deixassem ir. Aquilo me irritou… Não… não era essa a palavra.

Desviei de uma marretada, seguido e um soco enquanto tentava em vão controlar minha energia. A dor me impedia de a usar direito e, sem o diário, meu controle voltou ao nível de um iniciante.

Após desviar do pé de cabra, o pugilista me derrubou no chão com uma investida. A adrenalina começou a desaparecer conforme os gritos de Elizabeth diminuíam de volume.

Não…

Uma pancada nas costelas, a dor da marreta quebrando meu braço, um chute no rosto…

Esses animais vão me espancar até a morte?

Desesperado, tentei trazer a energia de volta, mas cada porrada quebrava minha concentração. Pior que isso era o fato de que, se relaxasse meu corpo, só doeria mais.

Após alguns minutos, os bandidos pareceram se cansar e saíram dali, me deixando para morrer. Estava no limiar da vida e da morte, a raiva daquilo tudo me fez esquecer que estava morrendo.

É por essas pessoas que eu luto? Por essas pessoas que eu vendi minha liberdade? Por essas pessoas que eu desperdicei todos aqueles anos treinando?

Relaxei meu corpo, focando tudo na minha consciência e usando telecinesia para me levantar. Sim, eu não tinha força nem para mover um dedo, mas isso não significava nada se eu controlasse meu corpo… como um titereiro faz com uma marionete.

O ar tremeu com a minha energia. Que se dane.

Dane-se as consequências.

Dane-se meus votos.

Dane-se tudo!

Meu corpo voou contra o pé de cabra, agarrando a cabeça e arrancando-a do pescoço. Seguido disso, girei o corpo e dei um chute que dividiu o torso do marreta.

Então, eu olhei para o pugilista, que tremia de medo. Levantei minha mão até ele e foquei minha telecinesia no peito dele, esmagando os pulmões lentamente, até que ele morresse pela hemorragia interna.

Meus sentidos então capitaram onde o líder deles estava e então corri até lá, usando a mesma velocidade que usei contra Lumis.

Vendo o armazém que o verme trouxe Elizabeth, mirei na parede e disparei uma Bala Astral. A força por trás da energia destruiu por completo os tijolos e a luz do sol iluminou a forma seminua dela, dando uma ideia do que ele planejava fazer.

Vendo o rosto destruído dela, senti minha raiva crescer. Caminhei num ritmo calmo até ele. O verme tentou fugir, mas não permiti. Com a minha conexão, prendi-o e virei-o de cabeça para baixo tendo certeza de ver o rosto dele.

— Sabe, um médico uma vez me disse que o que mata nunca é a queda, mas sim o choque… vamos testar isso? — Vi o medo dele e senti enjoo. Como é fraco… Não merece minha proteção. Não merece minha piedade. — Não vou te derrubar de um lugar alto… invés disso…

Com um mísero pensamento, esmaguei o osso do mindinho, indo então para o anelar, sentindo um prazer doentio conforme os gritos dele cresciam.

— Ei… Diga-me, como foi o seu dia? — Olhou-me, com dor e medo estampados e então esmaguei o pé dele. — Vamos, te fiz uma pergunta.

— Foi… foi bem!

— Ótimo… — Continuei perguntando coisas aleatórias para ele, forçando-o a ficar acordado por todo o processo de tortura. Quando enfim cheguei na última costela, parei de medir a força e, acidentalmente, esmaguei o tronco dele.

Descartei o corpo e então olhei para ela. A mulher me olhou de volta, o medo, desespero presentes no rosto me fizeram voltar ao normal.

A dor voltou com tudo, mas aceitei-a. Ela estava tremendo, não conseguia mover um músculo.

— Me desculpe — disse, sentando-me ao lado dela e notando como a tremedeira piorou. — Se eu prestasse mais atenção aos meus redores… — Suspirei quando vi como o corpo inteiro dela se tencionou. Merda, tenho que mudar de assunto ou ela vai ter um ataque de pânico. — Eu vou lhe acompanhar até a sua casa… depois, você decide o que acontece.

Segurei a mão dela, tentando a acalmar. Ela estava em choque… Pense. Pense em alguma coisa.

Se ela não melhorar, vai ter um infarto…

Levantei-me e me ajoelhei, ficando frente a frente. — Acalme-se e imagine. Está numa caverna, de frente a um lago… — Não tinha ideia do que fazer numa situação dessas, então decidi trazer a coisa que mais me acalmava quando estava sob muito estresse. — Inspire e expire. Uma gota cai no lago. Inspire, segure e agora expire. Isso…

Continuei o processo, usando da mesma imagem mental para me acalmar enquanto segurava a mão dela.

Ficamos ali por algum tempo, ambos acalmando um ao outro.

— Você é o lago… minha voz é a gota. Mais uma vez… isso…

Demorou um pouco, mas ela enfim se acalmou e me olhou, uma preocupação e culpa apareceram no rosto dela.

— Lewnard… está cheio de machucados…

Sorri… que bom… ela estava bem…

Deixei minha energia se dispersar, segurando um grito de dor. Preciso ser forte agora…

— Vamos… vou te deixar em casa.

 



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