Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 36: O Monstro de Carne

Olhei fundo nos olhos daquele velho, uma raiva crescente dentro do meu coração. Já faz muito tempo desde que alguém me tirou do sério dessa forma!

— Qual o problema, garotinha? — Kruger Hollick bebericou do chá, seu olhar nem ao menos caiu sobre mim. — Eu lhe fiz uma pergunta. Não me diga que o bruto do seu pai nem ao menos te ensinou bons modos? Bem, eu suponho que alguém da laia dele nem ao menos saiba a diferença de uma colher e um garfo.

Engoli a frustração e respirei fundo. Tentei lembrar do que papai falou, do perigo que ele representava. Sim, isso… acalme-se. Ele só quer te provocar.

— Senhor Kruger, que deselegante da sua parte… — A voz pertencia a outro homem, um que acompanhava o velho e não falou nada desde então. Era jovem, com cabelo escuro e olhos afiados. — Somos convidados aqui. Lembre-se disso.

Ele parecia estranhamente nervoso, olhava de um lado para o outro, com medo da própria sombra. Ótimo, mais um esquisito.

— Você se preocupa demais — grunhiu, olhando com desprezo para o outro. — É alguém importante e age como se tivesse medo de tudo. Cresça um pouco.

— Sim… sim senhor!

— Com licença, mas poderia dizer o que veio fazer aqui? — perguntei, tentando manter a civilidade na voz. — O senhor é um homem ocupado. Duvido que tenha vindo só para tomar chá.

— O que eu vim fazer é assunto meu.

— Como a representante do rei, eu discordo — sibilei, minha voz fria enquanto encarava o velho. — Estão no território dos Juvicent… prestar contas é o mínimo esperado de uma visita, não concorda?

Ficou quieto por uns segundos, encarava-me com seriedade enquanto alisava a barba. Antes que o clima ficasse desconfortável, ele sorriu.

— Ótimo… É bom ver que a linhagem dos Juvicent ainda produz crianças inteligentes. Diga-me, o que acha do atual Portador de Davi? E não se faça de desentendida. Ambos sabemos o quão importante ele é.

Parei e pensei por alguns segundos. O que ele quer com o Lewnard?

— Acho ele determinado — decidi ser honesta com ele. Mentir daria muito trabalho. — Tem um senso de justiça que tenta sempre manter… É alguém em que posso confiar.

— É mesmo? — A forma como ele me olhou, desapontado, me disse tudo o que eu precisava saber sobre a relação dele com Lewnard. — Bem, acho melhor não tomar mais o seu tempo… Tenho coisas a fazer também…

Com isso, os dois saíram junto aos guardas. Fiquei quieta por alguns segundos enquanto pensava no porquê dele querer vir aqui… Ele não respondeu a pergunta que eu fiz, acho que não responderia de qualquer forma.

Ele queria muito encontrar com o meu pai também. Bem, acho que já tenho um tópico para a janta.

 

Ninguém no esquadrão parecia incomodado com os eventos recentes. A maioria não conhecia Miia o suficiente para sentir alguma coisa pela morte dela. Além disso, muitos aqui são loucos.

Precisa ter um parafuso a menos para concordar em trabalhar com um bando de mestiços por um salário baixo e um risco absurdo.

Olhei para o pequeno grupo que se voluntariou para outra missão suicida. Aos olhos da lei, nenhum deles existia mais. Esse era um requisito para virar um oficial na polícia secreta.

Recrutas tinham a liberdade de falar com quem quisessem, desde que não tocassem em nenhum assunto do esquadrão, porém, quando se graduavam, um obituário era registrado e eles desapareciam.

— Então, qual é a missão, chefia? O que os superiores querem de nós?

Aquele que falou era um homem de pele morena, com cabelo raspado e um cavanhaque. Outro mestiço riu enquanto sussurrava o que faria com o cadáver dos criminosos que caçaríamos num canto, sua aparência era de alguém que acabara de sair de um manicômio, com cabelos oleosos e um sorriso enorme.

Eram Jeremiah e Guldr, dois novatos.

— Deixe ele terminar! O capitão já vai nos dizer os detalhes.

Enquanto eu aprecio o… respeito que Dryas tem por mim, é desnecessário. Se ele se dedicasse tanto no trabalho quanto se dedica para puxar o saco dos superiores, sem dúvidas já teria se tornado um tenente.

A falta de eficiência de alguns membros é algo que a maioria dos superiores reclama. Enquanto eu concordo com eles, não concordo com a importância que alguns dão àquele cara.

— Fala logo a missão, Edwars! Ou vai continuar desperdiçando o meu tempo?

Jim Razer, o segundo oficial com a maior patente do esquadrão. Ele vem sendo uma fonte de irritação constante, tentando roubar meu cargo e me sabotar a cada cinco minutos.

Contudo, não posso negar o quão forte ele é. Um dos poucos aqui que me faria suar.

— Como devem saber, perdemos uma oficial recentemente — falei, ignorando a tensão imediata que penetrou a sala. Ninguém se importava com a morte de Miia, mas todos se importavam com o que aquilo significava.

O esquadrão da meia-noite está cheio de pessoas fortes, e Miia, por mais preguiçosa que fosse, não era fraca. O fato que uma oficial que ascendeu rápido aqui foi morta mostrava que estávamos contra um inimigo poderoso e que sabia da existência do esquadrão.

— Eu achei, recentemente, uma pista de onde o Moedor pode estar. Vamos entrar lá e matá-lo. Vamos prender cada criminoso que esteja com ele e teremos certeza de acabar de uma vez com o reinado de terror dele. Aprontem-se.

Ouvi com cuidado cada reação que tiveram e guardei-as na memória. Enquanto essa operação aconteceria, era mais uma isca que plantei nos principais suspeitos que tinha.

Nenhum humano é capaz de mentir para mim. Mestiços são um pouco mais difíceis de ler, mas não é impossível.

Os membros saíram, nenhum apresentava alteração no batimento, mas houve algo que me chamou a atenção. Uma contração muscular que confirmava que o espião estava entre aqueles soldados.

Agora, quem é você?

 

Apesar do traidor, nos movíamos como unidade. Assim era o esquadrão da Meia-noite. Devido a alta taxa de letalidade, a regra era simples: No campo, sentimentos não importam. Apenas a missão importa.

Assim vivemos e é assim que morreremos.

O cenário era uma mata, a noite permitia que meu grupo entrasse na forma verdadeira. Como os Nors, nós usamos uma pele humana para nos proteger da luz, para que possamos caminhar livremente.

Essa pele nos deixa mais fracos, vulneráveis. Só eu e o desgraçado estávamos “humanos”. Recuso-me a depender dessa força. Na esquerda, uma mistura de homem com árvore tentava me agradar. Atrás, um zumbi olhava entendiado para o céu.

À frente, uma gárgula afiava as garras e, à direita, Jim Razer me ignorava.

— Certo, chefia… Quanto tempo ainda falta? Se continuarmos demorando, o Guldr vai acabar matando alguém.

— Sim… eu quero matar logo! Cadê eles!

— Calem a boca, os dois — disse enquanto parava. Pus a mão na minha espada enquanto esperava alguém fazer um movimento. Jim também percebeu e tirou duas adagas do cinto policial. — Já era hora de aparecer! Está nos observando já tem tempo.

— Olha só… um grupo de ovelhas perdidas vem a minha igreja. Que ocasião! — O homem que falou isso era o mesmo que apresentou o Moedor para aquelas pessoas, um padre baixinho e careca, com um sorriso amigável no rosto. — Não creio que vieram confessar vossos pecados, certo?

— Que isso… um padre? Sério? Viemos aqui pra isso? — Afiou as garras enquanto mantinha o sorriso psicótico no rosto. Num instante, correu em direção ao velho, asas impulsionaram-no. Estava para impedir, mas o golpe foi rápido demais.

Um enorme tentáculo perfurou o estômago de Guldr, jogando-o para longe. O rubro jorrou, criando a ilusão de uma chuva de sangue. Em um momento, assumi uma postura defensiva enquanto olhava a figura a minha frente.

Não era um padre… nem humano aquilo era…

— Ora… que falta de educação. É costume dos humanos que as visitas tragam comida para o jantar, não? — Os olhos abriram, revelando um amarelo opaco com pupilas vermelhas. O enorme tentáculo retornou para próximo do velho, recolhido para debaixo do manto dele.

— Desgraçado! — Jeremiah pulou e tentou um soco, interceptado por uma massa de carne. Em um instante, reapareci na frente do zumbi e cortei os vários tentáculos que o cercavam. Peguei o zumbi pela camisa e me afastei.

— Não perca a calma! — Jim começou a circular o velho, buscando uma abertura. — Foco! Se não, não completaremos a missão…

Cortei mais alguns tentáculos enquanto tentava me aproximar do velho. A postura do Battoujutsu foi substituída pelo Iaijutsu, cortando o que havia na minha frente.

Não conseguia uma abertura para o atacar diretamente e cada golpe de minha lâmina era detido por uma massa de ossos. Também estava me cercando, tentando prender-me.

Estreitei os olhos em irritação.

Ele sabe da minha técnica. Por isso não está me dando abertura. Defleti mais tentáculos, a armadura de ossos me empurrou de volta para o chão e fui forçado a pular alguns metros para trás.

Olhei na direção dos outros dois enquanto desviava de mais golpes. Jim parecia estar enfrentando o mesmo problema, porém a carne parecia uma esponja. Já Jeremiah tinha dificuldades em se manter vivo. O inimigo estava brincando com ele.

Bloqueei mais um golpe vindo do lado direito e então de cima. Ele está concentrando toda a ofensiva em mim, logo, não vê os outros dois como ameaça, ainda que estejam ambos totalmente transformados.

— Incrível… Você é realmente forte, ceifeiro — falou, retraindo os tentáculos. Estava preparando algo. — Saiba que apenas um homem sobreviveu a este golpe.

Foi tudo tão rápido. Num instante, os tentáculos estavam junto dele, no outro, fui atacado de todos os lados por uma muralha de ossos e carne.

Meus músculos gritavam sempre que bloqueava um golpe. Não só isso, mas vários ataques mudaram a trajetória original, vários me acertando.

Contudo, continuei defendendo da melhor forma que podia. Não tinha espaço para teleportar. Não tinha tempo de formular uma estratégia. Não consegui fazer nada se não aguentar a tempestade de golpes.

Um segundo se passou, e então dois. Até que se tornaram dez. No décimo primeiro, os golpes diminuíram, no décimo terceiro, eram só socos leves, parando por completo no décimo quinto.

Senti minhas pernas fraquejarem. Droga… não caia. Não caia!

— Inacreditável… Sobreviveu sem entrar na sua verdadeira forma. Edwars, o ceifeiro, tua força é comparável a de meu mestre. — Bufei cansado enquanto segurava uma área do meu peito. O ataque quebrou umas costelas, sem dúvidas.

— Olhe pra mim! — Razer pulou, tentando atacar o velho, mas a carne esponjosa interceptou o golpe. Teve de pular para longe enquanto praguejava. — Não me subestime!

O zumbi então disparou vários tiros enquanto o homem lagarto o circulava, mas aquele homem só tinha olhos para mim, algo que deixava o desgraçado mais e mais irritado.

Certo, não pode ser Razer. Ele está realmente tentando matar o inimigo, mas então quem? Jeremiah é muito preguiçoso, mas sua fisionomia o permitiria mentir até mesmo para mim.

Quem é o espião…

Olhei para trás de relance, Guldr ainda estava engasgando no próprio sangue. Curioso… os batimentos dele demonstram raiva e ódio, mas não há frustração…

Achei você.

Os tentáculos foram contra mim de novo, mas estava pronto. Desapareci da vista do padre, dando três “saltos” para o despistar. Antes de que pudesse montar uma defesa, reapareci do lado esquerdo e, com um giro rápido, cortei-o no meio.

O corpo parou de se mexer depois de uns segundos, mas não relaxei os músculos. Invés disso, caminhei até Guldr. Os dois membros sobreviventes me olharam com curiosidade.

— Levanta — disse, contendo minha raiva da melhor forma que podia. — Guldr, está preso sob suspeita de traição, tanto para a coroa quanto para a polícia secreta.

— O que quer dizer? Edwars? — Jeremiah se aproximou enquanto eu encarava o corpo ensanguentado do espião.

— Seu maldito! Não vai me dizer que… — Jim enfim entendeu, sua postura agressiva voltou momentaneamente. — Toda essa operação… tudo foi para descobrir um espião? Nós quase morremos aqui!

— E eu os mataria sem hesitação se traíssem o esquadrão — respondi, calmo, enquanto olhava para o rosto incrédulo de Guldr. Havia muita raiva e tentou dizer algo, mas só conseguiu gritar.

É esperado, considerando o pisão que dei no ferimento dele.

— Não quero desculpas. Anda logo. Está desperdiçando meu tempo.

— Edwars… seu porra… — Começou como uma risadinha e então uma gargalhada. — Me diz, quando começou a suspeitar de mim?

— Nunca tive uma suspeita. Eu falei com vários outros grupos do esquadrão, analisando cada resposta deles. Quando cheguei no de vocês, percebi uma contração muscular sútil… foi ali que soube que era um de vocês.

— E? O seu puxa-saco favorito não está aqui… Como sabe que não foi ele?

— Há várias juras e promessas que impedem Dryas de mentir, trair ou atacar nosso grupo. Só precisa saber que, em questão de poder bruto, o meu “puxa-saco favorito” está um pouco acima de mim. Eu o chamei para cada reunião que participei nessa semana.

— Entendi… sério… o Moedor tinha razão… você é perigoso. Perigoso demais para manter vivo — disse, tossindo mais um pouco de sangue. Estreitei os olhos. — Sabe o que mais ele tinha razão? O quão arrogante você é…

Arregalei os olhos com o som de ar sendo cortado e, no instante seguinte, bloqueei um chicote de ossos. A defesa foi facilmente quebrada e meu peito foi cortado, jorrando sangue livremente.

Incrédulo, olhei para o padre enquanto tentava manter a consciência. O corpo ainda estava separado em dois, mas era nítido que ainda vivia. Fui atacado pela coluna vertebral dele, que voltou para junto da parte superior.

— Que pena — falou enquanto tentáculos juntavam os dois lados do corpo. — Se tivesse prestado mais atenção, poderia evitar isso… Realmente, eu me enganei sobre você… É verdade que é forte mas ainda é um tolo.

Cuspi mais sangue, a visão do inferno daquele monstro se aproximava.

Ótimo… por que as coisas nunca vão como o planejado?


Oi. Como deu pra ver, tentei fazer um capítulo mais longo para compensar o da última semana.

Bem, dito isso, peço que deem uma olhada no meu discord e no da Novel Brasil:

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Com isso dito, até um próximo dia.



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