Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 34: Como preparar um bom chá, parte 1

Grunhi irritado enquanto o Xamã falava dos diferentes tipos de planta da região e qual delas eram as que usava com mais frequência.

— Olha, não tem como ir direto ao ponto?

— Não. Todo detalhe é importante na hora de fazer um chá. — Parou e olhou fundo nos meus olhos, sério. Esperei, com os nervos a flor da pele, o que ele falaria. Será que finalmente ia ser algo que prestasse? — Como eu estava dizendo, a “Erva de Rulphs”…

Soltei um grito de frustração enquanto tentava manter a calma.

— Ei, o almoço tá pronto! Não vão se matar aí, viu? — chamou Luna, servindo o ensopado de coelho. Claro. É claro que a Lycantropo ia comer ensopado de coelho invés de carne humana!

É uma merda atrás da outra.

— Você parece nervoso. Quer chá? Vamos, experimente. Esse aqui foi feito com algumas “Orquídeas de Salomão”…

— Não, eu não quero chá. Eu nem deveria estar aqui! Era para ser algo simples. Achar o Xamã e salvar minha irmã. Era pra eu fazer isso em, no máximo, cinco dias. Invés disso, estou perdendo meu tempo!

Um silêncio desconfortável caiu sobre nós. A Licantropo parecia dividida entre me atacar ou só sentir pena de mim e o velho pareceu pensativo.

— Perda de tempo, é? — Com um suspiro, o xamã se levantou e foi até sua porção de ensopado. — O seu “Espirito Guardião” lhe ensinou muito rápido. Não existe “tempo perdido”, só tempo mal investido.

— O que quer dizer?

— Olhe para o jardim ao seu redor, Lewnard. Diga-me, acha que cada árvore aqui, cada flor, cresceu num único dia? Acha que é possível forçar a natureza a lhe obedecer?

— O que a natureza tem haver com isso?

— Tudo. Você aprendeu a deixar de lado as dúvidas e mergulhar de cabeça em situações que não conseguiria sair vivo. Agora, é hora de aprender a viver a vida, uma lição que já devia ter aprendido a tempos.

— “Viver a vida”? Minha irmã está para ser executada. Não tenho tempo para “viver a vida”.

— É precisamente por esse tipo de pensamento que ela está nessa situação — retrucou, provando o ensopado e sorrindo. — Além do mais, seja honesto consigo mesmo. Diz se importar com sua irmã, mas carrega um presente daquele que colocou ela nessa situação. Ou esqueceu do Aslaru que está no seu bolso?

Senti um choque percorrer meu corpo. Ele sabia disso? Não, isso não importa. O que importa é que ele está certo…

Peguei a moeda do bolso e comecei a estudar cada detalhe dela. Desde as duas espadas esculpidas até a cor negra.

Por que eu ainda mantenho você comigo?

— Aí está. — A voz triunfante me trouxe de volta. — Este é o motivo de precisar aprender a viver. Se não consegue fazer isso, só terá infelicidades e derrotas na vida. Agora, sente-se e coma. Seu ensopado vai esfriar.

Pensativo, fiz como pediu, levando a colher até a boca. Não me surpreenderia se a carne estivesse crua. Afinal, não acho que uma Licantropo deva saber cozinhar…

— Que delícia! — O coelho estava macio o suficiente, os temperos criavam um gosto agridoce e a água estava na temperatura certa.

— Fico feliz que gostou — disse enquanto tirava um segundo coelho, cru, e se servia da perna…

— Ela é ótima na cozinha, não acha? — O xamã puxou assunto, mas demorou alguns segundos até que conseguisse concordar. — Ela sempre quis ser uma cozinheira profissional. Tinha que ver quando ela começou.

— Pai! — gritou, corada. Olhando para ela, pude ver as feições de uma Kairiana… não, a pele era mais escura e os olhos mais puxados. Era de Ohlak?

O xamã e a Lycantropo voltaram a discutir enquanto eu apreciava a comida. Por um momento, fiquei perdido quando percebi que esse está sendo um dos jantares mais… normais que eu tive desde… desde sempre.

Olhei para os dois novamente enquanto ficava mais confortável ali. Pareciam muito paí e filha, mas a energia do Xamã era muito humana e a de Luna era totalmente diferente da dele.

Encarei-a por alguns segundos. Estranho… ela é tão… humana. Mais humana do que muitos que eu conheci. Era expressiva e parecia realmente feliz ali.

— Com licença — disse, levantando-me.

— Não vai terminar o ensopado?

— Não… — Essa reunião me deu muito o que pensar. A maioria coisas que complicavam e muito meu emocional. Coisas que eram desnecessárias.

Desnecessárias… sério? Não esperava que começasse a pensar assim em tão pouco tempo. Dois meses atrás, antes do treino com Zozolum, eu ainda me recusava a aceitar o destino que me fora colocado…

Caminhei mais e mais, até chegar na minha caverna. Peguei mais das folhas que separei e voltei a trabalhar no chá. Não posso fazer nada além disso, então devo focar todos meus esforços no que consigo fazer.

Coloquei a água para ferver e esmaguei mais algumas ervas na cumbuca enquanto pensava nos últimos dias. Não consegui treinar nada... Minha mão foi até o peito. Havia uma cicatriz ali, feita pelo corte de energia. Não consegui curar aquilo totalmente e, vez ou outra, sentia uma coceira na região.

Era como se ele estivesse rindo de mim... da minha fraqueza. Minha energia respondeu a minha raiva. Quanto mais pensava na luta, mais irritado ficava, e maior era a dor na cicatriz.

Eu não devia estar aqui... Não devia estar aqui...

— Merda! — gritei, chutando a chaleira e atirando a cumbuca para longe. Meus punhos cerrados se chocaram com a parede de pedra. Não parei mesmo com a dor.

Estava acostumado com esse treino... Não, isso mal pode ser chamado de "treino". É apenas um idiota descontando as frustrações numa parede.

Meus braços perderam a força. Seguido disso, minhas pernas. Cai ajoelhando, minha testa tocando a mancha de sangue.

Ali, caí na inconsciência.

 

Esse é o mesmo sonho de sempre. O mesmo que não consigo lembrar quando acordo, seja pela sensação de pavor, seja por algum outro motivo.

Vi crianças correndo umas das outras, num jogo que nunca joguei, ou que talvez tenha jogado num futuro distante…

— Por que não posso brincar com eles, Gusto?

Minha voz era diferente, mais jovem e melancólica. Aquela solidão que sentia me consumir era algo enlouquecedor…

— Você é especial, jovem mestre — respondeu, olhando para as crianças como se fossem meros insetos. — Dentro de suas veias corre o sangue de Deus. Está destinado a grandes coisas… não deve ficar perdendo tempo com a ralé…

 

Quando acordei, jurei ter esquecido de algo importante. Algo que estava na ponta da língua. Senti uma ardência nos punhos e apliquei a Energia neles.

Olhando para o estrago, notei que devia ter, em algum momento, quebrado alguns ossos. Bem, isso vai ser uma incomodação se não curar… Olhando para trás, notei a bagunça que fiz e suspirei.

Claro que as folhas que colhi acabariam queimadas. Deve ter sido a brasa que espalhei… Peguei um punhado delas enquanto identificava o cheiro… Pelo menos eram “lírios da gula” que queimaram…

Espera… Esse cheiro… É diferente de um “lírio da gula” normal… É mais fraco, menos doce? Quase como se…

Peguei o punhado de cinzas que tinha ali e procurei pela cumbuca. Quando enfim a achei, comecei a esmagar o pouco que ainda tinha e extrair o suco. Em seguida, pus o mesmo para esquentar na chaleira e, quando enfim estava pronto, coloquei o resultado na garrafa térmica.

Corri o mais rápido possível para chegar onde a energia do Xamã se encontrava. Notei que já estava quase amanhecendo e apressei o passo.

— Lewnard? O que você…

— Agora não, Luna.

Passei reto pela Licantropo e, quando enfim achei o velho xamã, pus a garrafa térmica na frente dele.

— Aqui está o seu chá — disse, servindo-o e olhando para ele, esperando que provasse.

— O cheiro está bom… Bem, vamos ver… — Provou do liquido até esvaziar a xícara. Quando enfim o fez, olhou para mim com um sorriso. — Está melhor… Ainda não está perfeito, mas não está ruim. Longe disso.

Senti uma alegria irracional quando ouvi aquelas palavras. Eu sabia que não era o suficiente para ajudar Grace, e, mesmo sendo idiota, senti que havia ultrapassado um enorme obstáculo.

Sorri como um tolo enquanto pegava a garrafa e me servia. Beberiquei e apenas apreciei o momento enquanto esquecia do resto. Sim, não chega nem aos pés do chá desse velho, mas já está melhor.

— Lewnard… sabe por que estou te pedindo para fazer o chá? — Olhei para ele, curioso. Tinha uma resposta, mas provavelmente não era porque ele queria me forçar a trabalhar de graça. — Bem, vamos mudar a pergunta. Diga-me, qual o tipo de legado vai deixar para esse mundo? Continue a aprender a viver e poderá me responder.

— Por que isso é importante?

— Bem, quem sabe? Acho que é algo que deve descobrir por conta própria, não concorda?

Senti uma pontada de irritação mas não deixei isso abalar meu bom humor. Foi por puro acidente que eu descobri esse ingrediente… agora, preciso ver qual a melhor forma de preparar o chá.

Espere só um pouco mais, Grace. Só mais um pouco e estarei de volta com a cura.

Foi o que eu prometi, não é?


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