Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 31: Dentro do Jardim

A luz ametista deixou minha mão enquanto eu terminei de curar mais um soldado. Olhando para as várias covas cavadas, suspirei enquanto ia para o próximo. Havia muitos que não pude salvar, pessoas que perderam a vida pela minha incompetência…

Os ferimentos desse eram severos. Tinha perdido um braço e parte de uma perna, consegui o estabilizar por muito pouco, mas ainda sentia dor.

— Por favor… eu não quero morrer! — gemeu, olhando para mim com claro desespero.

Usando do diário, aliviei a dor enquanto tentava, ao menos, deixar o que sobrou dele funcionando. Após alguns minutos, parti para o próximo, um que não consegui salvar. Pegando-o nos meus braços, levei ele até uma das covas e o coloquei no buraco.

Um minuto de silêncio depois, voltei para ajudar o próximo.

Conforme o tempo passava, mais a pilha de mortos aumentava e, quando enfim terminei, dei atenção a presença familiar que senti antes.

— Agradeço por ter vindo me salvar, Shiki.

— Há quanto tempo sabia que estava aqui?

— Desde que chegou. Olha, agradeço por vir, de verdade, mas tenho que ir — disse, minhas mãos cobertas de sangue coçavam e pediam para serem limpas. — Estou próximo de achar o Xamã e preciso concluir essa busca sozinho.

Shiki pareceu incomodado, mas não era pelo que pedi. Havia algo mais ali. Olhava-me como se eu fosse morrer a qualquer momento… Bem, considerando o que acabou de acontecer, não tiro a razão dele.

Dei as costas e segui para o topo da montanha, perdido em pensamentos.

Eu fiz o que pude. Pela primeira vez, salvei uma vida, várias até. Cumpri com o meu dever como Portador, era algo a se celebrar…

Então por que eu me sentia tão vazio?

Os olhos daqueles que falhei em proteger vieram a tona. Sem luz, sem vida, apenas morte… Cambaleei enquanto tentava controlar o enjoo. Merda… Merda!

Se eu fosse mais forte…

Segurando-me num pinheiro, continuei a ir para o topo. Quanto mais cedo eu chegasse lá, melhor… O ar se tornava mais rarefeito e ouvi um uivo ao vento.

Senti um frio no estômago e expandi meus sentidos enquanto apertava o passo.

Não, ele não poderia estar atrás de mim… Ele foi embora, não é? Antes que percebesse, estava correndo para longe até que tropecei numa raiz. Dando de cara com a neve branca, tentei me levantar e continuar a fugir, mas estava fraco demais.

Passos foram ouvidos, uma presença estranha, mas familiar entrou na minha área.

— Pelos deuses… — A última coisa que vi foi o rosto preocupado de uma garota.

 

— É ele, não é?

— Sim. Ele é filho daquele monstro…

— Vamos sair daqui!

Ouvi vozes que não conhecia, mas que traziam um pouco de nostalgia. Olhando para a direção delas, vi aqueles que meu pai reinava sobre.

Reinava? É… é mesmo, meu pai era um duque importante no reino de Leitzac… Só que… eu só não conseguia lembrar do nome dele…

Que estranho… eu tenho uma vaga ideia de qual era o meu nome, mas não consigo lembrar.

Qual era mesmo…

Sigmund…

 

Acordei com um grito, empapado de suor.

Olhando para o teto, vi que estava numa caverna, iluminada com alguns lampiões, que brilhavam em verde. Tentei me reorientar, mas a sensação de medo e perda não me deixavam.

Eu não tenho medo do presente… nem sinto remorso de ter perdido aquele confronto, mas… por alguma razão, esses sentimentos me arrastavam para baixo.

— Merda… — sussurrei, deitando-me e olhando para o teto. — Eu devo estar ficando maluco…

Esperei algum comentário sarcástico e me assustei com o silêncio do Espectro. Tentei sentir o Diário de Davi e fiquei aliviado quando percebi que ele estava em minhas mãos.

Que estranho… normalmente, ele usaria dessa oportunidade para fazer um comentário besta. Bem, não adianta ficar pensando muito. Eu não me surpreenderia se estivesse numa prisão, mas consegui escapar da última. Além disso, não haviam amarras para me prender… posso sair daqui quando bem entender…

Olhei ao redor uma vez mais. Estava só. Decidido, tentei me levantar e ir em busca de respostas, mas minhas pernas mais pareciam geleia e logo caí de cara no chão.

Droga… Talvez esse sonho tenha mexido mais comigo do que eu pensei…

Demorou um pouco, uma hora ou duas até que eu me sentisse confortável o suficiente para ficar de pé e dar alguns passos, ainda fracos, para frente. Conforme voltava a ter controle do meu corpo, notei que o lugar em que eu estava não era bem uma prisão.

Claro, a decoração era uma droga, mas parecia mais um quarto de hóspedes.

— O mestre deseja falar contigo. — A voz veio direto da escuridão. Engoli em seco e tentei sentir a presença daquele que falava. — Não faça o mestre esperar.

— Espera! — Sem respostas e com mais dúvidas ainda, caminhei para frente, procurando a saída daquele cômodo enquanto pensava no suposto “mestre”.

Acho que ele é a minha melhor chance de saber o que tá acontecendo.

Quanto mais avançava, mais claras ficavam as paredes, como se um feitiço começasse a perder força e o véu fosse desfeito. Cada passo trazia mais luz, até que enfim saí da caverna em que estava preso.

A visão que me aguardava era algo que não esperava ver. Tratava-se de um jardim, com as mais belas flores. Haviam animais ali, exóticos, todos novos para mim. Conforme dava mais e mais passos, mais maravilhado ficava com aquele lugar.

— É por aqui… — A mesma voz incorpórea de antes me chamou a atenção. — Venha. É feio deixar o mestre esperando…

Uma corrente de vento iluminou o caminho. Seguindo-a, andei até chegar numa margem de um riacho. Ali, havia um homem. Não… acho que esse não era um termo digno dele.

A energia que passava era humana, mas também tão pura e tranquila que mal consegui distinguir da força natural a minha volta. Além disso, sua pele era escura, quase como um carvalho, e enrugada. Não havia um fio de cabelo na cabeça e ele vestia roupas de monges Kairianos.

— Soube que estava me procurando, Portador de Davi — falou, abrindo um de seus olhos e me encarando profundamente. Estava sentado de pernas cruzadas enquanto preparava um chá. Uma mistura bem agradável.

— É o xamã que Kruger falou?

— Apesar de eu ser um xamã, não sei o que um “Kruger” é… — Riu, com grande tranquilidade. Acho que minha expressão devia deixar óbvio o que eu sentia com aquela risada, visto que ele logo continuou: — Qual o problema? Pra que essa cara azeda?

— Desculpe, mas só não gosto disso. Pelo que vejo, você é forte… Forte o suficiente para fazer a diferença… Só não acho justo que fique aqui, rindo despreocupado, enquanto pessoas boas morrem.

O Xamã ficou quieto, estudando-me com aqueles olhos tão calmos por alguns segundos, até que fez um breve gesto. Da terra, surgiram dois copos, feitos do que eu supus ser a raiz daquelas árvores. Pegando um pouco do balde de chá, serviu-se e bebericou.

Quando terminou de molhar a garganta, olhou mais uma vez para mim e então serviu a outra xícara.

— Quer chá?

— O que? Não! Não dá pra responder?

— E o que eu deveria responder? Fez uma afirmação, não uma pergunta — comentou enquanto bebia mais do chá. — Sente-se, beba um pouco. Está muito bom, sabe?

Fiquei parado e então suspirei, tentando acalmar meus nervos. Eu vim aqui com um objetivo… não posso me permitir perder a paciência.

— Preciso de um favor…

— Eu curo sua irmã, mas com uma condição. — Antes mesmo que pudesse começar o meu pedido, o Xamã olhou mais uma vez para mim enquanto bebia do chá. Esperei que ele terminasse a frase, incomodado com a forma que ele se divertia. — Quero que faça um chá tão bom quanto o meu.

Senti meu rosto ficar vermelho e me segurei muito para não atacar esse velho maldito.

— Com todo o respeito… mas eu não tenho tempo pra ficar fazendo chá…

— Bem, primeiro vai aprender a fazer o chá. Não se pode esperar que alguém nasça sabendo de tudo, não é?

— Também não tenho tempo pra isso…

— Então não vai fazer o chá?

— Não!

— Bem, então não vou ajudar sua irmã.

Velho idiota! Sem olhar para trás, corri e tentei achar uma forma de sair daquele lugar. Enquanto procurava, senti minha raiva crescer. Que merda… Por que o Xamã tinha que ser um idoso senil?

Quanto mais procurava por uma saída, mais perdido ficava. Além disso, uma neblina começou a se formar, densa o suficiente para eu não conseguir ver um palmo a minha frente.

Desse jeito, Grace vai ser morta… preciso fazer algo, e tem que ser rápido.

Pensa. Como posso convencer o velho… Antes que eu pudesse contemplar outras opções, tropecei numa raiz e quase dei de cara no chão. Só não me machuquei porque alguém me segurou. Mãos macias e gentis, mas firmes e que conheciam o campo de batalha…

Olhando para cima, encarei os olhos amarelos, uma cor tão parecida com os de Lumis que me afastei com um pulo, entrando numa postura de luta da forma mais natural possível.

— Que mal-educado. É assim que a casa Hollick agradece alguém que salvou a sua vida? — A voz pertencia a uma mulher, cuja presença me era familiar, mas não conseguia lembrar de onde ela veio. — Vejo que, pela carranca, encontrou meu pai.

— Quem é você?

— Luna, uma Licantropo.

 



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