Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 23: Onde eles habitam, parte 1

O cheiro desagradável daquela prisão já estava me dando nos nervos. Olhei para os meus arredores enquanto observava os rostos novos entrarem em negação.

Já faz algumas horas que Lumis apareceu e não foi me dito nada desde então. Olhei para fora da cela enquanto contava a quanto tempo aquele guarda foi posto ali.

Os Nors dessa colmeia tinham uma estrutura de horário fixa. De tempos em tempos, acho que de quatro em quatro horas, trocavam os guardas que nos vigiavam. São como formigas, acho.

Um dos Nors cochichou algo no ouvido de outro e a cela foi aberta. O que será que ele vai fazer?

O monstro, pelo cheiro e aparência morta era um Draugr, se aproximou de um grupo, uma família de três. A mãe ficou horrorizada e começou a chorar.

— Vocês já me tiraram o filho, ela não! Por favor!

A mulher foi empurrada para longe e bateu de cabeça no chão, ficando imóvel. Em seguida, com o choro de uma criança, o monstro pegou uma garotinha pela cabeça. Ela não devia ter mais do que sete anos…

— Fica quieta… eu odeio meu jantar quando está duro — rosnou enquanto a garotinha continuava a se debater.

Tentei me soltar, mas as amarras ficaram mais quentes conforme usava a Energia Astral. A dor era suprimida pela raiva e eu estava quase tendo algum progresso.

Os olhos do segundo guarda foram até mim. Começou a caminhar e entrou na sala. Mova-se. Mova-se!

Com brutalidade condizente ao corpo, senti o chute do carniceiro me enviar para longe.

— Não se mova, pirralho.

Droga… até quando… isso vai continuar…

Os gritos da garotinha foram a ultima coisa que ouvi antes de cair na inconsciência.

 

Quando acordei, notei a mudança das pessoas dentro da cela. Tinha muita gente do norte de Anjus antes, mas agora tinha pouco mais de cinco loiros. O resto eram pessoas de outros países, em sua maioria, Vislianos.

Enquanto os Angilanos tinham pele clara e cabelo loiro, os Vislianos eram tinham pele escura e cabelo ruivo. Além disso, notava-se o alto condicionamento físico que eles ganharam por viver numa zona de conflito constante.

Vislo era um país onde apenas os fortes sobrevivem. Assolado por uma guerra civil e constantemente saqueado por outros países menores. Essa era também o país de onde Reide, uma das pessoas que cuidou de mim na infância, vinha.

O mais triste disso tudo, ao meu ver, é que não há influência dos países grandes nesses conflitos. É meramente a ganância humana em sua forma mais pura.

Voltei minha atenção para a cela. Um jovem Visliano que estava tendo um ataque de tosse. Não sei se era saúde ou pânico, mas aposto no segundo. Muitos aqui não aceitavam esse destino cruel, e como poderiam?

Suspirei quando vi outro guarda abrir a porta. Ele foi até um dos Vislianos, uma senhora gordinha, e a puxou pelo crânio. A raiva ainda queima, ainda quero fazer algo mas sei que, do jeito em que estou, sou um completo inútil.

Suspirei. Tenho que pensar numa forma de sair daqui e rápido. Contudo, algo me impedia de planejar.

Por que eles ainda não me mataram?

Quer dizer, eu sou um inimigo e eles já pegaram meu diário. Não há motivos para me manter vivo, não é?

Passei algum tempo tentando achar alguma coisa que pudesse me apontar o motivo, mas não consegui chegar numa conclusão.

— Quanto tempo você acha que vamos durar aqui? — Ouvi um Visliano ao meu lado. Fiquei quieto por uns segundos até perceber que era comigo que falava.

— Quem sabe… — respondi enquanto tentava entender o porquê deles deixarem alguns Angilianos vivos. Era claro que isso aqui era um matadouro, logo faz mais sentido eles matarem quem chegou primeiro, não é? — Vocês são o segundo grupo que aparece aqui. O próximo pode ser tanto eu quanto você.

— Que coisa… pensar que eu vou morrer aqui, e virgem ainda por cima…

Quê? Pera, estamos numa situação dessas e é isso que te incomoda? Senti uma pitada de raiva com a forma despreocupada com que ele lidava com isso.

— E você? Já fez?

— Por que está me perguntando isso?

— Bem, vamos morrer mesmo. Melhor aproveitar e ter uma ultima conversa que preste.

Fiquei quieto por um tempo enquanto pensava em como responder. Como eu tive um passado conturbado, pode-se dizer que eu tinha alguma experiência, mas não falaria isso com um estranho. Decidi que era melhor só ficar quieto.

— Ei, Zesh! Não incomode os outros.

Um homem mais velho — o pai dele, eu presumi — parecia incomodado com o comportamento dele.

— Quem se importa… — disse outro Visliano, esse parecia estar prestes a ter um ataque de pânico. — Vamos todos morrer mesmo. Não percebem! Vamos todos ser comidos!

E ele começou a rir feito um maluco. Ótimo, tudo o que eu mais precisava nessa merda.

Bem, ainda não me mataram, então deve haver um motivo para tal. Espera… Lumis falou algo sobre isso, não foi? Algo sobre não me matar ainda…

Ele citou uma rainha. Disse que ela tinha interesse em mim…

Lembrei das lições de história de Zozolum. A rainha era a figura mais importante dentro de uma colmeia. Eram elas que criavam a próxima geração de Nors puros.

Bem, por que ela queria me conhecer? Eu sou um Portador, uma pessoa que deveria ser a principal preocupação dela. Quando a rainha morre, a colmeia vai junto, e, como Nors seguiam apenas o instinto, era para ela me matar na primeira oportunidade que tivesse…

Minha mente voltou para as memórias de Lumis. Ainda que ele fosse um mestiço, aquelas memórias eram humanas demais. Além disso, também tem o Edwars. A Energia ao redor dele transitava entre os dois mundos, mas isso não o impedia de ser racional.

Será que é por que são mestiços? Talvez a humanidade deles sobrepôs a natureza Nor? Não, não faz sentido.

Os mestiços viviam numa linha tênue, em que conflitos entre as duas naturezas deviam ocorrer…

Abandonei a linha de pensamento. Não posso ter essas dúvidas. Não posso simpatizar com o inimigo. Tenho um dever a cumprir… e daí que eles não são tão instintivos assim? Eles ainda devoram humanos, as vezes nos caçando por esporte, as vezes nos torturando para se divertir.

Eles são um mal que não pode continuar existindo. Enquanto eles viverem, os humanos nunca estarão seguros. Minha irmã nunca estará segura.

Melhor eu apenas dormir e esperar pelo fim.

— Mas e aí? Ainda não me respondeu?

Que merda…

 

Já faz duas horas desde que Zesh falou comigo a primeira vez. Enquanto as perguntas que ele fazia de tempos em tempos eram um pouco… invasivas, não era uma pessoa ruim. Ao contrário, ele era bom e agradável.

A conversa fluía naturalmente. Falamos de alguns assuntos bem idiotas, como a seleção de futebol atual e o desgosto mútuo por tecnologia.

Enquanto eu não me importava de acompanhar os eletrodomésticos vez ou outra, era difícil gostar quando não se tem dinheiro e é constantemente bombardeado por propaganda.

Zesh tinha motivos diferentes. Sendo sincero, acho que nem dá para considerar como um motivo. Ele só odiava tecnologia no geral.

Segundo ele, tornava as pessoas mais fracas e dependentes.

— Então, algum motivo por escolher Juvicent em específico?

Não precisava perguntar por que ele deixou Vislo. A resposta era óbvia para qualquer um. Eu tinha, porém, interesse em saber o porquê de Juvicent.

O povo da cidade como um todo era frio e, as vezes, hostil contra imigrantes. Se ele veio aqui procurar um emprego, podia muito bem ter apenas ido até Leiras ou Icirus, que não apenas ficavam mais próximas de Vislo como também tinham vários programas sociais para ajudar os imigrantes a se ajustar na sociedade.

Ele me olhou com seriedade e então se aproximou de mim o suficiente para apenas eu ouvir o que falaria.

— Eu vim aqui a procura de um santo.

— Um santo?

— Não fale tão alto! — cochichou enquanto me olhava com raiva. — O motivo pelo qual saí de Vislo não é a guerra. Eu fazia parte de uma das tropas de libertação. Um dia, encontrei um homem que fazia propaganda de uma nova religião que está se espalhando pelo continente.

Arqueei uma sobrancelha. Eu já tinha ouvido algo parecido, mas onde?

— As palavras dele comoveram eu e meu esquadrão, e então decidimos encontrar esse Messias que tanto falam.

Entendi, então era um fanático religioso. Acho que é por isso que não queria que ninguém soubesse… sem dúvidas deve ser um tanto incomodo ter de explicar suas convicções.

Contudo, eu não conseguia me livrar do sentimento que conhecia algo parecido com isso. Eu ouvi algo assim, tenho certeza. A pergunta que não quer calar era um simples “onde”.

Bem, acho que não vou descobrir tão cedo. Ou acho que não vou descobrir no geral.

Passos foram ouvidos e o Draugr de antes abriu a porta da prisão. Um silêncio sepulcral se instalou na cela enquanto o Nor caminhava em minha direção.

Engoli em seco e meu coração quase parou quando ele me pegou pela corrente e me forçou a andar. Zesh estava para intervir mas bastou um olhar meu para impedir ele.

Bem, acho que é isso…

 

 



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