Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 21: Cultistas, parte 1

Corri pelas ruas junto do Estigmado. Ele parecia desconfortável pela atenção que recebíamos da escória presente, algo justificado. Ainda que Bruxos tenham permissão de matar normais, ainda era gentil demais.

Era irritante.

Enquanto todos elogiam esse traço, eu vejo pouca utilidade nisso. Alguém gentil se incomoda de fazer o que é necessário e acaba se machucando. Farejei o traço de sangue que o Portador deixou e corri para a nona entrada da Montanha Nevoenta.

Havia vários benefícios que o meu… sangue me dava. Claro, ser um Mestiço no mundo de hoje era complicado — muitos do Esquadrão da Meia-lua trocariam tudo por um sangue normal —, mas não era nada de outro mundo para mim.

Já lidei com coisa pior e já estou acostumado a me olharem como uma aberração ou presa, e o meu único motivo para lutar junto dos humanos é que, diferente dos Nors, eu não morrerei tão cedo.

Sei que eles vão me descartar assim que esse conflito chegar ao fim, mas, até lá, espero já estar morto.

Olhei para o lado e notei o rastro de destruição de algumas árvores. Além disso, ouvi algo… incomum. Havia uma quantidade considerável de pessoas se juntando, todas indo para uma área cheia de metal, interferindo com meus sentidos.

Parei. O rastro por Lewnard Hollick acabava aqui. Estranho. Ninguém desaparecia por completo dos meus sentidos. Mesmo mortos deixavam rastros… De fato, algo devia ter encoberto a trilha. Ignorei a confusão do meu companheiro e olhei para a esquerda, onde senti a massa de pessoas se conglomerando.

Algo de muito errado está para acontecer. Todos os meus instintos gritavam para que eu investigasse. Olhei novamente para o rastro de árvores.

Tenho uma missão a cumprir, sei bem disso. Sei da importância que Lewnard Hollick tem, e dos planos que Kruger está tecendo para ele, ainda assim, tenho uma obrigação como policial. Proteger os inocentes e servir ao estado foram juras que eu fiz, e minha intuição dizia que, se eu seguir, estarei violando meus votos.

Eu sei o que devo fazer… peço perdão, Lewnard Hollick.

— Shiki Weissbreak. Siga o caminho de destruição e procure por rastros… Acho que assim encontrará Lewnard Hollick. Agora, eu preciso ir.

— Espere…

— Há uma movimentação estranha de pessoas. Ninguém nunca vem a essa área, mas eu contei, pelo menos, 50 batimentos diferentes… Acho que isso já explica o que eu devo fazer, não?

Antes que ele pudesse responder eu corri em direção àquele lugar. Em alguns minutos, fui forçado a me esconder atrás de uma árvore. Olhei para os guardas ao redor do que parecia uma base militar. Como raios isso foi montado sem ninguém perceber?

Vi que havia alguns civis entrando e vários cenários vieram em minha mente. Podia ser um Nor capaz de lavagem cerebral? Ou talvez uma organização terrorista?

Só uma forma de descobrir.

Fechei meus olhos e me foquei na minha audição. Ouvi com detalhe cada batimento, cada gota de sangue circulando pelas veias e cada contração muscular que era feita ali.

Busquei ignorar a conversa que muitos civis tinham e focar nos terroristas.

— Que tal uma cerveja depois disso?

— Céus, não vai começar nunca?

— Que tal irmos num almoço amanhã?

Foco. Não se distraia nem perca o rumo. Qual o objetivo de vocês? Falem logo!

— Céus, tem muitas pessoas interessadas nas palavras do chefe…

— Claro que tem. Muitos estão insatisfeitos com a nobreza e a nossa causa é nobre. Tenho certeza que eles vão concordar.

— Sei não… não é todo mundo que apoia os assassinatos. Talvez tenhamos que silenciar mais gente dessa vez…

O que? Assassinatos? Não… não pode ser. Será que é…

— Irmãos e irmãs! Bem-vindos!

Uma voz gentil e amável soou, atraindo a atenção de todos ali.

— Agradeço a presença… mas tenho certeza que não querem ouvir o que um velho como eu tem a dizer. Afinal, todos vieram aqui por um só motivo.

Um batimento diferente entrou na minha audição. Era… comum. Tão comum e normal que beirava a estranheza. Não havia nada ali, nenhum traço de alegria, tristeza, ódio… nada. Sua respiração também era perfeita e conservava o máximo de energia.

Quem é você?

— Eu lhes apresento ele, aquele que foi enviado pelos céus para nos salvar e libertar… o Moedor!

Imediatamente senti meu corpo se tensionar, pronto para ir lá e prender o assassino que atormentava Juvicent há meses. Segurei o cabo da minha espada enquanto acalmava meus nervos.

Não… ainda não. Eu ainda tenho que descobrir o que raios essas pessoas vieram fazer aqui.

— Obrigado Cornello. — A voz modificada me impediu de descobrir qualquer coisa sobre ele exceto pelo tom que usou. Assim como o batimento dele, não havia nada ali que indicasse emoção… algo que rapidamente mudou. — Agradeço a presença de todos. Antes que continuemos, permita-me fazer uma pergunta… Estão satisfeitos com a situação atual do país?

Aquilo calou todos. Alguns murmuraram sobre a pergunta, outros apenas ficaram quietos… mas, no coração deles, era clara a raiva e revolta.

— Vocês acordam de manhã e vão trabalhar, voltando em casa pela noite, cansados demais para brincar com vossas crianças. Vão estudar numa faculdade para se inserirem num mercado que cada vez mais tem menos oportunidades, incertos demais para terem a certeza de que conseguiriam sobreviver.

Conforme falava, o batimento de seu coração adquiria um tom violento e odioso, a única demonstração de humanidade naquele homem.

— Bem, eu recuso essa incerteza. Em meu coração há um, e somente um, desejo. Igualdade. Chega do sistema de castas, hora de dar um basta a riqueza acumulada dos mercadores. Quero um país onde cada um lutará sua própria luta, não uma que lhes foi imposta.

Uma comoção começou a se formar. Aquele povo começou a ser movido por aquelas palavras… não. Não eram só eles… eu também, lentamente, começava a aceitar a ideia.

— Se tiverem desejo de contemplar esse país… venham comigo… e eu prometo que isso deixará de ser apenas um sonho.

De fato, eu tive que me levantar e sair dali correndo. Não posso ser corrompido por tal proposta. Foco, não seja movido por um discurso barato como esse. Lembre-se de sua dívida, de suas juras.

Tenho que por a cabeça no lugar antes de chamar reforços. Meus subordinados não podem me ver assim… foco… Inspirei fundo e olhei para trás. Tenho que fazer algo em relação a isso…

— E aonde você acha que está indo?

Merda… Olhei para trás e vi um careca vestindo vestes militares negras, com duas espadas nas costas e um bastão na mão. Ele parecia um monge e, ainda que fosse inteiramente humano, inconscientemente levei a mão até minha espada.

— Não devia espiar a conversa dos outros, Ceifeiro.

— Ouviu falar de mim?

— Tua fama lhe precede.

É, imaginei que fosse algo assim. Infelizmente, não tenho tempo para perder com ele. Puxando minha espada, tentei um corte que, para minha surpresa, foi bloqueado. Isso é impossível… Humanos não deviam ser capazes de acompanhar minha velocidade! Quem dirá bloquear um ataque meu sem dificuldade alguma.

— Vejo que estás surpreso… Não fique. O amor que tenho pela causa de meu mestre me torna mais forte do que você jamais será! — Balançou o bastão e me forçou a desviar de uma palmada no peito.

A onda de choque resultante do ataque ainda me mandou para longe. Ainda que evitasse maiores danos, se aquilo me atingisse…

Um calafrio percorreu meu corpo enquanto eu lembrava da destruição causada naquelas árvores.

— Prepare-se! — Correu em minha direção e deu várias estocadas e pancadas, forçando-me a ficar na defensiva. Bem, isso é um problema. Ele é um lutador habilidoso e não posso demorar muito… nossa luta vai chamar a atenção dos companheiros dele.

Isso só me dá uma escolha. Desviando de uma pancada na cabeça, imediatamente tentei perfurar o peito dele com minha mão. Como era esperado, ele defendeu, mas voou para longe. Usei dessa oportunidade e corri para fora do alcance dele.

— Ei… tá fugindo por quê?

Ignorei-o. Diferente dele, eu já ganhei a luta. Se ele me deixar escapar, trago reforços e prendo todos ali… e, se ele for atrás de mim… ninguém virá ao seu resgate.

Para minha surpresa, ele pareceu hesitar, contudo, ele correu em minha direção. Ele é mais inteligente do que eu pensei. Corri até estar bem afastado dos sons e então parei.

Virando-me para trás, encarei-o com o máximo de cautela possível. Ambos ficamos quietos por alguns minutos, calculando o próximo movimento. Meu sangue, frio como era, não se intimidou pelo adversário.

Sim… essa seria uma luta difícil, mas não impossível. Vamos testar até onde seu poder vai…

— Você me conhece… que tal se apresentar?

— E por que eu faria isso? Não sou idiota o suficiente para dar meu nome a um policial.

— Ótimo… — sussurrei enquanto entrava numa postura de Battoujutsu. — Seria tedioso se você facilitasse a esse ponto.

Ele me encarou por alguns segundos e então entrou numa posição defensiva. Interessante. Ele conhece o suficiente para saber a fraqueza do Battoujutsu… Vamos ver até onde você consegue se defender…

— Devo admitir que estou feliz… — Aquilo me fez parar de o analisar por um instante. — Não esperava que trocaria golpes contigo tão cedo.

O que ele quer dizer? Será que… não, definitivamente é isso. Pelo que vi ali, essas pessoas tem um plano. São terroristas e cultistas! É claro que eles vão atacar Juvicent. Merda, como é que ninguém pensou que pudesse ser isso que o Moedor queria? Ele está atormentando nossa cidade já tem meses!

A Polícia Secreta não é idiota o suficiente para deixar um detalhe desses escapar… então…

Sim, só pode ser isso.

Parece que temos um espião dentro de nossas tropas.

— É uma pena… — Minha frase fez com que ele arqueasse uma sobrancelha. — Terei que acabar com isso rápido. Peço que não me odeie quando estiver no inferno.

 

 



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